O antigo Beco da Lapa e o Grande Hotel
Beco da Lapa
De acordo com as nossas especulações sobre os antigos caminhos paulistanos, expostas em estudo publicado na
Revista do Arquivo Municipal, RAM n. 204, a trilha indígena que provinha da região sul (Jeribatiba) e se dirigia para
nor-noroeste, em direção à mítica aldeia de Piratininga, ao se aproximar da recém-fundada vila de São Paulo, percorreria o traçado de
algumas vias públicas atuais da área central, entre as quais a Rua Álvares Penteado.
Seguindo em frente a partir desse ponto, a trilha atingiria o leito do chamado Ribeirão Anhangabaú de Baixo de modo oblíquo,
fazendo a transposição desse curso d’água por meio de um precário pontilhão, mais tarde designado Ponte do Caminho da Luz ou do Acu.
Alíás, nunca é demais lembrar que durante longos 184 anos foi esse o único caminho a fazer a ligação entre São Paulo e a região norte do
planalto, após o primitivo caminho do Guaré, hoje representado pela Rua Florêncio de Abreu, ter sido fechado pelos monges beneditinos
entre os anos de 1600 e 1784.
Uma vez transposta a pontezinha do Acu, os viandantes que desejassem se aventurar pelas bandas da velha Piratininga teriam de
continuar a marcha em direção nor-noroeste, fazendo o percurso das atuais Ruas do Seminário e General Couto de Magalhães
(antiga Rua do Bom Retiro). Indo sempre em frente, atingiriam a várzea esquerda do Rio Anhembi, hoje Tietê, na altura da paragem
que desde remotos tempos pré-cabralinos se teria chamado
Piratininga, toponímia que, supomos, só nos tempos da ocupação portuguesa
veio a ser atribuída a todo o campo planaltino.
Mais tarde, nos meados do século XVII, o trecho desse caminho correspondente à Rua Álvares Penteado – conhecida na centúria seguinte como
Rua da Quitanda, e depois como Rua do Comércio –, seria interrompido pelo traçado da Rua São Bento, aberta ao que parece pelos anos de
1630, quando um piloto conhecedor do rumo da agulha, ou seja, um marujo arvorado em topógrafo por conhecer o uso da bússola, de nome
Pero Rodrigues (Roiz) Guerreiro, foi contratado para assumir a função de arruador da Câmara Municipal.
A partir de então, é possível que os viandantes que se encaminhassem para a Luz e para a região além-Tietê tenham adotado o expediente
de entrar na via recém-aberta de São Bento e, em seguida, dobrando à esquerda, irem em direção ao Vale do Anhangabaú, ao longo do qual
haveria uma trilha orientada para a pontezinha do Acu, ponto considerado então como o início do Caminho da Luz. Trilha que desapareceria
mais tarde, ao ser aberta a atual Rua Líbero Badaró (antiga Rua Nova de São José), por decisão tomada pela Câmara de São Paulo em 1787.
Deduz-se, portanto, que, uma vez na Rua São Bento, os viandantes seis e setecentistas que seguissem para o norte, deviriam tomar uma
picada transversal a partir de um canto em que, por volta de meados dos Setecentos, foi entronizada uma imagem de Nossa Senhora da Lapa,
exposta num nicho externo à devoção dos paulistanos. O atalho que saia dessa esquina foi arruado conjuntamente com a Rua de São José,
em 1787, tendo recebido o nome informal de Beco da Lapa.
Essa maneira tortuosa de ir à Luz e à Santana foi depois substituída por um trajeto mais cômodo (Fig.1). Os que vinham do litoral
passaram então a entrar na cidade pela Rua de São Gonçalo (lado esquerdo da Praça da Sé) e não pela Rua Quintino Bocaiúva (antiga Rua
da Cruz Preta), com faziam antes. Se quisessem prosseguir para o norte, tomariam então a Rua Direita, a Rua Nova de São José (atual Líbero)
e um pequeno trecho da Ladeira de São João (início da atual avenida desse nome), onde foi construída a primeira ponte de cantaria da
cidade sobre o Anhangabaú, em fins do Dezoito. Chamada Ponte do Marechal, essa construção fora executada durante a administração do
capitão-general Marechal Frei José Raimundo Chichorro da Gama Lobo (1786-1788), sendo por sua vez substituída no princípio do século
eguinte pela bela construção de pedra de autoria do engenheiro militar Daniel Pedro Müller (c.1785-1841), destruída na inundação de 1850.
Fig.1-Pormenor da Planta da Cidade de São Paulo
levantada pelo engenheiro militar
Rufino José Felizardo da Costa, datada de 1807/1810.
Para melhor orientação observe na parte inferior o vale do Anhangabaú.
Reprodução das plantas históricas publicadas durante o IV Centenário.
Sobre ela foram traçados os seguintes percursos:
- em vermelho, o da antiga trilha que ligaria a aldeia de Jeribatiba, ao sul, à Piratininga a nor-noroeste;
- em azul claro, o desvio a ser feito por aqueles que se dirigiam para o norte, depois de aberta a Rua São Bento por volta de 1636;
- em azul escuro, o percurso feito por aqueles que, vindos do litoral, quisessem se dirigir para o norte, passando pela Ponte do
Marechal, construída entre 1786-1788, depois substituída pela ponte de mesmo nome projetada em 1809 por Daniel Pedro Müller
(que é a representada na planta).
Fonte: Informativo AHM. São Paulo, AHMWL, n.20, set./out. 2008.
Disponível em:
Havendo perdido a função de saída da cidade no final dos Setecentos, o estreito Beco da Lapa só recuperaria sua notoriedade ao ser
erguido o famoso
Grande Hotel em lote de esquina situado entre a Rua São Bento e o citado beco, num ponto então considerado
altamente concorrido e central.
Travessa do Grande Hotel
Na segunda metade dos anos de 1870, a cidade de São Paulo principiava a vicejar sob o influxo da cada vez mais pujante economia do
café. As estradas de ferro que ligavam o interior paulista ao porto de Santos já funcionavam normalmente, estando seus ramais em
constante expansão, e a via férrea que poria em contato a capital paulista com a Corte do Rio de Janeiro já se achava em construção,
havendo sido inaugurada em 1877.
Na verdade, a São Paulo desse tempo estava a ampliar tanto seus horizontes econômicos, quanto físicos, sociais e culturais. Construíam-se
as primeiras indústrias paulistanas a vapor, o comércio se expandia e o patrimônio edificado da cidade começava a ser renovado com a
substituição das velhas construções de taipa pelos sobrados novos de tijolos. A Capital recebia então os primeiros imigrantes italianos
e a escravidão decrescia a olhos vistos, pois o grosso dos escravos se concentrava agora nas distantes fazendas de café. Enquanto isso,
os ricos fazendeiros começavam a passar longas e periódicas temporadas na cidade para tratar de seus negócios e também para espairecer,
indo ao Teatro São José ou frequentando o recém-reformado Jardim Público da Luz; afinal, a Capital constituía-se no novo centro
financeiro da Província e o governo da província a partir do presidente João Teodoro (1872-1875) tentava conferir uma expressão mais
urbana e amável à vida citadina paulistana.
Foi então que Frederico Glette (?-1886), um comerciante teuto-suíço radicado na Corte, associou-se a um alsaciano de origem judaica
estabelecido em São Paulo, o negociante de fazendas Vítor Nothmann (?-1905), para juntos construírem aquele que seria o mais moderno e
luxuoso hotel do Pais, inaugurado no dia 1.º de julho de 1878. O faro para os grandes empreendimentos era uma das características mais
notáveis desses empresários estrangeiros que, ao mesmo tempo que lucravam com suas iniciativas de natureza capitalista, iam introduzindo,
aos poucos, o sedutor modo de vida europeu no até então acanhado meio paulistano.
Para se responsabilizar pelo projeto e construção do
Grande Hotel, foi escolhido um engenheiro de nacionalidade alemã chamado Hermann
von Puttkammer (1842-1917). Conforme as informações de familiares obtidas no já recuado ano de 1993, Puttkammer fora um estudante de
escola militar, tendo vindo para o Brasil fugido de seu país por razões mal esclarecidas. Consta que Puttkammer apresentava marcas
pelo corpo, motivadas talvez “por algum castigo recebido por ter tomado parte num levante de estudantes”. Pelo que afirma Sérgio
Coelho num artigo escrito para
O Estado de São Paulo, conservado no arquivo do Instituto Martius-Staden,
Puttkammer chegou aqui em 1865 acompanhando um amigo seu, Luís Mateus Maylasky (1838-1906), depois Visconde de Sapucaí (título
nobiliárquico concedido por monarca português). Húngaro de origem judaica, Maylasky, por sua vez, imigrou quase banido “após bater-se
em duelo fatal”, o que nos faz supor que ambos tenham deixado a Europa por uma razão comum.
Por terem sido recomendados ao superior da Ordem de São Bento, dirigiram-se à Sorocaba, cidade onde esse monge residia. Originário de
uma antiga família aristocrática pomerana, detentora de título de barão, Puttkammer era primo por afinidade do Príncipe de Bismarck
(uma prima sua, Johanna, irmã do homem de estado Robert von Puttkammer, era esposa do chanceler alemão). De acordo com sua neta,
D. Helena Xavier, falava sete línguas, entre elas russo, inglês e francês. Trouxe com ele
para o Brasil quatro filhos do seu primeiro casamento, de três dos quais conhecemos o nome: Carlos, Luís e Jorge. Aqui casou-se
novamente com Agnes, de Berlim, que lhe deu mais dois filhos, um dos quais, Wolfgang, pai de D. Helena. Na verdade, os filhos do
primeiro casamento não se davam com os meios-irmãos, pois “tinham o nariz empinado”, contou-nos D. Helena.
Da vida profissional de Puttkammer, pouco se sabe. Em 1876, abriu na capital paulista um escritório “polimático”, onde, a crer no
qualificativo que acompanhava a palavra
escritório, enfrentava todo e qualquer tipo de trabalho ligado à Engenharia,
em seus diversos ramos. Depois, em 1878, montou com o engenheiro-arquiteto D.C. Bianchi um escritório “arquitetônico”,
passando assim a se especializar em projeto e construção de edifícios de toda a espécie: residenciais, comerciais, de escritórios,
religiosos, etc., conforme anúncio publicado no
Correio Paulistano de 10 de abril de 1878. Com seu amigo Maylaski,
construiu a estrada de ferro Sorocabana (1870-1875); para o mencionado Glette projetou o
Grande Hotel (1876-1878), com o seu
sócio Carlos Arno-Gierth; para o mesmo cliente suíço arruou o bairro de Campos Elísios (1879); pertenceu ao corpo técnico da
ferrovia Rio-Clarense e finalizou a construção do palacete de Elias Chaves (1893-1899), projetado por Mateus Häussler nos
Campos Elísios, falecendo em Ribeirão Preto em 1917.
Dessa importante edificação hoteleira de três pavimentos erguida na Rua São Bento que era o
Grande Hotel, não se conservou nenhuma
foto com o aspecto da fachada principal. A rua era – e ainda é – muito apertada, não permitindo a tomada de fotos com
suficiente angulação para enquadrar convenientemente as frontarias dos edifícios nela localizados (Fig.2).
Em certa ocasião, Yan (João Fernando) de Almeida Prado (1898-1987) definiu a fachada lateral dando para o antigo Beco da
Lapa, desde a inauguração do estabelecimento denominado Travessa do Grande Hotel, como sendo “um Vitruvio”, definição que
não deixa de ser um tanto exagerada, pois de fato o estilo adotado na edificação deve ser hoje considerado como
neorrenascentista e
não como
neoclássico. Mas por uma ilustração encontrada num anúncio do hotel, publicado num almanaque paulistano de 1896,
nota-se que o frontispício possuía à altura do primeiro andar um balcão de alvenaria bastante sacado, a abranger
os três vãos centrais, e isso muito contribuía para a criação de um contraponto formal entre a fachada principal, mais ostentosa,
e a sobriedade exibida pela elevação lateral.
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Fig.2- Pormenor da planta da cidade de São Paulo, executada pela Companhia Cantareira e Esgotos em 1881.
Reprodução das plantas históricas publicadas
durante o IV Centenário.
No centro do detalhe, projeção horizontal do Grande Hotel
(1876-1878), construído na esquina da Rua São Bento com a agora chamada
Travessa do Grande Hotel.
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Fonte: Informativo AHM. São Paulo, AHMWL, n.20, set./out. 2008.
Disponível em:
O frontispício do hotel compunha-se de três corpos (Fig.3). No térreo rusticado havia três portas centrais e duas em cada corpo
lateral. Todos esses vãos estavam providos de arcos de pleno cimbre. No piso seguinte, onde se faziam presentes pilastras de
ordem coríntia, mantinham-se as três aberturas centrais, enquanto um só vão guarnecia cada um dos corpos laterais. As janelas
rasgadas do corpo central, no nível desse andar, eram adinteladas, sendo coroadas com frontões triangulares sustentados por mísulas,
e as localizadas nos corpos secundários, correspondentes a esse mesmo pavimento, apresentavam-se emolduradas por um arranjo até então
nunca visto na cidade: sob o peitoril, um falso balcão com balaústres modelados em meia figura dava sustentação a duas meias-colunas
jônicas, que além de enquadrar o vão suportavam um arco pleno. No andar superior, três janelas singelas completavam a composição da
parte central da fachada, ao mesmo tempo que uma única janela rasgada, de verga reta, comparecia em cada um dos corpos secundários.
Acima da linha da cimalha, bem saliente e pesada, conforme antigas fotos da Rua São Bento em que se pode distingui-las ao longe,
viam-se volumosas platibandas, em forma de balaustradas, elementos que acentuavam os topos dos corpos laterais da construção.
Fig.3-Fachada principal do Grande Hotel (1876-1878).
Reconstituição gráfica aproximada executada com técnica digital.
Autoria: arq. Eudes Campos, 2009.
A extensa fachada que deitava para o velho beco, ao contrário, exibia aspecto bem mais sereno, conquanto organizada com quase
todos os elementos arquitetônicos existentes na face principal; devendo-se notar apenas que as janelas existentes na parte central da
fachada secundária, no nível das portas da Rua São Bento, possuíam arcos de pleno cimbre ornamentados com vistosas arquivoltas,
sucedendo-se numa série de treze vãos (Fig.4). Embora o edifício, tão admirado ao tempo de sua construção, não dispusesse de grandes
dimensões, emanava dele – e sobretudo da longa fachada voltada para a ruela, com suas quinze janelas e elevado embasamento –,
uma monumentalidade digna de velho palácio italiano, a que, aliás, chegou a ser comparado certa vez pelo próprio Yan.
É lamentável que fachada tão grandiosa, até então única na cidade, não pudesse ser devidamente apreciada em toda a sua extensão,
dado o fato de a agora chamada travessa ser bastante exígua, além de pouco frequentada (tendo servido, provavelmente, na época,
quase como uma entrada de serviço exclusiva para o hotel).