Informativo Arquivo Histórico Municipal - logotipo
 
PMSP/SMC/DPH
São Paulo, setembro/outubro 2007
Ano 3 N.14  

Abertura | Biblioteca | CCAD | Educativo | Estudos e Pesquisas | Intercâmbio | Logradouros | Manuscritos | Restauro | Ns.anteriores

  • INTERCÂMBIO

  • O cotidiano em construção, visto pela Série Obras Particulares no ano de 1906
        O projeto A Cidade de São Paulo e sua arquitetura – uma parceria entre a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, FAUUSP, e o Arquivo Histórico Municipal Washington Luís – realiza a sistematização e a digitalização de uma parte da documentação pertencente à Série Obras Particulares, um importante acervo sobre o processo de urbanização da cidade de São Paulo no período de 1906 a 1920.

        A coordenação do projeto cabe aos professores doutores Nestor Goulart Reis Filho e Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno. A parceria é financiada pelo Programa Políticas Públicas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FAPESP.

        Este ensaio é uma colaboração de historiadores participantes do projeto, comentando a natureza e o potencial deste conjunto documental.
    A República: um novo desenho administrativo para a cidade

    No começo do século XX, a cidade de São Paulo havia-se transformado na capital do café, uma região dinâmica na qual se intensificava o potencial industrial e o processo de expansão urbana, com a proliferação de ricas residências destinadas a atender os anseios da elite cafeeira e de construções diversas, abrigando o crescente comércio e as camadas populares. A economia, movimentada por este importante item da exportação nacional, o café, reconfigurava o cotidiano da cidade. A chamada Primeira República reinventava as formas de sociabilidade e de materialidade que regiam a vida urbana. Os dois primeiros presidentes do Brasil foram militares, Marechal Deodoro da Fonseca (1891) e Marechal Floriano Peixoto (1891-1894), mas o terceiro era um civil, Prudente de Moraes (1894-1898), representando a efetiva conquista do poder pela oligarquia cafeeira paulista.

    A consolidação da República na virada do século XIX para o século XX promoveu mudanças na estrutura das unidades administrativas do território nacional. Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário haviam sido instituídos e as antigas províncias brasileiras, transformadas em estados membros da Federação, adquiriram maior autonomia em relação ao Governo Federal. No plano da administração municipal da cidade de São Paulo, foi criado o Conselho de Intendências1, formado por vereadores:
    • Conselho de Intendências
    • Comissão de Contas, Orçamento e Justiça;
    • Comissão de Obras e Datas;
    • Comissão de Saúde Pública, Matadouro e Cemitério.
    A instalação da República no final do século XIX exigiu mudanças na estrutura do governo. O regime republicano alterou o papel dos municípios no âmbito constitucional ampliando as suas atribuições2.

    A reestruturação administrativa dos municípios não representou uma total ruptura com as normativas vigentes no Império. Os Códigos de Posturas formaram as bases das novas medidas organizacionais que foram adotadas na administração pública. A Câmara Municipal de São Paulo, restituída em 1892, instaurou o poder executivo municipal composto por quatro Intendências; essa estrutura se manteve por dois anos, sendo substituída por uma única Intendência, exatamente cinco meses após a promulgação da lei anterior. A instabilidade da estrutura administrativa pôde ser notada até o final de 1898, ano no qual foi criado o cargo executivo de Prefeito em substituição ao Conselho de Intendência3.

    O ideário de progresso urbano, impulsionado pelo florescimento econômico paulista, ao impelir o surgimento de diversificados empreendimentos industriais, comerciais e residenciais, exigia que o Poder Público tivessem maior capacidade de atuação sobre a Capital. A nascente estrutura burocrática do Poder Executivo refletia a tentativa de normalização das instâncias administrativas. No período das Intendências, de 1892 a 1898, as intervenções urbanas foram exercidas com maior autonomia pelo poder municipal. Em 1896, por exemplo, foi criada a Comissão Técnica de Melhoramentos (Lei nº. 264),sujeita à Intendência de Obras, que a Lei nº. 203, de 1896, organizou em substituição à Intendência de Justiça, Polícia e Higiene. O trabalho principal dessa comissão consistia na execução de uma planta cadastral geral da cidade, na realização de planos de arruamento para as áreas pouco ou não ocupadas e em projetos de realinhamento para algumas das ruas existentes na parte consolidada da cidade, inclusive no Centro. Infelizmente, objetivos tão ambiciosos foram em parte abandonados com a dissolução da Comissão em 1898.

    A execução de medidas de saneamento, calçamento, transporte público, iluminação, canalização de água e esgotos, alinhamento e nivelamento, etc. se intensificava com o crescimento da cidade. O prefeito Antônio da Silva Prado (1899-1911), almejando que São Paulo adquirisse, por fim, uma total conformidade com a aparência das cidades européias, deu início à remodelação do espaço urbano, baseando-se em parte nos trabalhos da Comissão extinta. A Intendência de Obras, transformada em Seção de Obras, posteriormente em Diretoria de Obras, teve à sua frente o engenheiro Vítor da Silva Freire, juntamente com mais sete engenheiros, alguns destes, membros do corpo funcional da Escola Politécnica, assim como Freire. A Diretoria de Obras ficou sob sua direção por 27 anos, de 1899 a 1926.

    Ao refletirem os valores de um período histórico, as políticas públicas demonstram ser o espaço urbano um espaço de prática cultural, um local privilegiado para o exercício das dinâmicas sociais. O processo de modernização urbana implementado em São Paulo nos primeiros tempos da República esbarrava numa estrutura administrativa municipal deficiente. Os critérios de organização, salubridade e embelezamento adotados a partir do fim do século XIX vincularam-se à tentativa de organização de um Poder Executivo que exercesse um controle efetivo sobre as transformações da cidade.

    Lorena Pugliese Sant’Anna
    historiador


    O cotidiano em construção

    A Série Obras Particulares, Sub-Fundo Diretoria de Obras e Viação, Fundo Prefeitura Municipal é, em geral, constituída por petições que ora solicitam alinhamento das futuras edificações (entre os anos de 1870 e 1893), ora requerem alvarás de licença para construir (entre o ano de 1893 e 1921), sendo neste caso acompanhadas das respectivas plantas arquitetônicas. As solicitações tratam de questões referentes ao mais diferentes tipos de construção: prédios comerciais, industriais, palacetes, moradias de padrão operário e até puxados; assim como transformação de janelas em portas, instalação de vitrines, construção de platibandas, latrinas, depósitos, armazéns, galinheiros, cocheiras, etc. No entanto, para além da materialidade das novas modalidades de edificação introduzidas durante a Monarquia declinante ou a infante República, se colorem nos papéis almaços as velhas caligrafias das vicissitudes, dos embates, das contradições, e de toda efervescência sócio-cultural que envolvia aqueles que estavam reedificando sobre os escombros das mudanças e permanências da antiga Piratininga de taipa de pilão.

    De fato, o olhar atento vislumbrará nos milhares de requerimentos da Série Obras Particulares, o curioso – e até pitoresco – cotidiano de uma cidade em intensa transformação. No ano de 1906, por exemplo, o Sr. Luís da Silva solicitava alvará de licença para que pudesse construir na então Avenida Municipal (atual Dr. Arnaldo) uma “barraca para vender bebidas e refrescos em frente ao Cemitério do Araçá, para dias de visitação e finados” (OP-1906001155 – cx. 9). Não longe dali, o construtor e mestre-de-obras italiano Miguel Marzo requeria licença para “construir um gallinheiro e pegado um estábulo para duas vacas, á Rua Paulista nº 19” (OP-1906001248-cx10). Já o Padre Clemente, vigário da Paróquia de Santana, pedia a devida licença para a construção de uma capela provisória “em baixo do morro”. Este último finalizava o requerimento afirmando que esperava “feliz e prompto deferimento”, pois confiava “nas boas disposições do elevado espírito e bondoso coração de V. Excia [referia-se respeitoso ao Sr. Prefeito]” (OP-1906001420-cx. 12). Naquele tempo, estava na berlinda o fim dos cortiços e a acirrada fiscalização da Diretoria de Obras e Viação. O Sr. Paschoal Pecci pretendia construir um acréscimo em sua casa, na “Rua de Santo Amaro, casa nº 180”, mas teve o seu requerimento negado. Informou o fiscal que duas famílias habitavam o porão e que a licença não devia ser concedida, por se tratar de “casa acortiçada [sic]” (OP-1906001440 – cx. 12). Enquanto isso, outro peticionário, Eduardo Silva, num arroubo de cólera, solicitava o alinhamento para a construção de um muro, alegando “estar uma cabritada e cachorrada desenfreiada [sic] assaltando o meu quintal e jardim”. (OP-1906001539-cx. 13).

    A Série Obras Particulares conserva em geral pedidos de alinhamento ou de licença para construir e o pagamento dos devidos emolumentos. Dentre os requerentes se destaca – pelo menos no ano de 1906 – o Sr. José Hans. Este aparece em centenas de requerimentos, assinando como interessado e de fato sendo o construtor e o autor de projetos de muitas das casas de padrão operário, nas mais diversas ruas da cidade de São Paulo. Sem dúvida, merecerá de nossa parte um estudo particularizado. Em contrapartida, os casos acima referidos destoam do comum e fazem aflorar um cotidiano quase trivial. No entanto, revelam o papel social assumido por cada um dos indivíduos. O vendedor de refrescos dos idos de 1906 sobrevivia de dessedentar aqueles que visitavam parentes e amigos falecidos; o construtor Miguel Marzo, recorrente em boa parte dos requerimentos, edificava cercados e currais na elitizada, e ainda rural, Avenida Paulista. O vigário da Paróquia de Santana valia-se de seus excessos de oratória para que aprovassem com rapidez sua solicitação. O fiscal da Prefeitura negava licença a uma construção por se tratar de cortiço, aplicando rigorosamente o disposto nas leis que regulavam o ato de construir e, por fim, um homem encolerizado procurava defender-se de cães e cabritos que destruíam sua propriedade. Tais exemplos são importantes na medida em que compõem um cotidiano urbano-social em construção, revelam a produção dos mais variados espaços e seus agentes produtores, elementos essenciais para a compreensão da Paulicéia em formação.

    Lindener Pareto Jr
    historiador


    Referências bibliográficas
    • CAMPOS, Candido Malta. Capítulo 1: Construindo uma capital. In: Os Rumos da Cidade. Urbanismo e Modernização em São Paulo. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002.
    • CAMPOS, Eudes. Arquitetura paulistana sob o Império: aspectos da formação da cultura burguesa em São Paulo. São Paulo: Tese de doutorado em “Estruturas Ambientais Urbanas”– Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 1997.
    • DEBENEDETTI, Emma & SALMONI, Anita. Arquitetura italiana em São Paulo. São Paulo: Perspectiva, 1981.
    • LEHMANN de Barros, Liliane Schrank. Formação administrativa da Cidade de São Paulo 1554-1954. In: Revista do Arquivo Municipal, nº 199. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1991.
    • LEMOS, Carlos A.C. Alvenaria burguesa: breve história da arquitetura residencial de tijolos em São Paulo a partir do ciclo econômico liderado pelo café. 2ª ed. São Paulo: Nobel, 1989.
    • REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2002.
    • SALGADO, Ivone; BUENO, Beatriz. Pierre Patte e a cultura urbanística do Iluminismo francês. São Paulo: Cadernos de Pesquisa do LAP Série Urbanização e Urbanismo, nº38, 2003.
    • SCHERER, Rebeca. Capítulo 2: A gestão urbana como política pública. In: Descentralização e planejamento urbano no Município de São Paulo. São Paulo: tese de doutoramento na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1987.
    • SEVCENKO, Nicolau (org.). “Introdução. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso”. In NOVAIS, Fernando A. (coord.) História da vida privada no Brasil. República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. v.3.

    Leis, Decretos e Atos citados no texto:
    • Decreto (Portaria) Estadual sem número, de 10 de janeiro de 1890.
    • Decreto Estadual nº. 13, de 15 de janeiro de 1890.
    • Decreto Estadual nº. 86, de 29 de julho de 1892.
    • Lei Municipal nº. 1, de 29 de setembro de 1892.
    • Lei Municipal nº. 21, de 22 de fevereiro de 1893.
    • Lei Municipal nº.263, de 27 de fevereiro de 1896.
    • Lei Municipal nº 264, de 20 de agosto de 1896.
    • Lei Municipal nº. 374, de 19 de novembro de 1898.
    • Ato nº.1, de 7 de janeiro de 1899.


    Notas

    1. Decreto (Portaria) Estadual sem número, de 10 de janeiro de 1890.
      Decreto Estadual nº. 13, de 15 de janeiro de 1890. (
      volta)
    2. Veja também: Decreto Estadual nº. 86, de 29 de julho de 1892. (volta)
    3. Lei Municipal nº. 1, de 29 de setembro de 1892, que criou quatro Intendências, encabeçadas depois por vereadores eleitos por seus pares: Intendência de Justiça e Política, João Alves de Siqueira Bueno; Intendência de Higiene e Saúde Pública, Bráulio Joaquim Gomes; Intendência de Obras Municipais, Joaquim Franco de Camargo Jr. e Intendência de Finanças, Dr. Álvaro Augusto da Costa Carvalho.
      Lei Municipal nº. 21, de 22 de fevereiro de 1893, que criou a Intendência Municipal, ocupada por Cesário Ramalho da Silva; de acordo com essa lei, a Presidência da Câmara e o Tesouro Municipal ficavam sob a mesma direção, de Pedro Vicente de Azevedo; a Vice-Presidecia da Câmara era ocupada por Bráulio Joaquim Gomes.
      Lei nº. 374, de 19 de novembro de 1898.
      O Ato nº. 1, de 7 de janeiro de 1899, assinado pelo Prefeito Antônio da Silva Prado, criou a Seção de Polícia e Higiene (Álvaro Teixeira Ramos); a Seção de Justiça (Antônio Carlos da Rocha Fragoso) e a Seção de Obras (Vitor da Silva Freire). (volta)

     
    EXPEDIENTE

    coordenação
    Liliane Schrank Lehmann

    edição de texto
    Eudes Campos

    webdesigner
    Ricardo Mendes

    distribuição
    Maria Sampaio Bonafé (coordenação)
    Elisabete De Lucca e Irene do Carmo Colombo


    Normas Editoriais
    (2007) (formato PDF)

     
    Para receber o Informativo Arquivo Histórico Municipal
    - ou suspender a remessa -,
    envie um e-mail para:
    informativoarquivohistorico@prefeitura.sp.gov.br
     




    Prefeitura da Cidade de São Paulo - 2005-2007 (c)



    DPH


    SECRETARIA DE CULTURA


    Cidade de São Paulo


    Gilberto Kassab
    Prefeito da Cidade de São Paulo

    Carlos Augusto Calil
    Secretário de Cultura

    José Roberto Neffa Sadek
    Secretário Adjunto

    Paulo Rodrigues
    Chefe de Gabinete

    Walter Pires
    Departamento do Patrimônio Histórico

    Liliane Schrank Lehmann
    Divisão do Arquivo Histórico Municipal Washington Luís
    Informativo AHM