Aspectos históricos da conservação e restauro de objetos de caráter cultural a partir do século XIX
Falar da história da conservação e do restauro é bastante complexo. Sempre fez parte da história da humanidade tentar preservar os objetos que lhe são, de alguma forma, valiosos, seja por motivos funcionais, estéticos, religiosos ou políticos.
Este ensaio visa pensar, de forma sucinta e com um recorte na cultura ocidental, o desenvolvimento dos conceitos teóricos que norteiam as intervenções realizadas a partir do século XIX, período em que surgem as primeiras reflexões das quais descendem as atuais linhas da conservação. Até então, a atuação profissional era norteada por critérios determinados normalmente por fatores religiosos e econômicos.
O primeiro critério adotado, denominado de “devocional”, surge com o desenvolvimento do cristianismo no século III e tem como principal finalidade manter a iconografia para que o fiel pudesse facilmente identificá-la e compreendê-la. No século XV, também ligado à Igreja Católica, temos o “critério de decoro”, que se assemelha muito ao devocional, onde corpos nus são cobertos, expressões modificadas e itens acrescentados. A partir do século XVII, com a proliferação do colecionismo e das galerias de arte, aparece o “critério de galeria”, segundo o qual os restauradores se colocam a serviço, não da obra e do respeito a sua integridade física, mas da vontade do cliente.
Foi somente quando a noção de monumento se consolidou, pelo reconhecimento de seu valor como documento histórico, que surgiram as primeiras reflexões críticas e foram traçadas a primeiras linhas de conduta ou escolas. As primeiras reflexões teóricas foram elaboradas pelos engenheiros e arquitetos, talvez por serem estes mais organizados que os artistas – responsáveis pela restauração de obras bidimencionais.
Contemporâneo a Viollet-le-Duc, mas com idéias totalmente antagônicas, encontramos o inglês John Ruskin (1819-1900) – escritor, poeta e crítico – representante da teoria romântica, ou da restauração romântica, que defende a intocabilidade do monumento degradado.
Criado dentro de uma severa educação religiosa anglicana, Ruskin parte do princípio de que o homem ao nascer recebe bens em depósito que na realidade não lhe pertencem, por isso deve fazer uma utilização respeitosa destes. Para ele a restauração não é uma necessidade, mas uma conseqüência do descuido dos homens.
Radical em suas definições, Ruskin defende a conservação preventiva em primeiro lugar, depois a consolidadora, mesmo que para isto se tenha que utilizar materiais diferentes e, por último, a morte digna da edificação quando chegar o momento. Sua postura influenciou as tendências modernas em matéria de reconstrução e reintegração, além de despertar o interesse para a conservação preventiva.
Na década de 1880 surgem na Itália duas teorias baseadas nas de Viollet-le-Duc e Ruskin, a restauração científica, formulada e defendida por Camillo Boito, e a restauração histórica, representada por Luca Beltrami.
Contemporaneamente temos a restauração histórica, formulada por Lucas Beltrami (1854-1933), que reivindica um papel positivo da restauração, ou seja, a diminuição dos danos provocados pelo tempo. Beltrami considera que a intervenção de restauro pode ser realizada de forma ampla, e até mesmo inovadora, desde que esteja sustentada por uma profunda e rigorosa pesquisa dos dados históricos do objeto em questão.
A teoria histórica constitui um abandono dos métodos filológicos. Beltrami defende que deve prevalecer sempre os valores figurativos, ou seja, quando a unidade figurativa não foi totalmente perdida, o restaurador deve reintegrar as partes faltantes para restituir a unidade e a continuidade formal da obra, porém sem inventar nada. Diferente da restauração romântica, a restauração histórica descarta energicamente a idéia de que a degradação possa conter qualidades e valores que sejam um acúmulo de significados. Beltrami defende que, quando um dano foi tão grave que destruiu a imagem, é impossível refazê-la, e é esta a diferença entre ele e Viollet-le-Duc.
Vale salientar que tanto a restauração científica quanto a restauração histórica se fundamentam na necessidade da pesquisa objetiva dos fatos. Conscientes de que estes fatos se modificam de acordo com a peculiaridade de cada obra, consideram arbitrária e falsificadora qualquer intervenção de caráter pessoal.
A restauração científica ou filológica7 iniciada por Boito terá continuidade através de Gustavo Giovannoni (1873-1947). Para Giovannoni o restauro não pode ser decidido visando apenas sanar problemas estéticos, mas solucionar questões mais complexas e profundas. Para tanto, torna-se necessário um estudo documental e arquivístico que possibilite o conhecimento histórico das modificações às quais o monumento foi submetido ao longo de sua vida, criando-se assim um equilíbrio entre a verdade histórica e os problemas de natureza estética que a obra exige.
As elaborações teóricas de Giovannoni tiveram seu reconhecimento e consagração após a publicação da Carta del Restauro, de 1932, emitida pelo Conselho Superior de Antiguidades e Belas Artes, cuja intenção era uniformizar a metodologia das diferentes superintendências italianas e oferecer um guia aos arquitetos que exerciam a profissão.
Após a Segunda Guerra, as teorias de Giovannoni entram em crise e posições, como as de Roberto Pane e Renato Bonelli, sobre a teoria da restauração a partir de uma ótica idealista, começam a realizar as primeiras formulações verdadeiramente coerentes para nossa realidade atual. Roberto Pane foi o primeiro a formular os fundamentos da restauração crítica, fruto da duplicidade entre os aspectos históricos e estéticos de uma mesma obra, que foram, depois, aprofundados por Renato Bonelli, Pietro Gazzola e Cesare Brandi.
Roberto Pane considera prioritário que, antes de qualquer intervenção, seja realizada uma análise crítica visando determinar se o monumento pode ou não ser considerado artístico. Somente após esse reconhecimento deve-se recuperá-lo eliminando todas as partes adicionadas ao longo de sua história, libertando, assim, sua verdadeira forma.
A teoria de Brandi dará origem à Carta de Restauro de 1972, que é, ainda hoje, perfeitamente válida e constitui uma referência fundamental para a prática da restauração.
Dentro dos pensamentos teóricos do século XX voltados para a restauração, uma figura de singular importância, embora não tão reconhecida quanto Brandi, é o Belga Paul Philippot, que participou ativamente da direção do ICCROM desde sua criação em Roma, em 1959, como vice-presidente e depois, até 1977, como diretor.
Philippot observou que a restauração, após a Segunda Guerra Mundial, se tornou uma disciplina cada vez mais científica e que os estudos críticos da obra de arte e os aspectos manuais ou artesanais que envolvem a intervenção estavam saindo dos limites tradicionais para integrar os estudos das ciências naturais. Reconhecia a importância dessa evolução, mas considerava um perigo a crença de que a utilização de novas técnicas de pesquisa por si só garantisse o êxito da intervenção.
Philippot considerava que para uma intervenção ser bem sucedida teria que ter uma cooperação interdiciplinar entre o historiador de arte, o restaurador e o cientista. Defendia que uma restauração deve, antes de qualquer coisa, fazer justiça ao estado original da obra e que, salvo casos excepcionais, é possível recuperar a obra deixando-a tal como estava no momento de sua criação. Reafirma a imprescindível necessidade de atuação crítica na restauração e a correta interpretação do tempo em relação à obra de arte e à restauração.
Para ele é imprescindível a atuação crítica na restauração, assim como a correta interpretação do tempo em relação à obra de arte e sua intervenção. Philippot foi co-autor da Carta de Veneza, elaborada no II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos em Monumentos realizado em Veneza no ano de 1964. A partir de 1965 essa carta é adotada pelo ICOMOS – Internacional Council of Monuments and Sites. Entre as suas muitas contribuições para a área talvez a mais importante seja o ideal de interdiciplinariedade.
Nas últimas décadas do século XX, surgiu uma quantidade significativa de textos sobre restauração, alguns completamente antagônicos tanto em questões teóricas, quanto em questões práticas. Dentro desse panorama singular, a síntese do pensamento brandiano se mantém. Por outro lado, surge uma tendência que visa a separação da restauração arquitetônica das demais obras de arte. Os defensores deste pensamento ainda não elaboraram formulações teóricas coerentes o suficiente para que se estabeleça uma linha de conduta. Talvez, os que mais se aproximaram de uma definição teórica, sejam os defensores da “conservação integral” ou “conservação pura”.
A conservação integral, defendida principalmente Dezzi Bardeschi, considera ter superado a dialética brandiana das instâncias teóricas e históricas dando ênfase à instância histórica. Para ele “o único fim da restauração é assegurar a conservação da autenticidade da obra”, para tanto, a seu ver, não se pode eliminar nenhuma das “contribuições” recebidas ao longo do tempo, pois isto faria com que a obra, no caso monumento, perdesse o seu valor de testemunho e conseqüentemente sua credibilidade.
Entramos no século XXI com a polêmica: restaurar ou não. Embora as reflexões teóricas tenham produzido linhas de conduta que norteiam a atividade profissional, elas não são amplamente compreendidas e utilizadas. Vivemos em um momento em que todas as linhas, e até mesmo os “critérios”, de alguma forma coexistem e são utilizados. Enquanto conservadores e restauradores estamos diariamente tomando atitudes em relação ao bem cultural que escrevem uma nova página nesta e desta história. Devemos ter responsabilidade para escrevermos de forma consciente, responsável e respeitosa.
Isis Baldini Elias
Conservadora-restauradora,
doutoranda na área de Ciência da Informação – ECA/USP – e
diretora da Divisão de Acervo do Centro Cultural São Paulo.
Observação: texto feito a partir da Dissertação de Mestrado “Conservação e Restauro de obras de Arte em Suporte de Papel” defendida na ECA/USP – Escola de Comunicação e Arte da Universidade de São Paulo por Isis Baldini Elias, em 2002.