Lei nº14.454/2007: algumas considerações suscitadas pela nova lei de denominação e alteração de denominação de vias e logradouros públicos
Há pouco mais de dois meses o prefeito de São Paulo sancionou a Lei nº.14.454, que consolida a legislação municipal sobre a denominação e a alteração da denominação de vias, logradouros, próprios municipais e obras de arte. Nessa nova lei foram reunidos, num só texto, todos os diplomas legais anteriores que tratavam do assunto, desde a década de 1950.
O objetivo primeiro da Lei nº.14.454 foi, logicamente, racionalizar a prática da denominação e da substituição de nomes de vias, logradouros públicos e próprios municipais e obras de arte, mas o uso que se fará da lei não deixa de inspirar cuidados.
Há decerto aspectos positivos, alguns desde há muito em vigor, como, por exemplo, o artigo n.2, que veda a designação de vias e logradouros com o nome de pessoa viva, na tentativa de impedir o uso político que poderia ser feito dessa atribuição.
O artigo nº.3, por sua vez, obriga o emprego da língua nacional “exceto quando referente a nomes próprios de brasileiros de origem estrangeira ou para homenagear personalidades reconhecidas por terem prestado relevantes serviços ao Município, ao Brasil ou à Humanidade”. Nesse caso, antevemos a persistência no uso exacerbado de nomes de origem estrangeira, que muitas vezes desafiam a compreensão do paulistano de nível cultural médio, vítima indefesa do baixo nível generalizado das escolas brasileiras. De acordo com nosso entendimento, é insensata a substituição de nomes acessíveis e cotidianos por outros, complicados, só para homenagear personalidades de origem estrangeira. Numa cidade alvo de sucessivas ondas migratórias num passado não tão remoto, é óbvio que homenagens desse tipo são necessárias, justas e freqüentes. Mas, por mais consideração que mereçam tais personalidades, não deixa de ser discutível, em nossa opinião pessoal, obrigar os atuais habitantes das periferias a se identificarem com nomes tão afastados de sua realidade cultural. Por favor, leitores, não nos interpretem mal. Longe de nós fazer apologia de idéias xenófobas. Estamos apenas constatando que a grafia e a pronúncia complicada de determinados nomes estrangeiros constitui sério desafio à maioria dos brasileiros e as autoridades responsáveis pela denominação de vias e logradouros paulistanos deveriam levar também esse aspecto em consideração, antes de homenagearem personagens que muitas vezes são pouco conhecidos fora do círculo estrito de suas comunidades.
Lembremo-nos, por outro lado, que já houve um tempo em que se quis adotar formas aportuguesadas de nomes estrangeiros. Há no bairro da Bela Vista um exemplo notório dessa prática: a Rua Monsenhor Passalacqua, nome de um sacerdote muito ligado à história da cidade (antigo administrador da casa Pia de São Vicente de Paulo), foi grafada oficialmente, a partir do Decreto nº.15.635, de 17 de janeiro de 1979, Rua Monsenhor
Passalaqua, sem a letra
c que compõe o sobrenome italiano, porque esse religioso teria adotado, ou aceitado, a forma aportuguesada de seu sobrenome. Isso, porém, não deixou de gerar confusão, pois existem hoje na cidade ruas com esse sobrenome grafado de duas maneiras diferentes: Monsenhor
Passalaqua e Desembargador Paulo
Passalacqua. A atual lei, parece, pretende eliminar a confusão anteriormente criada, só admitindo a grafia estrangeira original. Afinal, já bastam as grafias antigas e modernas de nomes e sobrenomes de origem portuguesa que convivem lado a lado: Luiz e Luís, Oswaldo e Osvaldo, Souza e Sousa, Queiroz e Queirós, Moraes e Morais, Correa e Correia, e assim por diante.
O artigo nº.4 pretende preservar, com muito mérito, a memória toponímica da cidade. No entanto, seu parágrafo 1º talvez não abarque convenientemente todos os casos que deveriam ficar ao abrigo das substituições pouco criteriosas. Acode-nos à mente a denominação ultratradicional de
Rua da Quitanda, antiga Travessa da Quitanda, no Centro, nome que remonta provavelmente ao setecentismo. À vista da atual legislação, sua denominação poderia em princípio ser alterada, já que não se encaixa plenamente nas condições explicitadas do citado parágrafo. A rigor, o nome da rua não provém de “datas e fatos históricos, bem como” de “localização ou referência geográfica”, vem, na verdade, de uma atividade econômica que era exercida nas proximidades daquela via. A travessa foi assim denominada porque estava disposta transversalmente em relação à Rua da Quitanda original, via onde esse tipo de atividade popular então se desenvolvia. Quando a Rua da Quitanda foi alterada para Rua do Comércio (atual Álvares Penteado), numa tentativa de “enobrecimento” toponímico, a humilde travessa herdou por assim dizer a velha denominação, sendo elevada à condição de nova Rua da Quitanda, nome que até hoje persiste. A via foi denominada, portanto, em última instância, em observância a um “referencial historico-sociotoponímico”,
atividade mercantil –conforme nos ensina a professora Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick, especialista em toponímia –, critério que não foi contemplado no parágrafo 1º, do artigo 4, da Lei n°.14.454.
Já no artigo nº.5 estão previstas as poucas oportunidades em que é possível proceder à alteração toponímica, restrição cujo propósito é sustar “a eterna ciranda” dos nomes viários paulistanos. È possível alterar o nome de uma rua ou logradouro em caso de homonímia (vias e logradouros com nomes iguais); em caso de apresentarem as vias e os logradouros “similaridade ortográfica, fonética ou fator de outra natureza que gere ambigüidade de identificação”; em caso de “se tratar de denominação suscetível de expor ao ridículo moradores ou domiciliados” nas circunvizinhanças das vias ou logradouros.
Em relação a essa última hipótese, notamos, curiosamente, que não existia nos velhos tempos paulistanos semelhante restrição de ordem moral. Quando não passava de pequeno núcleo acaipirado, a nominação viária da cidade tinha caráter espontâneo e transitório, não oficial, mas nem por isso deixava de ser usada normalmente. Beco do Inferno, Beco da Cachaça, Beco do Sapo, Rua da Palha, Beco do Mata-Fome remetem-se à época em que era a arraia-miúda, assídua freqüentadora do espaço urbano paulistano, que em geral protagonizava o fazer toponímico, enquanto as camadas altas da sociedade, recolhidas no interior dos sobrados, aceitavam com condescendência as denominações populares. Só ao longo do século XIX, com a formação da mentalidade burguesa entre nossas elites, muitos nomes tradicionais passaram a ser vistos como inconvenientes ou ridículos e por isso começaram a ser substituídos por datas e fatos ligados tanto à História Nacional (Rua e Largo Sete de Abril, Rua e Ponte da Abdicação, Rua da Constituição, Largo Sete de Setembro, etc.), quanto local (Largo dos Guaianases), ou por nomes de pessoas ilustres (Rua General Osório, Rua Duque de Caxias, etc.) – referencial antropotoponímico, elucidaria a professora –, atitude elitista e discriminatória que, como vemos, ainda sobrevive na atual legislação.
Pelo parágrafo 1º do artigo nº.5, “as denominações serão consideradas homônimas, ainda que o conjunto constituído pela tipologia dos logradouros e seus nomes sejam diferentes”. Este é o caso, por exemplo, da
Avenida e do
Viaduto Eusébio Stevaux (1826-1905), engenheiro francês cuja atuação profissional embora significativa no contexto do século XIX paulistano, não merece, convenhamos, ter atribuído o seu nome a dois logradouros diferentes. Outros exemplos seguramente ocorrem na cidade e devem ser sensatamente coibidos para se evitarem desnecessárias imprecisões toponímicas.
O Capítulo IV da aludida lei refere-se à denominação e à alteração de denominação de próprios,unidades municipais e obras de arte. As regras aí estabelecidas são semelhantes às impostas às vias e aos logradouros e suscitariam de nossa parte comentários parecidos aos já formulados.
Por fim, no Capítulo V, o artigo 12 prescreve que “deverão ser incorporadas gradativamente ao sistema de emplacamento, junto às placas de denominação de próprios, vias e logradouros públicos e obras de arte, placas com informações sucintas acerca da origem e significado do nome, da biografia e atividades públicas mais relevantes do homenageado, do fato ou data histórica” a que se refere a denominação adotada.
O propósito de esclarecer a população a respeito da nomeação das vias públicas, dos logradouros, dos próprios municipais ou das obras de arte é em si plenamente louvável. Estamos inseguros, porém, em relação ao resultado dessa campanha de esclarecimento.
A Prefeitura tinha o prazo de 60 dias a partir da data de sanção da lei, dia 27 de junho de 2007, para regulamentar a matéria. Segundo notícia publicada no Diário Oficial da Cidade de São Paulo, assinada por Valéria Cintra (DOC, do dia 30.6.07), a diretora de Meio Ambiente e Paisagem Urbana da Empresa Municipal de Urbanização (Emurb), Regina Monteiro, assegurou que seria feito um estudo para saber como seriam adaptadas as novas placas às exigências da lei. Os dados históricos teriam de ser inseridos de forma regrada, em placas de tamanho proporcional à largura das vias (públicas, para não poluir visualmente o ambiente urbano da cidade.
Muitos de nós recordam do tempo em que as placas indicativas dos nomes das ruas traziam informações sucintas, lacônicas, sobre o nome do homenageado: datas de nascimento e de morte, profissão ou atividade que conferiu destaque à pessoa objeto de deferência. Com efeito, dificilmente as informações exigidas agora poderão ir mais além. Há casos em que maiores explicações serão necessárias, mas como resolver o problema de maneira adequada? Vejamos o caso acima referido da Rua da Quitanda, ou mesmo da Rua Direita, da Rua Boa Vista ou da Rua do Hipódromo, na Mooca, em que será preciso explicar mais minuciosamente a origem do nome local.
A população paulistana tem certamente direito de conhecer melhor a história de sua cidade, mas no caos da vida urbana de hoje, quem irá se arriscar a sofrer acidentes automobilísticos ou a ser vítima de algum ato criminoso postando-se num local público para se inteirar de umas poucas informações sobre a origem dos nomes das ruas da megalópole atual? Para isso foi criado o nosso Dicionário de Ruas online (http://
www.dicionarioderuas.com.br), que embora bastante incompleto, pode ser acessado com facilidade e conforto, a partir do recesso do lar.
Eudes Campos
Seção Técnica de Estudos e Pesquisas
Veja o texto integral da lei n.
14.454/2007