Territórios do cinema em São Paulo: 1900-1930
Há pouco mais de uma geração, a expressão "ir ao cinema" tinha, quase sempre, uma
significação geográfica clara: ir ao centro da cidade, mais precisamente, à região da Avenida São João e arredores.
A expansão das salas situadas em shopping centers ao longo da década de 1990, associada ao fim das "salas de rua",
contribuiu assim no processo de uma alteração profunda da percepção da cidade
em seus vários momentos como o trabalho, o consumo e o lazer.
Embora a presença de salas dedicadas à exibição cinematográfica, com funcionamento contínuo, seja registrada desde 1907 na
região com o
Bijou na então Rua de São João; essa ocorrência não está associada à configuração de uma
"cinelândia" paulistana. Esta denominação, coloquial em meados do século XX, toma como referência o empreendimento
realizado na cidade do Rio Janeiro, capital federal, na década de 1920, com a concentração de grandes
salas exibidoras no extremo da imponente Avenida Rio Branco, próximo ao Teatro Municipal.
A Avenida São João, importante via de ligação da área central de São Paulo com os bairros situados a oeste,
era
ainda, ao início do século passado, uma via de pequena extensão. Ao longo de duas décadas,
a partir do início dos anos 10, a rua
sofrerá
um processo contínuo de alargamento, prolongamento e aformoseamento. Quadra a quadra essas intervenções avançam
atingindo o
largo do Paiçandú e indo muito além, assumindo desde meados da década de 30 o papel de grande avenida radial.
A concentração de cinemas na região data justamente dessa época. Ao longo dos anos 30, surgem grandes salas,
caracterizadas por um modelo arquitetônico renovado, afastando-se da referência teatral com frisas, camarotes
e galerias, e adotando estilos distantes do ecletismo fim-de-século numa busca de atualização ,
muitas vezes associadas em suas denominações a nomes de grandes produtoras. É o caso do
Ufa-Palace
(1936), depois
Art Palácio, e do cine
Metro (1938), ambos na Avenida São João.
Na década seguinte, novas salas
ou mesmo empreendimentos renovados podem ser identificados como o
Broadway e o
Ritz
ainda na mesma avenida,
e já nos anos 50, o
Olido, em local tradicional de exibição desde o ínicio do século,
ocupado anteriormente pelo
Moulin Rouge, e, depois, pelo
Avenida.
Em meados da década de 1940, dois empreendimentos marcariam ainda mais
a região, como pólo exibidor e lançador de filmes e como território privilegiado do imaginário de
algumas gerações:
o
Ipiranga e o
Marabá.
Outras cinelândias
No entanto, no período enfocado nesta edição do
Informativo AHM, a distribuição das salas
de cinema apresenta outra configuração.
Em 1954, com a demolição do cine
Odeon,
à Rua da Consolação, nº.40 (a uma quadra da Igreja da Consolação), com suas salas Azul e Vermelha (e, por
curto período, pela sala Verde), o articulista do jornal
Diário de S. Paulo registra a história do
antigo cinema e aponta como a constituição de uma área de concentração de salas lançadoras acabou motivando
uma novo desenho na distribuição das salas na cidade de São Paulo.
As três primeiras décadas do século XX correspondem assim a um intervalo de tempo durante o qual não só se
implantam as primeiras salas "fixas", mas também tem início a estruturação dos sistemas de gerenciamento e distribuição
cinematográficos. Pouco se sabe, contudo, sobre esse processo. A bibliografia até há pouco era marcada
estritamente por obras como
Salões, circos e cinemas de São Paulo (ARAÚJO, 1981), cobrindo as duas primeiras décadas do século,
e, num extremo, pelo livro
Salas de cinema em São Paulo (SIMÕES, 1990), enfocando com atenção o processo
posterior a 1930. A exceção recente cabe a
Imagens do passado – São Paulo e Rio de Janeiro nos
primórdios do cinema (SOUZA, 2004), destacando a importância do cinema como espaços de sociabilização, entre outros aspectos.
A produção acadêmica parece ter-se concentrado, no tocante às salas, ao período posterior a 1930. Predominam ainda os estudos sobre
arquitetura cinematográfica, embora num quadro mais recente surjam novas abordagens num leque
mais amplo (1).
Recomenda-se para uma
compreensão de parte desse panorama exibidor em São Paulo, entre os ensaios localizados em revistas científicas, a leitura do artigo
Ir ao cinema em São Paulo nos anos 20, de Sheila Schvarzman. Publicado na
REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA (2005), o ensaio explora como fonte a coluna de Octavio Gabus Mendes
(1904-1954), na revista
CINEARTE (1926-1942), registrando enfaticamente o cotidiano do processo de
funcionamento do circuito exibidor nas décadas de 1920 e 1930.
O Brás
É possível traçar alguns primeiros comentários sobre a distribuição de salas de cinema da cidade a partir de
uma compilação dos registros disponíveis (veja um quadro resumo, em anexo
pdf - formato ofício).
Num total de pouco mais de 140 entradas, a listagem foi estruturada de modo a permitir uma compreensão visual do período de funcionamento.
Além do conjunto de salas ao redor do trecho inicial da
Rua de São João como o
Bijou, o
Bijou Salão ou
o
Polytheama em funcionamento em meados da primeira década, surgem logo em seguida salas
na área central, o velho Triângulo, como o
Radium, à Rua São Bento, nº.59, entre 1909 e 1914, e, mais tarde,
o
Pathé Palace ([1913-1927]) e o
Congresso ([1912-1925]), ambos à Praça João Mendes, ou o
Iris Theatre, à Rua Quinze de Novembro, nº.52
([1908-1916]), e o
Eldorado, à Rua Quintino Bocaiúva, nº.39 ([1913-1917]).
Chama a atenção a imediata implantação de salas de cinema nos principais bairros ao
redor do centro paulistano em meados dos anos 10. Bairros populosos como Brás, Bom Retiro e Barra Funda,
de perfil proletário, a pontos
próximos a setores residenciais de padrão diferenciado com Santa Cecília.
A região do atual Largo do Arouche reúne, por exemplo, os cinemas
High Life ([1910-1914]),
sucedido pelo
Brasil (até [1922]), o
Smart Cinema ([1910-1912]) ou o
Guarany,
a partir de 1913. E, mais adiante, na Rua Sebastião Pereira, o
Royal ([1913-1930]).
O perfil construtivo dessas salas é bem variado. De galpões improvisados a salas de maior porte, adotando
o modelo teatral com frisas, camarotes e galerias, e a configuração de palco para apresentações mistas. É
oportuno observar os registros relativos à grande presença de cinemas em bairros como o Brás, que surpreendem
não só pelo número de salas como pela grande diversidade de edificações. A região manterá até a década de 1950 sua
importância como mercado cinematográfico, fato simbolizado na inauguração das maiores casas da cidade
em número de espectadores, como o
Universo (1938) e o
Piratininga (1943).
Uma primeira pesquisa na documentação custodiada pelo AHMWL permite identificar exemplos
do quadro construtivo (veja a respeito o artigo da Seção Técnica de
Manuscritos). Por hora,
destacamos aqui o exemplo do projeto do
Odeon Cinema, projeto de 1912, para ocupação de terreno na
Avenida Rangel Pestana, nº.193. Identificado no despacho, como vários outros do período, como "cinema de madeira e
zinco", o pedido de aprovação foi indeferido por total inadequação. Aparentemente, o interesse crescente por parte do público
local motiva o aparecimento de novos empreendimentos, que pouco a pouco recebiam melhoramentos como
parecem indicar os requerimentos para cinemas naquela avenida nos números 111 e 148 (entre 1911 e 1912).
Precariedade similar poderia ser identificada no pedido para construção de cinematógrafo na Rua da Consolação,
nº.324, em 1911. Sem nome, mas certamente correspondendo ao cine
América, atuante neste endereço entre 1914 e 1930
(sempre atentando para o recorte temporal deste
Informativo), a sala de exibição ocupava
precariamente uma área de 9 por 28 metros, apresentando janelas laterais. Ainda assim, com ressalvas, o projeto recebeu o alvará de construção.
Fachada do Odeon Cinema (1912): "cinema de madeira e zinco", como descrito no processo;
projeto não realizado,
à Av. Rangel Pestana n.193.
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No extremo oposto, empreendimentos de grande porte podem ser identificados, não necessariamente restritos a
áreas mais nobres como o
República (1921). Por exemplo, no mesmo ano, o projeto do
Braz Polytheama é aprovado. Situado na Avenida Celso Garcia, nº.53, a nova sala, ainda com a denominação
Eden Polytheama indicada nas plantas, surge seguindo o modelo do edifício teatral. Ainda que não se
possa ter uma noção do grau de acabamento, embora pedidos como o
República permitam ter uma idéia
de um "fausto simplificado", o novo cinema investe no aspecto simbólico, procurando atingir diretamente o
imaginário de cada espectador. É o que parece indicar, na segunda versão do projeto, a fachada principal,
efetivamente realizada, que insere a porta principal em meio a grande carranca que engole o público. É esta
mescla de sonho e precariedade que parece marcar estas salas da primeira época.
Ricardo Mendes
Seção Técnica de Estudos e Pesquisas
Braz Polytheama (1921), à Av. Celso Garcia n.53:
modificação de fachada, executada.
Projeto registrado sob nome
Eden Polytheama.
Veja foto em (SIMÕES, 1990).