Os móveis franceses da Marquesa de Santos
No ano de 2007, mantive, durante alguns meses, correspondência eletrônica com um pesquisador francês de nome Sylvain Cordier. Assistente-pesquisador da Universidade Paris IV (Sorbonne), Cordier faz atualmente seu doutorado sob a orientação de Bruno Foucart, renomado professor de História Geral da Arte na Sorbonne, nomeado presidente do Comitê do Patrimônio Religioso francês em 2006.
Bruno Foucart é mais conhecido no plano internacional por ter participado da concepção e da instauração do inventário geral do patrimônio edificado na França, ao lado de André Chastel, e por ter levado a efeito as primeiras campanhas de proteção e tombamento dos edifícios do século XIX e XX durante a gestão de Alain Peyrefitte (Ministro da Cultura da França) e de Michel Guy (Secretário de Estado da Cultura).
O orientando do professor Foucart, Sylvain Cordier, ocupa-se no presente momento em preparar sua tese sobre a família Bellangé, constituída de importantes marceneiros e ebanistas que atuaram profissionalmente entre o fim do Antigo Regime (segunda metade do século XVIII) e o Segundo Império Francês (década de 1860). A tese de Cordier deve comportar um catálogo
raisonné das obras dos quatro Bellangé mais importantes: Pierre-Antoine Bellangé (1757-1827), seu filho Louis-Alexandre Bellangé (1797-1861), o irmão de Pierre-Antoine, Louis-François Bellangé (1759-1827) e filho deste último, Alexandre-Louis Bellangé (1799-1863).
A dinastia Bellangé
Durante 80 anos, os Bellangé contaram-se entre os mais destacados ebanistas de Paris. Eram, basicamente, fornecedores da Corte Francesa. Os irmãos Pierre-Antoine e Louis-François, durante toda a carreira, conseguiram manter as tradições e os métodos artesanais dos mestres do século XVIII. Após a morte do pai, Louis-Alexandre assumiu o ateliê paterno, aposentando-se em 1844. Transferiu-se então para o México, indo em busca de fortuna nas minas de prata desse país. A tradição artesanal dos Bellangé ficou a partir daí nas mãos talentosas de seu primo Alexandre-Louis, que no fim do Segundo Império passaria a oficina para o filho. Este infelizmente não conseguiria ser feliz na profissão, pondo fim à preeminência familiar no que se refere à produção de móveis de luxo.
Filho de açougueiro e com grau de mestre em ebanisteria alcançado em 1788, Pierre-Antoine conquistou uma brilhante clientela ainda sob o reinado de Luís XVI (1774-1791). Durante o Primeiro Império (1804-1814), forneceu móveis para diversos palácios imperiais, entre os quais uma mesa de escritório para o quarto de Napoleão no hoje desaparecido Palácio de Saint-Cloud. Sob o reinado de Luís XVIII (1814-1824), tornou-se ebanista habilitado do Guarda-Móveis da Coroa e sob Carlos X (1824-1830) foi elevado à direção geral do mobiliário real.
Sua clientela privada era enorme. Em 1817, o presidente dos Estados-Unidos, James Monroe (1817-1825), encomendou um vasto conjunto de móveis para redecorar a residência oficial da Presidência da República norte-americana, devastada pelo incêndio provocado em 1814 pelos ingleses durante a Segunda Guerra da Independência, iniciada dois anos antes. Ainda hoje é possível apreciar algumas das belas poltronas e
bergères forradas de
jacquard de seda azul safira com rosetas e medalhões com águias em dourado no Salão Azul, cuja decoração foi reconstituída com muito apuro na primeira metade da década de 1990 pelo Comitê para a Preservação da Casa Branca (fig. n.1).
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Figura n.1 - Bergère e poltrona do conjunto executado em 1817 por Pierre-Antoine Bellangé (1757-1827)
para o Salão Azul da Casa Branca, Washington, D.C., EUA. Restauradas em meados de 1990.
Fonte: http://en.wikipedia.org
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Ao contrário de Pierre-Antoine, Louis-François nunca atingiu o grau de mestre sob o regime das corporações, suprimido em 1791. Manteve um atelier, mas não tão importante quanto o de seu irmão mais velho. Era marceneiro (
menuisier en bâtiment) e ao mesmo tempo fornecedor do guarda-móveis imperial. Muitas peças de sua autoria se conservam em museus franceses e nas mãos de colecionadores particulares. Do outro lado do Canal da Mancha, no Castelo de Windsor, vêem-se peças criadas por Louis-François que hoje pertencem à coleção de arte da Rainha da Inglaterra, incorporadas ao acervo por seu antepassado o rei Jorge IV (1820-1830), ávido, e refinado, colecionador de mobiliário francês (fig. n.2.).
Figura n.2 - Móvel executado em 1820 por Louis-François Bellangé (1759-1827), adquirido por Jorge IV.
Coleção de S. M.
a Rainha da Inglaterra.
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A oficina de Louis-François foi herdada por seu filho, Alexandre-Louis, que promoveu a transição estilística do mobiliário francês, conduzindo-o do Neoclassicismo para o Ecletismo. Em 1834, foi nomeado “ebanista da direção geral do mobiliário da Coroa”, tendo-se tornado ebanista do Rei Luís Felipe em 1842. Várias peças de sua concepção, executadas durante o período do Historicismo, acham-se incorporadas nas coleções reais inglesas, adquiridas por Jorge IV (fig. n.3).
Figura n.3 - Móvel de apoio,
de autoria de Alexandre-Louis Bellangé, c.1842.
Hoje no Museu de Artes Decorativas, de Paris.
Fonte: http://mad.lesartsdecoratifs.fr
Dos quatro Bellangé, o menos conhecido é Louis-Alexandre, simplesmente ignorado num artigo redigido há mais de 40 anos por Denise Ledoux-Lebard, publicado na renomada revista
Connaissance des Arts. A leitura desse estudo comprova que, naquela altura, a autora fazia confusão entre os dois primos de prenomes invertidos, Louis-Alexandre e Alexandre-Louis, não sendo feita nenhuma alusão à existência de Louis-Alexandre, justamente o Bellangé mais importante para nós brasileiros por ter sido o autor do leito da Marquesa de Santos, hoje exibido no Museu Paulista.
Os móveis da Marquesa
Quando tomei conhecimento de que o assistente-pesquisador da Universidade Paris IV Sylvain Cordier estava
à procura pelo mundo afora de peças produzidas pelos Bellangé para compor o catálogo
raisonné dessa
dinastia de talentosos ebanistas franceses, lembrei-me prontamente de um móvel do Museu Paulista
cuja imagem integra um dos volumes da minha tese de doutorado (
Arquitetura paulistana sob o Império,
1997, 4v.). Apressei-me em enviar ao pesquisador francês as imagens que possuía do leito da marquesa e da
psyché (grande espelho vertical, montado em estrutura pivotante, criado no período neoclássico),
já que esta última peça, visivelmente, fazia conjunto com o leito.
De acordo com os arquivos do Museu Paulista, a
psyché não tem autoria identificada, mas o leito trazia quatro etiquetas coladas no fundo do móvel, uma das quais se soltou e é guardada separadamente. Esta última foi transcrita em 1974 por um pesquisador, que o fez da seguinte forma: "S. Bellangé Fils, Rue Richer, Passage Saumer, n.8 ".
Mais tarde, quando enviada a informação a Cordier, este duvidou da precisão da transcrição e sugeriu que
na visita ao museu que me predispunha a fazer para coletar dados para seu trabalho eu a visse pessoalmente.
De fato, a caligrafia extremamente rebuscada da etiqueta dá margem à dúvida. A transcrição correta deve ser,
portanto: "L. Bellangé Fils, Rue Richer, Passage Saumer, n.8". (fig. n.4). Sendo a
Passage Saumer,
na realidade, a atual
Rue Saulnier (por incrível que pareça, a grafia do nome da antiga passagem
descoberta parisiense está errada no original), o mesmo endereço para onde o primo de Louis-Alexandre,
Alexandre-Louis, transferiu a oficina paterna durante algum tempo, na primeira metade do século XIX,
segundo as pesquisas de Denise Ledoux-Lebard.
Figura n.4 - Uma das quatro etiquetas do artesão Louis-Alexandre Bellangé (1797-1861),
originalmente coladas no fundo do leito da Marquesa de Santos.
Hoje, a etiqueta fotografada se acha destacada e conservada em arquivo.
Foto: Leonardo Capelossi Caramori, 2007.
Acervo: Museu Paulista-USP
O leito
Ao contrário do que imaginava, Cordier não se mostrou muito admirado por encontrar uma peça de um dos Bellangé num museu da América Latina. Segundo ele, já tinha notícia da existência desse leito, embora não soubesse de seu paradeiro. Informou-me então que o móvel fora executado por Louis-Alexandre para o Rei Carlos X de França e, não tendo sido adquirido pelo guarda-móveis real, seu autor apresentou-o para comercialização na Exposição dos Produtos da Indústria Francesa, de 1827, cuja inauguração se deu em 1°. de agosto no pátio do Palácio do Louvre, em Paris, tendo seu encerramento ocorrido em 31 de setembro desse ano (fig. n.5).
Figura n.5 - Leito da Marquesa de Santos, de autoria de Louis-Alexandre Bellangé, 1827.
Esse tipo de móvel devia ficar encostado contra a parede do quarto, assentado sobre um estrado de uns
poucos degraus e protegido por rico dossel. Desse modo, é descrito no inventário da proprietária.
Foto: Reiche Bujardão, 1996.
Acervo: Museu Paulista-USP
No já citado artigo de Denise Ledoux-Lebard, há, com efeito, uma ilustração de um leito da autoria do pai de Louis-Alexandre, muito semelhante em linhas gerais ao leito da marquesa. Trata-se de um
lit-bateau (leito-barco, uma tipologia criada no período neoclássico, em que a cama tem as laterais de perfil encurvado como o de um casco de navio) executado para o quarto de Luís XVIII no Castelo de Saint-Ouen, por sua vez inspirado num leito feito em 1798 pelos Irmãos Jacob para o palacete de Madame Récamier (hoje no Museu do Louvre), conforme projeto do arquiteto Louis-Martin Berthault (1771-1823).
O leito da Marquesa de Santos tem as mesmas proporções do realizado para Luís XVIII. A decoração, porém, é bem mais sóbria, austera e convencional, constituída de ornatos de bronze dourado cinzelado em forma de efígies, cabeça de leão no centro da parte inferior da cama e decoração fitomórfica estilizada (palmetas e ramagens), ao estilo clássico grego. Encimando as colunetas nos cantos do leito, pinhas de bronze lembram abacaxis, enquanto a borda superior da lateral visível da cama (nesse tipo de leito, só é decorada a lateral visível, que não fica encostada contra a parede) é contornada por um longo festão de folhas de louro, detalhe fielmente copiado do mencionado leito de Madame Récamier (Fig. n.6).
Figura n.6 -
Lit bateau de Madame Récamier, 1798.
Hoje ambientado no Museu do Louvre.
Fonte: http://www.insecula.com
Tenho uma hipótese para o motivo da recusa do guarda-móveis da Coroa em adquirir o leito criado por Louis-Alexandre Bellangé. Para o gosto exigente da realeza francesa, o exemplar devia mostrar-se estilisticamente um tanto ultrapassado, sem muita imaginação, excessivamente preso ao convencionalismo formal neoclássico e fabricado com uma madeira de cor escura (acaju), que então começava a cair de moda.
É bem verdade que, na Exposição de 1827, Bellangé ganhou uma medalha de prata como distinção, mas o relatório desse evento destacava como móvel digno de atenção, não o leito que mais tarde pertenceria à Marquesa de Santos, mas uma cadeira de ébano, em estilo gótico, sendo esse estilo visto ainda com reservas pelo gosto predominante da época: “un style que la mode a remis en faveur, mais dont le bon goût défend d’abuser ”, advertia o relatório.
Nessa mesma exposição, outro ebanista também foi agraciado: François Baudry (1791-1859).
Embora o relatório oficial do evento tenha sido quase lacônico ao apresentar as razões que levaram o júri a premiá-lo, “por seus belos móveis feitos de freixo”, e tenha Baudry recebido apenas uma medalha de bronze, basta comparar o belíssimo leito exibido por este último profissional (hoje no Museu das Artes Decorativas, de Paris) (fig. n.7) com o leito de Bellangé no Museu Paulista, para entender o que estava acontecendo na evolução estilística do mobiliário francês. Em forma de nacela, feito de madeiras claras e cores vivas, praticamente sem enfeites, com os bronzes cinzelados habituais substituídos por graciosas incrustações de madeira escura, a peça de Baudry se destacava por uma notável leveza e elegância de linhas. Ao que dizem, não era uma peça funcional; constituía antes de tudo um
tour de force de sofisticação técnica, mas, no plano estético, trazia todas as características do que é hoje definido como estilo Carlos X.
Figura n.7 - Leito em forma de nacela,
de autoria de François Baudry, 1827.
Acervo do Museu de Artes Decorativas, de Paris.
Fonte: http://www.lesartsdecoratifs.fr
A psyché
Muito mais do que o leito da marquesa, foi a
psyché que atraiu a atenção do pesquisador Cordier, por conta de uns detalhes que a peça apresenta (fig. n.8).
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Figura n.8 - Psyché da Marquesa de Santos,
obra atribuída a Louis-Alexandre Bellangé, c.1827.
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Foto: Reiche Bujardão, 1996.
Acervo: Museu Paulista-USP
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No mobiliário de estilo neoclássico é muito comum a presença da figura humana: cariátides e telamones, quase sempre fazem as vezes de elementos de sustentação nos cantos do móveis. A figura humana completa, porém, pode eventualmente ser substituída por hermas: cabeças masculinas, ou figuras em meio-corpo, em geral sem braços, coroando pedestais prismáticos ou na forma de um tronco invertido de uma pirâmide de base quadrangular, de acordo com antigos modelos gregos representando o deus Hermes, guardião dos limites fundiários.
Seguindo os passos do destacado historiador de arte, arquitetura e
design Nicolaus Pevsner
(1902-1983), num artigo seu cheio de erudição intitulado
The Egyptian Revival (1956), é possível
deduzir – o autor não fala nada especificamente sobre isso – que desde a Renascença italiana a herma
clássica passou a se confundir com a exótica figura da Diana de Éfeso (tida pelos humanistas italianos
como uma modalidade de deusa Isis). O corpo do ídolo efésio era representado envolvido numa armadura
rígida, de aspecto afunilado, decorada com múltiplos seios e figuras simbólicas de animais, sob a qual
se viam as pontas dos pés nus da deusa. O resultado da similaridade entre os dois temas decorativos,
levou à hibridação e ao surgimento de hermas com pés, nas quais as extremidades dos membros inferiores
apareciam sob o corpo em forma de pilar. Pevsner identificou esse gênero de figura decorativa,
que não ocorreu na Antiguidade, em duas estatuetas de terracota naóforas (i.é. portatoras de templete),
datadas de c.1773 e assinadas por Claude Michel (1738-1814), apelidado Clodion (fig. n.9 ).
O historiador de arte inglês indicou então como fonte de inspiração para essas obras o famoso
livro de Gianbattista Piranese (1720-1778)
Diverse Manieri d’Adornare i Caminni (1769), onde se observam figuras naóforas, de estilo egípcio, com a parte inferior do corpo em forma de base arquitetônica sob a qual é visível o par de pés desnudos, juntos e paralelos, à maneira das antigas esculturas egípcias (fig. n.10).
Figura n.9 - Esculturas de “estilo egípcio” da autoria de Clodion (c.1773).
A da esquerda, segue o modelo da herma clássica, sem braços.
A da direita, pode ter sido influenciada por alguma escultura autêntica do período final da
arte egípcia, que imitava as esculturas do Antigo Império.
Ambas possuem a parte inferior do corpo em forma de pedestal e pés.
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Fonte: PEVSNER, Nikolaus; LANG, S. The Egyptian Revival. In _______.
Studies in Art, Architecture and Design. London:Thames &Hudson, 1968. 2v.v.2.
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Figura n.10 - Prancha de
Diverse Maniere d’Adornare i Caminni (1769),
de autoria de Gianbattista Piranese (1720-1778), mostrando decoração com hermas naóforas, com pés, que teriam servido de modelo para esculturas de Clodion, (c.1773).
Fonte: http://www.georgeglazer.com
O que Pevsner não reparou, porém (pelo menos ele não se manisfestou a respeito), é que o próprio Piranesi pode ter usado como fonte de inspiração para suas fantásticas elucubrações decorativas de “gosto egípcio” o assim chamado
Missal Colonna, obra realizada entre 1526-1532 para o cardeal Pompeo Colonna (hoje na John Rylands University Library, University of Manchester, R. U.), atribuída ao miniaturista Giorgio Giulio Clovio (1498-1578). Numa das páginas do missal (ilustração n°. 28 do artigo de Pevsner), vemos inúmeros temas egípcios e pseudo-egípcios reunidos com o intuito de exaltar a lendária origem da poderosa família italiana Colonna, que se auto-proclamava descendente do próprio deus Ápis! Entre tantos motivos simbólicos e decorativos que enchem a citada página do missal, notam-se esfinges com bases decoradas com falsos hieróglifos, coroas duplas faraônicas representando a união do Alto e do Baixo Egito (pshent), obeliscos, cinocéfalos, deusas aladas e o próprio deus Ápis,
sob a forma de um touro branco, etc. Dentre esses temas de caráter egipcizante – e ao lado da Diana de Éfeso, colocada em posição quase central, tomando parte na composição da letra capitular –, destacam-se algumas hermas: umas femininas, disfarçadas pelo uso de uma variação do
nemes (característico toucado de tecido listrado que protegia cerimonialmente a peruca dos antigos faraós), outras masculinas, de aparência declaradamente clássica. Há, ainda, na iluminura uma outra herma, de cor verde, junto à margem direita da página do missal, que é itifálica, como as genuínas representações rústicas do deus Hermes, mas que deixa à mostra um par de minúsculos pés descalços, sob o corpo em forma de pedestal, por sua vez sincreticamente decorado com falsos hieróglifos (fig. n.11).
Figura n.11 - Página do Missal Colonna, atribuído ao miniaturista Giorgio Giulio Clovio (1498-1578).
À esquerda, em verde, a herma itifálica com pés sob o corpo em forma de pilar.
Infelizmente não discerníveis na imagem.
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Esse exemplar híbrido, de data tão recuada, c. 1526-1532, parece indicar que o tema da
herma com pés foi gerado no ambiente da Renascença romana, então muito impressionada com os exemplares de arte egípcia (autêntica ou imitada pelos antigos romanos) que naquela altura estavam sendo desenterrados do solo da Cidade Eterna e de suas imediações. As
hermas com pés passaram, a seguir, para a Renascença francesa, através das cariátides/hermas com pés, de características egípcias, que ladeiam a porta da tumba de Diana de Poiters em Fontainebleau (c. 1540), de autor desconhecido. A esses exemplares se seguiram outras criações igualmente híbridas (cariátides/hermas com pés/canéforas), idealizadas pelo arquiteto Jacques Androuet du Cerceau (1510-1585), e divulgadas por meio de gravuras (c.1545), e depois delas continuaram a surgir figuras semelhantes ao longo dos séculos XVI e XVII.
O motivo da
herma com pés, travestida de pseudo-estilo egípcio, seria, como vimos, mais tarde retomado por Piranese, no século XVIII. Suponho que este artista conhecesse o
Missal Colonna, pois também na página de rosto de seu citado livro,
Diverse Maniere d’Adornare i Caminni (1769), surpreendemos hermas providas de pés, ao lado de figuras similares à Diana de Éfeso (fig. n.12), tal como se vê na página do missal que descrevemos antes.O tema das hermas bípedes foi deixado pelo artista italiano como herança aos artistas do Neoclassicismo, já no século seguinte, mas o pintor germânico Anton Raphael Mengs (1728-1779), ainda no século XVIII – embora depois de Piranese, como demonstrou Pevsner –, usou hermas de tipo egípcio, masculinas, com pés e
nemes, na decoração da
Camera dei Papiri (c.1770), na Biblioteca do Vaticano (fig. n.13). Artista de precoce índole neoclássica, Mengs, para a criação dessas figuras decorativas, pautou-se pela fiel reprodução dos padrões estéticos clássicos vigentes na figura masculina “egípcia”, vestida de saiote (
shendit) e
nemes descoberta na Vila Adriana, em Tivoli, em 1739, hoje no Museu Gregoriano Egípcio, do Vaticano, Inv. N° 22795 (fig. n.14). Essa escultura de mármore branco é semelhante a outras, de estilo mais caracteristicamente egípcio, de granito vermelho, conhecidas desde os meados do século XV: os telamones encontrados na Vila Adriana, e hoje exibidos na
Sala a Croce Greca do Museu Pio-Clementino, que serviram de modelo para o telamone pintado na
Stanza dell’Incendio, no Vaticano (1514-1517). As três esculturas citadas retratam, na verdade, o favorito do Imperador Adriano (76-138), Antinous (c.110-130), divinizado sob a forma do deus Osíris. As esculturas de granito vermelho, contudo, parece que tinham função arquitetônica e portavam o
calathos (cesto alto e estreito, mas bastante alargado na parte superior, associado ao culto de Demeter e aos Mistérios de Elêusis), assentado sobre o
nemes e rodeado por largas folhas de acanto (figs. n.15 e 16). São, portanto, todas as três esculturas, na verdade, obras de estilo híbrido, que patenteiam o sincretismo religioso existente no mundo romano no início da era cristã, fundamentado na crença da vida eterna após a morte. E estão as três intimamente relacionadas com o
Antinoeion recentemente escavado na Vila Adriana, em Tívoli. (Sobre este assunto, ver: MARI, Zaccaria; SGALAMBRO, Sergio. The Antinoeion of Hadrian’s Villa: an Interpretation and Architectural Reconstruction.
American Journal of Archaeology. Boston, v.3, n.1, p.83-104, jan.2007.)
Figura n.12 - Página de rosto da obra
Diverse Maniere d’Adornare i Caminni (1769).
Notem-se as hermas com pés, de estilo clássico, ladeadas de figuras semelhantes à Diana de Éfeso.
Fonte: http://www.imageandnarrative.be
Figura n.13 - Detalhe da decoração de Anton Raphael Mengs (1728-1779) para a Camera dei Papiri (c.1770),
na Biblioteca do Vaticano. Nos cantos, à direita e à esquerda, meias figuras de hermas “egípcias”:
com um calathos eleusino na cabeça, a parte inferior do corpo em forma de pedestal, decorada com falsos hieróglifos, e pés. A parte superior
da herma está baseada nos padrões do Osíris de mármore branco encontrada em Vila Adriana (1739).
Fonte: PEVSNER, Nikolaus; LANG, S. The Egyptian Revival. In _______. Studies in Art, Architecture and
Design. London:Thames &Hudson, 1968. 2v.v.2.
Figura n.14 - Escultura representando Antinous sob a aparência de Osíris, encontrado na Vila Adriana,
em Tivoli, em 1739.
Modelo para as hermas decorativas de Mengs, pintadas no teto da Camera dei Papiri,
na Biblioteca do Vaticano (c.1770).
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Acervo: Museu Gregoriano Egípcio, Vaticano.
Fonte: http://antinoos.info
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Figura n.15 - Outro tradicional modelo das hermas “egípcias” canéforas: escultura de granito
vermelho encontrada, juntamente com outra idêntica, em meados do século XV, na Vila Adriana, em Tivoli.
Representam Antinous, com o traje do deus Osíris e o calathos eleusino na cabeça. Serviu de
modelo para o telamone pintado por Rafael (1483-1520) e Giulio Romano (1499-1546 ) na
Stanze dell’ incendio (1514-1517), no Vaticano.
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Figura n.16 - Ofertados ao Papa em 1779, os telamones “egípcios” foram, depois de restaurados, colocados
de modo a flanquear a porta da Sala a Croce Greca que conduz à Sala Rotonda, no
Museu Pio-Clementino. c.1780.
Gravura antiga.
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Como já se afirmou atrás, cariátides, telamones e hermas são figuras decorativas freqüentes no mobiliário francês do período neoclássico. Hermas com pés, também não são incomuns. Podemos achá-las, por exemplo, em móveis produzidos por um dos maiores ebanistas da época, François-Honoré-Georges Jacob-Desmalter (1770-1841), o mais conhecido dos Irmãos Jacob e o principal fornecedor do Imperador Napoleão. Tanto o leito do Príncipe Eugênio de Beauharnais (1781-1824), enteado de Bonaparte, antigamente no Palácio das Tulherias e hoje no Palácio de Malmaison, em Paris, quanto a
psyché de Pauline Borghese (1780-1825), pertencente a seu antigo dormitório no Hôtel de Charost (sede da embaixada britânica em Paris), ou um móvel de apoio cuja imagem ora se vê na Internet (http://
www.scholarsresource.com) trazem como figuras decorativas principais hermas de estilo clássico, com pés. Quem sabe não terão servido esses modelos, ou outros semelhantes, de fonte de inspiração para as figuras presentes no espelho da Marquesa de Santos, atribuído a Louis-Alexandre Bellangé?
O propósito do que desenvolvemos até aqui foi esboçar rapidamente a origem do motivo decorativo principal que aparece na
psyché da marquesa, mas, é pouco provável que Bellangé tenha usado a
herma com pés de maneira simbólica. O que haveria de simbólico no espelho residiria, de fato, em outro detalhe, como veremos a seguir.
Coroas de plumas ou cocares de índios?
No alto dos montantes laterais do espelho, que servem de corpos estilizados das hermas clássicas, acham-se belas e jovens cabeças masculinas de bronze, delicadamente cinzeladas. Dentro da estrita tradição da arte grega, essas cabeças exibem serenas feições regulares e estão providas de cabelos curtos e anelados (fig. n.17). Na parte inferior dos montantes, surgem os aludidos pés de bronze, na posição egípcia, juntos, lado a lado, mas portando sandálias de evidente tipo greco-romano (fig. n.18). O que chamou a atenção do pesquisador Sylvain Cordier, porém, em relação a essas figuras foi o tipo de toucado que ostentam.
Figura n.17 - Pormenor da psyché, em que se vê uma das cabeças de herma enfeitada com um cocar e
brincos.
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Acervo: Museu Paulista, USP
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Figura n.18 - Pormenor da psyché, em que se vê um par de pés de uma das hermas,
com sandálias de desenho greco-romano.
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Acervo: Museu Paulista, USP
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O uso de toucados em figuras humanas decorativas no período do Neoclassicismo foi assim resumido por Cordier: ou elas portam coroas de louros, como os heróis greco-romanos, ou o
nemes, no caso das figuras egipcizantes, ou se mantêm simplesmente de cabeça descoberta. A isso poderíamos acrescentar, ao menos, dois objetos eventualmente sustentados pelas cabeças das figuras neoclássicas, o
calathos eleusino, usado como toucado no caso das figuras canéforas (i.é. portadoras de cesto), e os capitéis correspondentes às ordens clássicas, no caso das figuras arquitetônicas chamadas cariátides e telamones. (Neste ponto, cabe evocar as cariátides douradas suportando, não capitéis, mas
calathos, e com uma cornucópia apoiada em cada braço, imaginadas pelo pintor francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) para o baldaquino sob o qual estava entronizada a alegoria do Governo Imperial Brasileiro, pintura do novo pano de boca do teatro do Rio de Janeiro, especialmente feita para o Elogio representado no dia da coroação de D. Pedro, em 1º de dezembro de 1822 – fig.n.19).
Figura n.19 - Litografia de Thierry Frères, segundo desenho de Jean-Baptiste Debret, para a
edição de Firmin Didot, de 1834.
Ilustração do pano de boca executado por Debret (1768-1848) para a representação levada à cena no dia da
coroação de D. Pedro I, em 1°. de dezembro de 1822. Suportando o baldaquino central, vêem-se duas
cariátides – douradas, segundo o autor – com calatho na cabeça.
Primitivamente, só havia palmeiras a rodear o trono do Império Brasileiro,
mas o primeiro-ministro José Bonifácio recomendou que elas fossem substituídas
“por um motivo de arquitetura regular a fim de não haver nenhuma idéia de estado selvagem”.
Debret optou então por figuras alegóricas de estilo greco-romano, alusivas à abundância das riquezas
nacionais.
Fonte: DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1978.2v.v.2.
Com relação à
psyché do Museu Paulista, no entanto, o que surpreendeu Cordier, foi o fato de as hermas decorativas não trazerem na cabeça nenhum dos toucados neoclássicos elencados, mas, sim, coroas de plumas. Uma raridade, segundo o especialista francês, que deve ser considerada, provavelmente, uma alusão explícita aos cocares dos índios brasileiros. Na explicação arguta do pesquisador, poderiam indicar essas coroas que o artesão idealizou a
psyché especialmente para combinar com o leito que estava sendo vendido a uma beldade sul-americana, e o fez de modo a homenagear a sua futura cliente, uma exótica marquesa proveniente de um improvável império estabelecido no Novo Mundo.
Confesso que a sagacidade interpretativa do francês não deixou de me causar certa surpresa, pois já olhara tantas vezes para aquelas cabeças, e nunca me apercebera da importância desse pequeno detalhe. Na verdade, acho que nunca notei a diferença (relativamente pequena) existente entre as coroas de plumas do espelho e o antigo e tradicional
calathos grego, pois as primeiras reproduzem mais ou menos as proporções do cesto cerimonial e as plumas não se afastam muito da aparência das folhas de acanto dos telamones do portal da
Sala a Croce Greca. Parecença que, evidentemente, deve ter sido de todo intencional.
Quando estive depois no Museu Paulista e consultei as fotos de arquivo que documentam os detalhes da
psyché, pude constatar outros pormenores que eram impossíveis de discernir na foto de baixa qualidade que dispunha e, infelizmente, enviara a Cordier. Não só os jovens de aparência greco-romana portavam coroas de plumas, como havia nelas um cordão decorado com desenhos geométricos que a meu ver estavam longe de parecer gregos. E mais do que isso, os jovens usavam longos brincos pendentes, de um modelo que nunca existiu na Antiguidade Clássica, mas que também não me pareceram nenhum pouco inspirados nos usados pelos índios sul-americanos. Em todo caso, era surpreendente – e encantador – ver o exotismo notório dos adornos a contrastar com a beleza calma, tipicamente clássica, das cabeças das hermas. Com sua impassibilidade helênica e sandálias de estilo clássico, as hermas faziam questão de explicitar que só usavam brincos e cocares para mais honrar a dama que se admirava todos os dias diante do espelho.
Era preciso notar, entretanto (fiz questão de alertar Cordier para esse ponto), que as plumas das coroas usadas pelas hermas são de avestruz, ave inexistente no Brasil. Bem diferentes das usadas nos cocares de nossos índios, feitas com penas de pássaros brasileiros. Mas isso indicaria tão-somente, emendei, que o artista francês não estava preocupado com a exatidão etnográfica, tendo sido influenciado talvez pela tradição dos cocares de índios representados a partir da época barroca ou, antes, pela semelhança, já acima mencionada, das plumas de avestruz com as clássicas folhas de acanto que rodeavam certos
calathoi.
Já ia longe os dias do Rei Henrique II (1547-1559), em que tupinambás e tamoios foram levados à França para participar de uma festa brasileira em Ruão, na Normandia (1550), e impressionaram tanto os artesãos de lá com sua aparência extravagante que até hoje existem móveis daquele tempo com bizarros seres fantásticos, característicos dos ornamentos grutescos, coroados com fiéis reproduções de cocares ameríndios. Não coroas de plumas de avestruz, altas e largas, com barbas longas e frouxas, molemente pendentes, mas penas curtas e espetadas, com as barbas interligadas por hâmulos formando o vexilo, que constituem a base da plumária até hoje empregada pelos indígenas brasileiros.
O canapé
Além do leito e da
psyché, que compunham o quarto de dormir da Marquesa de Santos, o Museu Paulista possui em seu acervo um canapé, doado por um descendente como sendo peça também a ela pertencente. À peça é atribuída a procedência francesa e admite-se que também tenha sido executada por Louis-Alexandre Bellangé, porém já datada da década de 1830. Caberá certamente ao pesquisador Sylvain Cordier analisá-la, determinando-lhe a autoria e datação.
O móvel, executado em jacarandá, com assento e encosto de palhinha, apresenta-se excessivamente decorado, mas ainda com ornatos saídos do repertório neoclássico: cabeças de cisnes talhadas na madeira, asas desse tipo de ave, pés em forma de garra e lavores que lembram cornucópias (fig. n.20).
Figuras n.20 e 20 a - Canapé da Marquesa de Santos.
Atribuído a Louis Bellangé, c.1830.
Acervo: Museu Paulista, USP
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Sobre esse assunto, seria interessante observar que o pai do artesão, Pierre-Antoine, executou por volta
de 1810 para o casal imperial francês, Napoleão e Josefina, móveis com cabeças de cisnes, entalhadas na madeira ou fundidas em bronze, hoje exibidas no
Williamsburg Art & Historical Center, em Williamsburg, Brooklyn, N.I., EUA (figs. n. 21 a 23). Em Malmaison, antigo palácio de Josefina, também existem móveis com esse tipo de decoração, executados por Pierre-Antoine (ao que se diz, os cisnes eram o ornato preferido da Imperatriz), e no Hôtel de Beauharnais, adquirido em 1803 pelo Príncipe Eugênio, onde Pierre-Antoine trabalhou com seu filho Louis-Alexandre, entre muitos outros grandes ebanistas da época, também há poltronas com braços decorados com a figura de cisnes (no quarto de Eugênio e no de sua irmã, a Rainha Hortênsia, por exemplo, executados neste caso pelo renomado Jacob-Desmalter) (figs. n.24). Ante esse contexto, verificamos que é, portanto, bastante plausível que Louis Bellangé tenha também realizado peças de mobiliário com esse tipo de adorno, talvez entre elas o canapé em questão.
Figura n.24 - Aspecto do quarto da Rainha Hortência (1783-1837), filha da Imperatriz Josefina, no Hôtel de Beauharnais (1803-1806), Paris, hoje sede da Embaixada da Alemanha na França. Notem-se poltronas com braços em forma de cisnes, de autoria do ebanista Jacob-Desmalter.
Fonte: http://www.allposters.com
Os amores de Pedro I e Domitila
Para que Sylvain Cordier pudesse ter uma idéia de como móveis produzidos por um artesão importante, fornecedor da Coroa francesa, vieram dar no Brasil, decidi providenciar um resumo dos amores havidos entre o nosso primeiro imperador, D. Pedro de Alcântara Bragança e Bourbon (1798-1834) (fig. n.25) e a sua amante Maria Domitila de Castro Canto e Melo (1797-1867) (fig.n.26). Na França, ele não encontrou nenhum material que jogasse um pouco de luz sobre essa questão. Aliás, a melhor obra até hoje sobre o assunto continua sendo o livro que Alberto Rangel escreveu em 1916 e cuja última edição data de 1969:
Dom Pedro e a Marquesa de Santos. Hoje considerado uma obra rara.
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Figura 25 - Retrato de D. Pedro I (1798-1834).
Litografia de Thierry Frères, colorizada à mão, segundo desenho de Jean-Baptiste Debret, para a edição de Firmin Didot, de 1834.
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Figura 26 - Retrato a óleo da Marquesa do Santos (1797-1867). Atribuído a Simplício Rodrigues de Sá, c.1829.
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O relacionamento amoroso entre Pedro e Domitila foi tão tumultuado que não deixa de ser interessante reproduzir em largos traços os percalços dessa ligação arrebatada.
Os amores do Príncipe D. Pedro e Maria Domitila começaram por volta do fim de agosto de 1822, quando estava ele em visita à Província de São Paulo. Foi durante essa estada que declarou a Independência do Brasil do Reino de Portugal em 7 de setembro, ao retornar de uma rápida viagem a Santos. Por volta do fim desse ano, louco de atração por Domitila, o Imperador pediu ao pai dela que a levasse para a Corte, juntamente com toda a família (ela já estava então separada, mas ainda não divorciada de seu primeiro marido). Domitila chegou ao Rio de Janeiro em fevereiro de 1823. Numa carta datada de 1825, D.Pedro faz menção à promessa que fizera para convencê-la a se tornar sua amante. Ele diz textualmente que ela e sua família não morreriam de fome, porque estava pronto a fazer sacrifícios por ela – quer dizer, sacrifícios pecuniários...
A relação amorosa dos dois seguiu seu curso a partir de então, plena de intensidade durante os anos de 1824, 1825, 1826, embora ensombrecida pelas constantes aventuras passageiras do Imperador, que não sabia ser fiel a mulher alguma. A relação, exposta aos olhos de todos, teve de enfrentar forte resistência, tanto da ultrajada Imperatriz Leopoldina (1797-1826) (fig. n.27), quanto de alguns importantes homens políticos da Corte, como José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), inimigo declarado da futura marquesa.
Figura n.27 - Retrato a óleo da Imperatriz Leopoldina (1797-1826). Sem referências.
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A vida amorosa dos dois amantes era, de fato, uma sucessão de escândalos e intrigas, muitas delas de caráter político. O Imperador era a própria reencarnação de Don Juan Tenorio e Domitila era livre, ambiciosa e manipuladora. Indignava a Corte com suas atitudes insolentes e abusava de sua ascendência sobre o Imperador. Deu-lhe seis filhos, dos quais só sobreviveram duas meninas: a Duquesa de Goiás (1824-1898) e a futura Condessa de Iguaçu (1830-1896) (figs. n.28 e 29).
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Retrato da Duquesa de Goiás (1824-1898).
Sem referências.
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Retrato da Condessa de Iguaçu (1830-1896)
por Ferdinand Krumholtz.
MNBA.
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Em maio de 1826, o palacete da amante do Imperador foi inaugurado na Rua Nova do Imperador, no bairro da Quinta da Boa Vista. Chamado
Casa Amarela, era uma construção já existente, próxima do palácio imperial de São Cristóvão, que foi totalmente renovada por arquitetos e artistas, alguns dos quais franceses vindos com a Missão Lebreton em 1816. O palacete só seria terminado em setembro de 1827.
O mobiliário de aparato do palacete foi provavelmente todo importado. A Dinastia dos Bragança, a exemplo de outras realezas européias, era habitual consumidora de mobiliário de luxo de origem francesa. Segundo Jean-Baptiste Debret, em 1817, D. João VI encomendara a mobília de quarto para o casal de príncipes reais, Pedro e Leopoldina, “a Jacó, em Paris”, que só pode ser François-Honoré-Georges Jacob-Desmalter, falido pouco antes da derrocada do Império Napoleônico (1804-1814), mas que conseguiu se reerguer durante a época da Restauração (1814-1830) e continuar fornecendo verdadeiras obras-primas para as Cortes da Europa e...da América do Sul.
Na
Casa Amarela vivia luxuosamente Domitila, com os salões abertos para freqüentes recepções. Em 1825, recebeu o título de Viscondessa de Santos, numa provocação explícita a José Bonifácio, seu inimigo pessoal, que era natural dessa vila paulista. Em outubro do ano seguinte, foi elevada ao título de marquesa, enquanto o pai e o cunhado, marido de sua irmã Maria Benedita (1792-1857), também amante de D. Pedro, tornam-se barões. O Imperador distribuiu fartamente cargos, condecorações e outros favores aos demais membros da família da amante.
No fim do ano de 1826, em 11 de dezembro, após um parto prematuro provocado por uma agressão física recebida do Imperador por causa da marquesa, faleceu a Imperatriz Leopoldina, em conseqüência de uma septicemia puerperal. Domitila sonhou então tornar-se a nova Imperatriz do Brasil. Mas tudo não passava de uma ilusão, porque o Imperador ordenou que se procurasse uma nova esposa para ele entre as famílias reais católicas da Europa.
Nesse meio-tempo, em meados de 1827, começaram a falar na Corte de brigas entre os dois amantes, mas as crises conseguiram ser superadas. Por causa da presença da paulista na Corte, não se encontrava uma esposa de sangue real para o Imperador. A partir daí, as relações entre ela e D. Pedro começam a deteriorar. Uma noite, o Imperador surpreendeu um admirador no salão da marquesa. D. Pedro lhe deu um golpe no rosto com o rebenque e, em reação, o jovem agredido atirou no Imperador. A bala errou o alvo e foi perfurar uma tela renascentista que adornava o salão de Domitila.
Algum tempo depois, a marquesa cansada de sofrer com o relacionamento de Pedro com sua própria irmã, a Baronesa de Sorocaba, decidiu, simplesmente, mandar eliminá-la. Após o malogrado atentado de 15 de outubro de 1828, o Imperador concluiu que era chegada a hora de pôr um basta em seu relacionamento com a amante oficial. Ela partiu imediatamente, mas, chamada por ele, voltou para a Corte em abril do ano seguinte.
O retorno da marquesa deixou D. Pedro feliz; como não haviam conseguido encontrar uma noiva adequada para ele, resolveu casar-se com Domitila. Subitamente, porém, chegam notícias do Exterior: o diplomata encarregado de procurar uma nova esposa imperial assinara um contrato de casamento (30 de maio de 1829) em nome do monarca com a jovem Amélia de Leuchtenberg (1812-1876) (fig.n.30), filha de apenas dezessete anos de Eugênio de Beauharnais, enteado do ex-imperador Napoleão, e neta da defunta Josefina (1763-1814), ex-Imperatriz da França. O contrato seria ratificado por uma lei no Brasil em 30 de julho e a cerimônia de casamento se desenrolaria em Munique em 2 de agosto de 1829. Diante da nova situação, o Imperador decide romper com a Marquesa de Santos, e desembaraça-se dela definitivamente.
Figura n.30 - Retrato da Imperatriz Maria Amélia.
Litografia de Jean-Baptiste Aubry- Lecomte , c. 1830.
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Domitila vê-se forçada a vender seus bens imóveis ao Imperador e ganha, em troca, uma pensão anual de 12 contos de réis. Inicia então a derradeira viagem para São Paulo, depois de ter despachado seus móveis pelo bergantim
União Feliz – um nome bem irônico para quem saia de uma conturbada relação amorosa de sete anos. Surto no porto do Rio de Janeiro, o navio estava pronto para partir para Santos, segundo noticiava a imprensa diária da época em 28 de agosto de 1829.
Depois de uma longa e exaustiva viagem por terra (de 600 km mais ou menos, pelo caminho que antigamente ligava Rio a São Paulo), a marquesa, grávida mais uma vez do Imperador, chega à capital paulista. Fizera o percurso parte em liteira (bangüê), parte a cavalo. Uma vez na cidade, vai-se instalar, temporariamente, na casa de Francisco Inácio de Sousa Queirós, um Pais de Barros aparentado com Brigadeiro Tobias de Aguiar (1794-1857), futuro marido da marquesa. Ausente da Capital, Queirós deixou sua casa da Rua de São João ao dispor da amante repudiada. Com o tempo, ela se reaproximará de Rafael Tobias, um velho conhecido, homem de grande fortuna nascido em Sorocaba, mas só se casará com ele em 1842, às vésperas da revolução liberal desencadeada nesse ano e depois de lhe ter dado quatro filhos.
Em 1834, compra dos irmãos Gavião Peixoto, uma grande casa de dois pisos na Rua do Carmo (atual Roberto Simonsen), que pertencera ao avô deles, o opulento Brigadeiro Pinto de Morais Leme. Muda-se para aí com 25 escravos e alguns membros da família, entre os quais sua mãe viúva, e aí permanece até sua morte em 1867.
Com a idade, parece ter adquirido finalmente sensatez e serenidade de espírito. Tornou-se figura respeitada
em São Paulo por sua benevolência e por seus freqüentes atos de benemerência. O túmulo que ocupa no
Cemitério da Consolação, transformou-se num lugar cheio de reverência, onde devotos iam rezar, fazer
pedidos e queimar velas votivas (atividade depois proibida pelos descendentes). Afinal de contas, que
belo destino: a antiga cortesã acabou por se tornar quase uma santa...
Conclusão
Pelo que vimos acima, chegamos à conclusão de que os móveis franceses da marquesa, ao menos o leito e a
psyché, foram adquiridos entre o segundo semestre de 1827, quando seu palacete estava praticamente pronto, e 1829, ano em que teve de abandonar a Corte. É provável que a mobília tenha sido despachada da Europa em fins de 1827 ou no início de 1828, seja por meio de intermediários do governo brasileiro, seja por meio de intermediários da própria marquesa. Segundo Alberto Rangel, o Imperador cobria as despensas da marquesa com recursos financeiros próprios e não com dinheiro público, mas nunca se sabe. Afinal, as relações entre o público e o privado não eram bem definidas naquela época (e, de fato, infelizmente, os jornais demonstram que até hoje continuam não sendo).
Com referência à maneira pela qual os móveis foram adquiridos na Europa, Sylvain Cordier pretende consultar, assim que possível, os arquivos dos Negócios Estrangeiros em Paris, para verificar se eles conservam documentos sobre as compras feitas na França pelas cortes estrangeiras. Sua idéia é que a administração francesa, tendo recusado o leito feito por Louis Bellangé para o Rei Carlos X, haja talvez lançado mão das relações diplomáticas para achar um cliente de importância, à altura da peça recusada.
O pesquisador francês, por fim, se pergunta se os contatos que Louis Bellangé manteve com Brasil, por conta da venda do leito à marquesa e da execução da
psyché com detalhes alusivos aos índios sul-americanos, não teriam tido como conseqüência algo a ver com sua decisão de se mudar para o México em 1844, em busca de fortuna, na companhia do filho adotivo. É possível que esses contatos tenham contribuído para seu desejo de atravessar o Atlântico e viver num país da América Latina. E conclui : « si la distance entre le Brésil et le Méxique est importante, les deux pays devaient, je pense, être assez proches dans l’esprit d’un Français du XIXe siècle".
De minha parte, só resta constatar que o mobiliário francês tinha grande significado para sua proprietária. Chegado a Santos, teve de ser transportado em lombos de mulas até São Paulo, atravessando a perigosa Serra do Mar, numa viagem estafante, enquanto a maioria das pessoas preferia vender tudo em leilão quando havia necessidade de realizar alguma mudança de endereço (naquele tempo não havia companhias que fizessem esse tipo de serviço) A marquesa teve, sem dúvida, de enfrentar grandes incômodos e despesas consideráveis para despachá-los e isso revela o alto valor de seus bens móveis, tanto do ponto de vista meramente material, quanto do sentimental.
Segundo informações colhidas no Museu Paulista, o leito e a
psyché foram herdados pela mulher de um dos netos da primeira proprietária. Em 1954, os descendentes dessa senhora resolveram doá-los ao museu. O canapé, por seu turno, foi recebido por meio de doação feita por um outro descendente de Maria Domitila.
Acham-se hoje expostos de modo pouco adequado, já que a instituição não dispõe nem de espaço, nem de meios para a sua correta apresentação museológica, nem há textos explicativos à altura de sua importância histórica e simbólica.
Apesar disso, merecem ser apreciados, como exemplos da marcenaria fina francesa do início do século XIX e também por constituírem um testemunho de uma faceta da História do Brasil não muito edificante...
Eudes Campos
Seção Técnica de Estudos e Pesquisas
Agradeço ao assistente-pesquisador Sylvain Cordier, da Universidade Paris IV, por ter compartilhado comigo suas opiniões acerca dos móveis da marquesa. Faço votos para que sua tese alcance um grande sucesso.
Agradeço também a gentileza da Prof. Dra. Heloisa Barbuy, então diretora em exercício do Museu Paulista, por ter posto à minha disposição tanto documentos relativos aos móveis da Marquesa de Santos, quanto sobre o mobiliário produzido por membros da família Bellangé.
Bibliografia
- ANDRADE, Adauto Fernandes. A marquesa de Santos na história do Brasil. 2ªed. São Paulo: s.n.,1975.
- BAZIN, Germain. Dictionnaire des Styles. Paris: Somogy, 1987.
- DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1978.2v.v.2.
- LEDOUX-LEBARD, Denise. Les 3 Bellangé ; fournisseurs de la cour. Connaissance des Arts, n.153, p.86-93, nov.1964.
- MARI, Zaccaria; SGALAMBRO, Sergio. The Antinoeion of Hadrian’s Villa: an Interpretation and Architectural Reconstruction. American Journal of Archaeology. Boston, v.3, n.1, p.83-104, jan. 2007.
- PEVSNER, Nikolaus; LANG, S. The Egyptian Revival. In _______. Studies in Art, Architecture and Design. London: Thames &Hudson, 1968. 2v.v.2.
- RANGEL, Alberto. Dom Pedro e a Marquesa de Santos. São Paulo: Brasiliense, 1969.
Documentação eletrônica
- Rapport sur les produits de l'industrie française présenté au nom du jury central à S. E. M. le Comte de Saint-Cricq [rédigé]. par M. Le Vte Héricart de Thury et M. Migneron. (1828, 1 vol.).
http://cnum.cnam.fr/RUB/fcata.html
(Consulta realizada em janeiro de 2008)