Dom João VI e o cotidiano das mulheres em São Paulo:
um reflexo na moda
O Príncipe Regente nosso senhor fica na inteligência de haver Vossa Senhoria proibido solenemente o
andarem as mulheres nessa cidade embuçadas em baetas cominando-lhes as penas que se acham impostas pela
lei, e ordenou o mesmo senhor que o produto das condenações impostas aos transgressores por semelhante
delito Vossa Senhoria o aplique no Hospital dos Lázaros dessa cidade. Deus guarde a Vossa Excelência.
Palácio do Rio de Janeiro em 30 de agosto de 1810. [Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo, Vol. XIV, 1808-1813, p. 305]
Não obstante os vários estudos que se fizeram a respeito da transferência de D. João VI para o Brasil em
1808, no geral as análises ou acabam por destacar os grandes acontecimentos vinculados à política ou
economia ou, ainda, aos problemas verificados no Rio de Janeiro por conta do grande contingente de
pessoas que acompanhou a Família Real. Nessa última vertente, temos alguns estudos que analisam o choque
cultural experimentado pelos dois grupos: de um lado os portugueses – vindos de uma corte européia – e de
outro os brasileiros, uma comunidade composta, em sua maioria, por mestiços, agora vivendo ambos os
grupos os num mesmo espaço.
Menos estudados que as manifestações no plano macro foram os efeitos verificados na vida do povo comum, no cotidiano das pessoas que viviam em outras comunidades; em São Paulo, por exemplo. Eis aqui um campo a ser explorado.
Nesse sentido, vamos tentar examinar com mais cuidado duas das inúmeras ordens emitidas pelo rei e que repercutiram na cidade. A primeira delas, já explicitada acima (na abertura deste artigo), e uma segunda que poderá ser encontrada no texto da Seção de Logradouros neste mesmo Informativo. Iniciemos então com a ordem proibindo
as mulheres de andarem embuçadas em baetas.
Costume antigo em São Paulo, a utilização de mantilhas (que cobriam a cabeça e parte do rosto das mulheres) remontava a um figurino muito comum em Portugal e na Espanha medieval. De fato, pode-se mesmo dizer que este traje foi um legado deixado pelos árabes naquela parte do continente europeu e que, mais tarde, foi transplantado para o Brasil. A baeta, um tecido um tanto quanto grosseiro feito de lã ou algodão, foi a fazenda mais utilizada em São Paulo desde o século XVI, permanecendo ainda em uso até finais do XIX. Nos primeiros tempos, como notou Frei Vicente do Salvador, tanto aquela indumentária, quanto o tecido, eram privativos de uma classe abastada,
já que
se havia alguma capa de baeta e manto de sarja se emprestava aos noivos e noivas para irem à
porta da igreja. Posteriormente, a baeta passou a ser usada principalmente pelos mais pobres, sendo este também o tecido que vestia os escravos.
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"Modello do modo de trajar das senhoras da cidade de S. Paulo".
Anônimo. c.1820.
Aquarela (14 x 8 cm)
Fonte: LAGO, Pedro Correa do. Iconografia paulistana do século XIX. São Paulo: Metalivros/BM&F, 1998.
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Nada a estranhar, portanto, que as mantilhas fossem utilizadas pelas mulheres paulistas nos séculos XVI e XVII. Mas, nos setecentos, esta moda já fora abolida tanto em Portugal quanto nas cidades litorâneas do Brasil, a exemplo de Salvador e Rio de Janeiro. Entretanto, em São Paulo, as capas e mantilhas permaneciam em uso, como que a desafiar os novos costumes.
Estranhou-nas inúmeros viajantes e administradores portugueses, como o então governador da Capitania, Martim Lopes Lobo Saldanha que, em 1775, criticou essa prática e lembrou que uma lei de 20 de agosto de 1649 já proibira o uso de rebuços e chapéus pelas mulheres. Mais ainda, disse ele, por conta de um alvará datado de 6 de outubro do mesmo ano, esta proibição foi ampliada, uma vez que tão pouco elas poderiam sair às ruas com as caras encobertas, ou meio encobertas. A proibição era para todas as mulheres, não importando aqui sua condição ou classe social. Em outras palavras, fossem pobres ou ricas, livres ou escravas, todas elas estavam sujeitas a tal impedimento. A partir de 1775, como ordenou o governador, todas as mulheres paulistas deveriam andar com o rosto descoberto até o peito. As transgressoras, por outro lado, estavam sujeitas a multa, prevendo-se inclusive a pena de prisão.
Mas, e qual seria a razão para tanta celeuma? O mesmo Martim Lopes cuidou de explicar que, para
além de detestável e inculta, era uma grosseria andarem as mulheres rebuçadas em baetas e com chapéus na
cabeça para mais se cobrirem, dando liberdade para que muitas delas entrassem até de dia em casas de
homens, onde não entrariam se não usassem os rebuços e chapéus. Porém, esta não era a única razão, ponderou o governador, uma que vez que, aproveitando-se da dita “moda”, também os homens assim se disfarçavam com o intuito de praticar variadas agressões para, em seguida, escapulirem impunes.
Transformados em caso de polícia, os rebuços (ou as mantilhas que cobriam o rosto das mulheres), como visto, estavam proibidos em São Paulo desde pelo menos 1649; reforçando Lopes Saldanha em 1775 que tal medida continuava em vigor. Mediante essa atitude, podemos inferir que tais ordens não eram cumpridas em São Paulo, sendo mesmo um prenúncio de que também não seriam daí por diante. E foi justamente o que ocorreu.
Não se importando muito com as multas ou ameaças de prisão, as mulheres continuaram a se vestir com a proibida indumentária. Assim procedendo, o arraigado costume observado entre as paulistas de se cobrirem com as mantilhas podem nos revelar outros aspectos da questão, senão vejamos:
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"Lady of St. Paul's".
Charles Landseer. 1827.
Lápis (16 x 11,5 cm)
Fonte: LAGO, Pedro Correa do. Iconografia paulistana do século XIX. São Paulo: Metalivros/BM&F, 1998.
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Uma das razões para o seu sucesso entre as paulistanas poderia ser, por exemplo, as marcas deixadas por
uma doença muito comum naquela época: a varíola. Como se sabe, esta enfermidade poderia não matar,
mas deixava impressa na pele (nos braços, mãos e principalmente no rosto) profundas cicatrizes.
E estas de tal maneira incomodavam, nos lembra Mary Del Priore, que muito comum era a utilização pelas
mulheres do século XIX de vários cosméticos como o pigmento branco alvaiade, que cobria o rosto e
escondia as marcas das doenças, servindo mesmo para
dissimular, apagar e substituir as
imperfeições então corriqueiras, como as da varíola. Na falta desses produtos, as paulistanas tinham a seu favor esta indumentária que as preservavam. As mantilhas, portanto, serviam a tais propósitos, ou seja, para esconder e disfarçar o mal das bexigas, as suas marcas e sinais.
Não obstante esta relação entre a roupas e as marcas da doença, vale lembrar que o
disfarce
proporcionado pela vestimenta se dava também por outro motivo, ou seja, para esconder a pobreza de muitas
delas. Maria Odila Leite Silva Dias, por exemplo, esclarece que
por trás da moda furtiva de mantos e
baetas negras, para esconder a pobreza, desvendava-se o processo de multiplicação de moças pobres e brancas.
Nesse caso, explica Maria Odila, a roupa era um bom artifício para as mulheres que
saíam misteriosamente à rua à noite para cumprir misteres como buscar água ou fazer compras,
tarefas estas que cabiam antes a escravos do que a donas brancas.
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"Lady of St. Paul's".
Charles Landseer. 1827.
Lápis (11 x 5,5 cm)
Fonte: LAGO, Pedro Correa do. Iconografia paulistana do século XIX. São Paulo: Metalivros/BM&F, 1998.
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Seja por motivos estéticos, seja disfarçar a pobreza, o fato é que as mantilhas continuaram a ser usadas, não sendo obstáculo algum as proibições oficiais.
Entretanto, esta situação iria sofrer uma alteração com a proximidade do rei (antes em Lisboa e agora no Rio de Janeiro) o que redundava numa facilidade de comunicação entre o governo local e a corte. O aparato administrativo, por sua vez, se fez mais presente nas cidades e vilas distantes, incluindo São Paulo.
Não por outro motivo, o novo governador da Capitania, Antônio José da Franca e Horta (que governou de 1802 a 1811) considerou o assunto e alertou D. João VI sobre os trajes proibidos e ainda muito utilizados pelas paulistanas. Escreveu-lhe uma carta citando todos os problemas causados pela singular indumentária, e fez ver ao soberano que uma medida mais drástica deveria ser tomada para dar fim ao costume. Ele mesmo, por sinal, já havia ordenado tal proibição através de uma regulamentação, mas esperava a concordância do rei para que esta se tornasse efetiva.
E, de fato, D. João aceitou o conselho do governador Franca e Horta, ocasião em que emitiu a Ordem Régia de 30 de agosto de 1810 na qual determinou, solenemente, a proibição de andarem as mulheres paulistas embuçadas em baetas.
A partir desse momento verifica-se uma alteração nesse costume; lenta, é preciso reconhecer, mas daí por diante tal figurino foi caindo em desuso.
Sob esse aspecto, vale lembrar que até meados dos oitocentos, ainda se viam, aqui e ali, algumas
mulheres
embuçadas, como notou o romancista Bernardo Guimarães (autor do romance
A escrava Isaura)
no período em que foi estudante da Faculdade de Direito de São Paulo, entre 1847 e 1851. Mas, disse ele,
esta já era uma vestimenta utilizada apenas pelas escravas e mulheres mais pobres, que ainda costumavam
embrulhar a cabeça e os ombros em dois côvados de pano ou de baeta em que não andara nem tesoura nem
agulha.
Sem sombra de dúvida, a corte portuguesa no Brasil foi uma força poderosa que produziu efeitos na macroeconomia e política, mas, também, nos costumes e no cotidiano do povo comum.
Luís Soares de Camargo
Fontes primárias impressas
- Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo, Vol. XIV, 1808-1813.
Bibliografia
- BRUNO, Ernani da Silva. História e Tradições da cidade de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1984.
- DIAS, Maria Odila Leite Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984.
- GUIMARÃES, Bernardo Joaquim da Silva. Rosaura a engeitada. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1914.
- MARTINS. Antonio Egydio. São Paulo antigo 1554-1910. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
- PRIORE, Mary Del. Lindas e sedutoras desde 1500. Em: Revista Nossa História, Rio de Janeiro: Editora Vera Cruz, Ano 2, nº 23, setembro de 2005.
- SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil.
Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br