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São Paulo, março/abril de 2008
Ano 3 N.17  

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  • LOGRADOUROS

  • D. João VI e as ruas de São Paulo


    A partir da constituição do núcleo urbano paulistano, em meados do século XVI, de imediato surgiu a necessidade de identificar os espaços públicos que surgiam através de nomes próprios e diferenciados. Prática antiga na história da humanidade, a denominação dos logradouros públicos no interior das cidades (ruas, praças, avenidas etc.) vincula-se a várias necessidade impostas pela vida na cidade como, por exemplo, a rápida localização de edifícios, sejam eles públicos, religiosos ou mesmo particulares, colmo a casa de determinado morador.


    Planta da Imperial Cidade, 1810 "Planta da Imperial Cidade de S. Paulo" (1810) pelo Capitão de Engenharia Rufino J. Felizardo e Costa, conforme cópia realizada em 1841.

    Fonte: São Paulo antigo plantas da cidade.
    São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954.


    Surgida no entorno de uma capela construída pelos jesuítas (um misto de igreja e escola de catequização para crianças indígenas), o primeiro logradouro da cidade foi justamente uma praça aberta em frente à capela. Tendo em vista as características do edifício, a mesma receberia o nome de Pátio do Colégio. Com o passar dos anos, dezenas de outras ruas foram abertas e denominadas, mas, ao contrário do que hoje ocorre, eram os próprios moradores que escolhiam os nomes mais apropriados, e o faziam considerando a predominância de um templo religioso, um aspecto da geografia local, uma referência a um tipo de comércio existente ou, ainda, utilizando o nome de um morador muito conhecido.

    E assim foi por cerca de 250 anos, ou seja, quem atribuía nomes às ruas era a própria população, sem qualquer interferência por parte da Câmara Municipal que se constituía no governo local.

    Em seu livro Vida e Morte do Bandeirante, Alcântara Machado apresentou esse aspecto da história, ou seja, sobre as primeiras denominações dadas às ruas da cidade. Analisando antigos Inventários e Testamentos, ele constatou que nos processos mais remotos não se mencionava a situação exata dos imóveis (os endereços das residências). E nem era preciso, porque a cidade era tão pequena e poucos eram seus moradores que todos se conheciam. Nos seus primeiros anos, por exemplo, as casas construídas em São Paulo não possuíam números, pois todos sabiam onde elas se localizavam.

    Nesse ponto, poderíamos então perguntar: de que maneira as pessoas escreviam seus endereços? Alcântara Machado recolheu alguns deles em documentos dos séculos XVI e XVII. Assim, ficamos sabendo que os antigos paulistanos residiam... pegado com Pedro Taques, junto à casa da Fundição, junto aos muros dos frades de São Francisco, defronte do Colégio, defronte do pelourinho, ou defronte a Cadeia. E isso bastava, pois os moradores localizavam-se uns aos outros a partir dessas poucas informações.

    Entre os séculos XVII e XVIII, já estavam abertas no centro histórico paulistano as ruas Boa Vista, da Quitanda e a Ladeira Porto Geral, dentre outras. Essas antigas denominações foram das poucas que permaneceram até os dias de hoje, uma vez que algumas extremamente pitorescas acabaram desaparecendo como o Beco da Cachaça (trecho incorporado à Rua da Quitanda), Beco do Inferno (atual Rua do Comércio) e o Beco dos Cornos (atual Rua da Assembléia).

    A grande maioria dessas denominações populares não mais existe seja pela interferência do governo que substituiu grande parte delas, seja pelo simples desaparecimento das vias por conta das várias reformas urbanas que a cidade sofreu. Mas, vale notar que esses dois processos não foram os únicos que interferiram na história das ruas.

    A constante alteração nos nomes dos logradouros (um fenômeno que permanece atual) tinha uma outra razão bastante considerável num passado mais remoto, ou seja, pela sua característica de ser algo do domínio popular, não havia ainda uma regulamentação oficial sobre o tema. E isso pelo menos até a chegada de D. João VI ao Rio de Janeiro em 1808.

    Nesse sentido, merece destaque na História das Ruas de São Paulo o momento preciso em que o governo local assume esse controle. E o motivo principal para que isso ocorresse, como veremos, foi a cobrança de impostos.

    Pouco tempo após a instalação da corte no Rio de Janeiro, D. João sentiu a necessidade de reorganizar as finanças, certamente depauperadas frente aos gastos que a nova situação impunha. A centralização do governo, bem como a criação de novas instituições como o Banco do Brasil e o Conselho da Fazenda, foram algumas das ações que visavam solucionar o sério problema de um cofre praticamente vazio. Ao lado dessas medidas, houve ainda um maior rigor na cobrança dos impostos e, também, na criação de novas taxas como a Décima Urbana.

    Este novo tributo foi criado por D. João através do Alvará de 27 de junho de 1808 e imediatamente colocado em prática no Rio de Janeiro e nas cidades mais importantes do reino. Como sugere o próprio nome do imposto, esta era uma taxa que deveria ser cobrada de todos os proprietários de prédios urbanos na razão de 10% do valor dos imóveis. A título de curiosidade, a Décima Urbana foi depois assumida pelos governos provinciais e, atualmente, é um imposto municipal, o conhecido IPTU.

    Mas, como cobrar um imposto sobre a propriedade urbana numa cidade como São Paulo, onde os nomes das ruas não eram oficiais e, fato mais grave, onde os imóveis nem número possuíam? Como sabemos, a cobrança de impostos implica na elaboração de um cadastro minucioso para que se torne efetivo. Mas, em São Paulo, tal condição não existia.

    Não por outro motivo, no dia 9 setembro de 1809 os vereadores paulistanos receberam um ofício do Ouvidor da Comarca, Miguel Antonio de Azevedo Veiga, nos seguintes termos:
      Para a mais pronta expedição do lançamento da Décima que pretendo fazer nos predios urbanos desta cidade, logo que me recolha da correição das villas do Norte, ordeno a Vossas Senhorias que sem perda de tempo passem a mandar escrever em cada principio de rua na quina, ou canto de casa, que ficar mais comodo o nome da mesma rua, e consecutivamente em cada propriedade de casa os numeros por letras de algarismos desde um até ficarem numeradas todas as propriedades de cassa da respectiva rua, começando novamente pelo mesmo número um na seguinte rua, tudo como na primeira, de maneira que em toda a cidade não fique rua, ou beco sem nome, assim como propriedade alguma de casa sem número no alto da porta, que der principal servidão á mesma casa, pela maneira que fica insinuada. Deus Guarde a Vossas Senhorias. (meus destaques)
    Em outras palavras, o Ouvidor determinava aos vereadores que registrassem as denominações das ruas em placas e numerassem as casas. O motivo para isso era bem claro: a cobrança do novo imposto, a Décima Urbana.

    É interessante notar que um episódio de nossa história - a chegada de D. João VI ao Brasil em 1808 - apesar de muito analisado pelos nossos historiadores, guarda ainda esse importante aspecto, pois alterou significativamente o cotidiano ou a vida das pessoas nas cidades brasileiras.

    A esse respeito, podemos citar ainda uma outra correspondência recebida pela Câmara Municipal de São Paulo dias antes daquela ordem para nomear as ruas e numerar as casas:
      Pelo Alvará de 3 de junho do corrente ano, é Sua Alteza Real servido mandar cobrar nesta capitania o tributo da sisa, que vem a ser dez por cento das compras, e vendas dos bens de raiz, e meia sisa de cinco por cento nas que se fizerem de escravos ladinos em todo o Estado do Brasil, tendo princípio este imposto na data do dito Alvará em diante. Por Alvará da mesma data é Sua Alteza Real igualmente servido mandar estabelecer nesta cidade , nas vilas, e lugares notaveis de serra acima desta capitania a decima nos predios urbanos para o que se ha de proceder nos respectivos lançamentos e ser arrecadada a sobredita decima nos tempos determinados." (meus destaques)
    Posteriormente, os vereadores tomaram todas as medidas preconizadas pelo Ouvidor no que diz respeito à s olicitação para a numeração das casas e denominação das ruas. No dia 5 de novembro de 1809, por exemplo, eles informaram que colocaram em praça (uma espécie de concorrência pública) a dita obra para ver que por menos o fazia. Mas, apresentou-se apenas um concorrente dando o lance de noventa e seis mil reis, um preço exorbitante nas palavras dos vereadores. Por conta disso, resolveram eles mesmos fariam o trabalho de emplacamento das ruas por meio de vários pequenos contratos com empreiteiros. Assim as despesas seriam menores. Consultado a respeito, o Ouvidor aceitou a proposta da Câmara e disse textualmente qu á vista de todo o ponderado, approvo que Vas. Sas. mandem fazer a obra quanto antes, ou por jornaes, ou de empreitada, tudo com a maior economia, e zelo, como espero.

    A partir desse momento, o governo municipal passa a atuar também nesse campo (a denominação dos logradouros) que, até então, ficava mais a critério dos próprios moradores. De outra parte, ao tornar efetiva a cobrança do novo imposto com a respectiva numeração das casas, um controle maior poderia ser exercido na vida dos cidadãos. Eis aqui outro resultado da vinda da corte portuguesa e de D. João VI para o Brasil em 1808.

    Luís Soares de Camargo
    Seção Técnica de Manuscritos



    Fontes impressas
    • Atas da Câmara Municipal de São Paulo.

    Bibliografia
    • CAMARGO, Luís Soares de. Os nomes das ruas no Bom Retiro e na Luz. In: SCIFONI, Simone (org.). Bom Retiro: memória urbana e patrimônio cultural. São Paulo: IPHAN, 2007, p. 29 a 51.

    • __________. História das ruas de São Paulo.
      Disponível em:
      http://www.dicionarioderuas.com.br
      http://www.arquivohistorico.sp.gov.br (link Logradouros)

    • MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Empresa Gráfica Revista dos Tribunais, 1930.

    Serviços: A Seção Técnica de Logradouros é responsável pela pesquisa e orientação aos interessados sobre nomes de logradouros paulistanos. A documentação está disponível para consulta através do atendimento ao público.
    Conheça também o site Dicionário de ruas (parceria AHMWL e Plamarc), onde através de um banco de dados é possível realizar pesquisas sobre denominações de logradouros paulistanos.

     
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