Foi este personagem certamente o empreiteiro de obras públicas mais popular de sua época, e sua carreira controvertida dá
oportunidade para que surpreendamos o conflito então surgido entre o
tradicional da sociedade brasileira e os novos
valores burgueses que então se disseminavam por entre os setores mais avançados da sociedade paulista. Muitas construções
provinciais erguidas na Capital durante a segunda metade do século retrasado, tiveram sua execução devida à iniciativa
desse capitão da Guarda Nacional, que, a acreditar nas críticas de parte de seus contemporâneos, não tinha as mínimas condições
para exercer a função de diretor de obras.
. Com a morte do pai em 1846,
assumiu Bernardo o cargo deixado vago na administração do Jardim Público. Filiado ao
Partido Conservador, foi durante décadas protegido por seus correligionários políticos.
Uma lei de 1857 chegou a lhe conceder prerrogativas extraordinárias: não podia ser demitido do cargo de
inspetor do Jardim Público senão em virtude de sentença passada em julgado e foi-lhe permitido manter uma residência no local pelo
prazo de trinta anos.
Fig. 1- Retrato do capitão Antônio Bernardo Quartim.
Fig.2- O velho Teatro de Ópera de São Paulo, frequentado por D. Pedro I em 1822, situava-se no Pátio de Colégio.
Aqui assinalado por meio de uma seta, o imóvel aparece representado em desenho que orna a margem da planta da cidade datada de 1841
(recopiada em 1918).
.
O projeto apresentado na ocasião por Quartim era, ao que parece, da autoria do engenheiro paulistano Francisco Antônio de Oliveira
(1796-1871), então coronel do Estado Maior do Exército (
Fig.3- Francisco Antônio de Oliveira, coronel do Estado Maior do Exército ao tempo da construção do Teatro São José.
Retrato executado por Nicolau Huascar de Vergara, 1876.
Fonte: O POLICHINELLO. São Paulo, n.21, 1876.
.
Mais tarde ressurgiram denúncias de defeitos na construção, inclusive na composição da argamassa empregada, pelo qual foi responsabilizado
de novo o “operario director dos trabalhos”. Uma vez mais Porfírio, que ainda detinha o cargo de fiscal do governo, veio em socorro do
empresário Quartim, seu correlegionário e sem dúvida amigo, atestando a solidez da obra e a capacidade profissional do mestre de obras:
. E assim permaneceu em mãos do empresário Quartim até ser encampado pelo
governo provincial em 1875.
. Nomeada uma comissão para examinar o teatro, esta descobriu que não havia plano
completo e exato do edifício. A planta que lhe fora apresentada pelo empreiteiro não era validada com a assinatura das partes contratadas
e estava longe de refletir o que fora executado. Os defeitos de construção então notados eram sobejamente conhecidos: alicerces formados
por pedras de dimensões inconvenientes, assentadas com uma argamassa que de tão ruim permitia que as pedras fossem destacadas à mão;
fendas nas paredes causadas pelo imperfeito alicerçamento da obra e pelo mau engranzamento dos tijolos; e utilização de mão de obra que de
tão má parecia não ter sido dirigida por alguém que entendesse da arte. Enfim, o teatro era um “pessimo artefacto”, com madeiramento ruim
e esquadrias toscamente executadas (
Fig.5 - Antônio Bernardo Quartim mama na vaca do Teatro São José, com a conivência do presidente da Província desembargador
José Tavares Bastos (1822-1889).
Caricatura de Ângelo Agostini publicada no n.15
do
Cabrião, datado de janeiro de 1867.
Fonte: CABRIÃO. ed. fac-similar. São Paulo: IMESP/DAESP, 1982.
Fig.6 - Fachada do Teatro São José.
Foto de Militão Augusto de Azevedo, datada de c. 1862.
Edifício de singelas linhas neoclássicas – desprovido de platibandas –, mantido inacabado até sua encampação ocorrida em 1875.
Fonte: CAMPOS, Eudes. Arquitetura paulistana sob o Império. 1997.
811 p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997.
.
Um ano depois, em nova vistoria, engenheiros verificavam que o corpo da frente do teatro necessitava, simplesmente, ser
reconstruído.
. No ano subsequente
(1876), estava o teatro sendo decorado pelo pintor e arquiteto catalão José Maria Villaronga (c. 1809-1894), desde o ano anterior
estabelecido em São Paulo, e que sabidamente ornamentou, na mesma época, o salão nobre
da Academia de Direito e o interior do Teatro Provisório Paulistano (
A atuação indecorosa de Quartim no caso do teatro provincial não afetou, porém, minimamente, a sua reputação de empreiteiro
de obras públicas. Embora criticado na Assembleia Legislativa Provincial pela bancada oposicionista, e mesmo pela imprensa
de igual coloração política, Quartim foi responsável por várias obras provinciais executadas na Capital, sobretudo durante a gestão
de João Teodoro, de quem era certamente amigo pessoal.
),
fora chamado para reconstruir a ala dos fundos do Palácio da Presidência (1862-c.1864), antigo colégio jesuítico. Substituiu então a
ala posterior, seiscentista, de taipa, por uma longa construção de tijolos com janelas de arco pleno e platibandas
lisas. Não se sabe se neste caso houve algum projeto elaborado especialmente, ou se
Quartim simplesmente enfrentou o problema como então faziam, em geral, os mestres de obras, que, ignorando a utilidade do desenho como
eficaz instrumento para estabelecer a relação entre a ideia e o artefato construído, orientavam tudo, como se diz, com a ponta do
guarda-chuva. É até possível que tenha acontecido a segunda hipótese, pois, a certa altura, foi chamado o engenheiro prático
João José Soares (1822-1876), que detinha um cargo burocrático na administração provincial, para levantar a planta da parte executada,
a fim de que fosse enviada ao Ministério dos Negócios do Império. Essa satisfação era necessária dado o fato de o antigo colégio
ser naquela altura de propriedade nacional, como, aliás, todas as propriedades sequestradas dos jesuítas no século
XVIII. Um ano depois, contudo, já se queixavam da repartição da nova ala, pois aí não
haviam sido previstas as dependências necessárias.
. Governou isolado, com o Legislativo
e parte da imprensa criticando acerbamente suas decisões. Na verdade, em nossa opinião, a historiografia desde muito tempo insiste
em supervalorizar a atuação desse presidente. Alça-o imerecidamente à condição de grande herói do processo de urbanização da Capital,
reconhecendo nele uma larga visão de
, a qual de fato é antes fruto da imaginação desenfreada de determinados pesquisadores.
, conforme consagrada expressão do professor Eurípides Simões de Paula
(1910-1977), mas por ventura uma análise mais ponderada e menos superficial do período levasse à constatação de que predominou nas obras
públicas então encetadas o desperdício, a incompetência, a corrupção e o favoritismo, mormente nos trabalhos sob a responsabilidade
do capitão Quartim.
O fato é que desde 1860 se vinham acirrando os ânimos entre liberais e conservadores na Assembleia Legislativa provincial. Naquele ano
só três leis conseguiram ser aprovadas; nem mesmo as leis ânuas alcançaram consenso para serem submetidas a votação. Embora ainda hoje
seja corrente a concepção de que no tempo do Império não havia diferenças significativas entre os dois partidos, o Conservador e o
Liberal, a leitura dos
da Assembleia e mais documentos deixam-nos a impressão de que em matéria de obras públicas os
liberais eram realmente mais esclarecidos, ou seja, mais imbuídos de espírito burguês; preocupavam-se continuamente com o mau estado
das estradas provinciais, que constituíam um sério impedimento à expansão da produção agrícola de exportação, e estavam conscientes
de que a conservação das estradas e a abertura de novas dependiam de uma bem organizada repartição de obras públicas, convenientemente
composta por engenheiros hábeis e diligentes. Os conservadores, por seu lado, não davam grande importância a esse tipo de questão.
Estes últimos apoiavam-se geralmente para a realização de obras de engenharia em inspetores leigos escolhidos entre as lideranças políticas
regionais e nos antigos engenheiros formados pelo Gabinete Topográfico (1836-1849). Dessa escola haviam saído técnicos mal preparados,
os chamados engenheiros práticos ou engenheiros de estradas, que não estavam em condições de competir em conhecimentos técnico-científicos
com a maioria dos profissionais estrangeiros e nacionais que chegavam à Província, atraídos pela construção da ferrovia de Santos a
Jundiaí.
, ressaltando
o zelo, a atividade e a honradez com que conduzia os trabalhos do São José, mesmo quando já pesavam contra Quartim sérias
suspeitas de incompetência e improbidade.
Agora na gestão de João Teodoro, coisa semelhante voltava a ocorrer. Como já dissemos, os engenheiros civis que serviam na Província
foram postos de lado em favor de Antônio Bernardo Quartim, que chegou a acumular a direção de quatro ou cinco obras provinciais na
Capital, ao mesmo tempo que continuava ocupando o cargo de inspetor do Jardim Público. E, o que é pior, nessas obras o presidente não
cuidou, nem ao menos, de mandar exercer a necessária fiscalização pelos engenheiros da repartição das obras públicas.
, notoriamente incompetente, e sobre o qual,
como já dito, não se preocupou o presidente em fazer exercer a fiscalização do governo por intermédio dos engenheiros
provinciais.
. Com esse expediente
procurava desculpar o fato de o governo provincial estar erguendo uma obra de interesse municipal. A essas duas atividades incompatíveis,
mercado e escola, foi agregada depois mais uma, o Tesouro Provincial, passando a construção a ser nomeada a cada momento de uma
maneira diferente: “praça de mercado de verduras”, “edificio para escola normal” ou “grande edificio da instrucção publica” e
ainda “palacio do Tesouro Provincial”.
. Quartim, irritado, identificou pela imprensa o seu acusador como sendo o
engenheiro Azevedo Marques, que estaria enciumado por ter sido preterido na condução da obra. Para comprovar o descrédito em que
caíra o engenheiro, Quartim relembrou-lhe antigos fracassos: o encanamento (executado em 1868) com
,
feito para levar água ao Jardim Botânico, e o Chafariz 7 de Setembro, que, recém-inaugurado no antigo Largo do Rosário (1874), teve a
seguir de ser desmontado e reconstruído. Garantiu que nada de errado havia com a obra em andamento e de modo confuso tentou demonstrar
“cientificamente” a solidez da edificação. Azevedo Marques revidou sem demora, desta vez
sem ocultar o nome. Aproveitou a ocasião para escarnecer do “carapetão do Sr. Quartim” e fazer-lhe uma preleção sobre a estabilidade
das construções.
,
e três técnicos a serviço da Província, João Tomás Alves Nogueira, Antônio Cavalcante de Sousa Raposo e o próprio chefe da repartição
de obras públicas, João Pedro de Almeida. Segundo interpretações geradas na Assembleia,
o presidente chegara ao cúmulo de colocar o engenheiro Fox e o engenheiro italiano Cristovão Bonini, os mais ilustres deles, abaixo do
seu “engenheiro” predileto, o leigo Quartim. Ao considerar dispensáveis as recomendações técnicas favoráveis à consolidação da obra
em construção, o presidente da Província,
.
À compadrice dos velhos tempos imperiais se sobrepuseram os interesses oligárquicos dos republicanos. Na verdade, como todos sabemos pelos
jornais, esse tipo de prática, aliada à corrupção, sobrevive forte e inabalável até hoje, como algo simplesmente inseparável do
exercício do poder político. Trata-se, de fato, do lado negro da cultura nacional.
Fig.13 - Engenheiro e arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo.
Foto de autor não identificado. Década de 1880.
Fonte: RIBEIRO, José Jacintho. Chronologia Paulista.
São Paulo: Diario Official, 1899-1901, 2v.em 3.
. O que demonstra que, se a nova mentalidade não foi suficiente para
erradicar certas práticas tradicionais, que até nossos dias nos assombram, foi ao menos capaz de exigir um mínimo de idoneidade
profissional para o desempenho de determinadas funções técnicas.
Arq. Eudes Campos
Seção Técnica de Estudos e Pesquisas