A respeito das obras públicas realizadas por Antônio Bernardo Quartim ocorre-nos perguntar: seria ele o projetista das obras
que dirigia, ou limitava-se a concretizar riscos alheios, que acabavam irremediavelmente deturpados no momento da execução?
. Por falta de recursos a iniciativa não foi adiante. Mais tarde, em 1854,
contratou-se Quartim para construir o novo teatro no mesmo lugar do antigo (Largo de Palácio), para o que apresentou plano cuja
autoria era do engenheiro José Porfírio de Lima. Com as transferências sucessivas de
local para a construção do novo teatro, este profissional acabou, ao que parece, fornecendo ao empreiteiro Quartim mais dois
planos, entre 1854 e 1855: um para o terreno do Barracão do Carmo e outro para um terreno sito no Largo de São
Francisco (
).
Fig.2- Presidente José Antônio Saraiva.
Gravura de autor não identificado. Década de 1850.
Fonte:
.
Fig.3 – Arquiteto, pintor e literato Manuel Araújo Porto Alegre, então Barão de Santo Ângelo.
Litografia assinada por Augusto Off, datada de 1877.
Fonte: MUSEU Nacional de Belas Artes. São Paulo: Banco Safra, 1985.
. Este último risco foi muito provavelmente idealizado
pelo engenheiro paulistano Francisco Antônio de Oliveira, profissional desta feita escolhido por Quartim para auxiliá-lo na direção das
obras. O nome desse engenheiro aparece no minucioso auto de fundação do teatro, impresso para comemorar o lançamento da pedra fundamental
do prédio, mas não na condição de autor da planta, e sim na de simples “Engenheiro por parte do
Empresario”. A construção do prédio foi arrastada e cheia de incidentes, e o teatro deixado
inacabado. Após o afastamento de Oliveira, de acordo com o relatório assinado por Quartim e encaminhado à presidência da Província em 1862,
o empreiteiro criou um salão de pintura [de telões] no desvão do telhado e comprometeu-se a erguer platibandas, detalhes decerto não
previstos inicialmente.
). Bem poderia Quartim tê-la erguido à maneira dos
mestres de obras como aventamos antes, sem ter planta alguma a dar-lhe orientação. Porém é de nosso conhecimento que, anteriormente aos
trabalhos iniciados por Quartim, um obscuro engenheiro civil a serviço da Província, certamente oriundo da Corte, andou por incumbência
do presidente de então (1860), promovendo obras no lanço do palácio que ia da igreja à sala de jantar (ala residencial, situada na parte
posterior do palácio). Pouco antes, o presidente enviara ao Ministério dos Negócios do Império três orçamentos referentes a obras
no palácio do governo: um atendendo a consertos no telhado, outro às obras de segurança e asseio “para a parte habitada pelo
Presidente” e o terceiro abrangendo todo o edifício. Não é improvável a hipótese de que o
citado engenheiro haja preparado os tais orçamentos e os respectivos riscos, nos quais se teria baseado para efetuar os
cálculos dos custos. A prevalecer esta versão, o nome do autor da ala neoclássica seria Frederico Belmont
Brockenhaus. Ademais, sabemos também que o engenheiro Porfírio de Lima, em 1861,
e ainda o engenheiro Francisco Gonçalves Gomide, em novembro de 1862, realizaram obras no palácio
e que tudo isso, mesmo assim, não exclui a possibilidade de ter Quartim introduzido modificações nos supostos planos existentes e
resolvido certos pormenores construtivos e arquitetônicos a seu modo, já que os riscos eram de hábito bastante sumários.
Em geral, eram feitas apenas plantas dos edifícios, sem cortes, detalhes ou mesmo elevações.
Fig.5- Vista posterior do Palácio da Presidência com sua ala neoclássica, à direita. Imagem da Várzea do Carmo, datada de c. 1887,
de autoria atribuída a Militão Augusto de Azevedo.
Fonte: TOLEDO, Benedito Lima. São Paulo três cidades em um século. São Paulo, Duas Cidades, 1981.
; por não dispor de recursos nos cofres municipais
procurou-se o auxílio do governo provincial. Este, no final de janeiro de 1874, comunicou
estar disposto a construir um edifício que abrigasse conjuntamente o mercado municipal e repartições provinciais. A Municipalidade
aceitou a oferta e, de acordo com a proposta feita, comprometeu-se a conceder gratuitamente os terrenos municipais onde se ergueria
grande parte do novo edifício. Com a resposta, remeteram-se as bases e a planta pelas quais havia assumido a Câmara a almejada
construção, a fim de que por elas se fizesse o contrato a ser assinado pelas partes interessadas.
. A nossa suspeita acerca desse assunto sai reforçada ao repararmos que desde o
início já estava perfeitamente definido o partido da futura construção: teria dois pavimentos e arcadas no
térreo. O que caberia à Província era tão-somente a reorganização do primeiro andar
para adaptá-lo às instalações da Escola Normal e do Tesouro Provincial. É possível que dessas adaptações haja sido encarregado o
próprio Quartim, pois em um artigo de jornal intitulado
os dois advogados que
haviam defendido a causa de D. Rita Bourroul contra a Província, dado o fato de a obra do mercado ter-lhe arruinado a casa, deixavam a
compostura e sisudez profissional e ridicularizavam o empreiteiro, nomeando-o “supremo architecto das obras publicas da capital”
e responsabilizando-o pela concepção do grande edifício provincial em construção, do qual segundo eles não havia planta alguma:
Os dois autores desse texto provocativo respondiam ao capitão, que pelos jornais se dizia ofendido com as
insinuações a respeito da má qualidade de suas obras. Nos versinhos aludiam eles também às construções que Quartim empreendia no
Jardim Público, do qual era administrador, e às quais retornaremos adiante.
No relatório com que foi aberta a sessão legislativa de 1876 da Assembleia Provincial assim expôs Sebastião Pereira:
Depois de organisada a planta, mandei proseguir na construcção do edificio destinado ao Thesouro Provincial e Instrucção Publica.
No pavimento superior deverá funccionar o Thesouro e Collectoria Provincial; no inferior a Inspectoria da Instrucção Publica, Escola Normal e duas escolas primarias.
As obras são administradas pelo Capitão Antonio Bernardo Quartim, cuja actividade e probidade conheceis, sob a inspecção do intelligente e zeloso Engenheiro Dr. Trigo de Loureiro.
Modifiquei o contrato que o mesmo Capitão havia celebrado com o Governo para a construcção do edificio.
Esta modificação consistiu:
Na reducção de um terço da gratificação mensal;
Na eliminação da multa a que ficava sujeita a Provincia no caso de rescisão do contrato;
No direito do Governo fazer inspeccionar as obras por um Engenheiro.
Por aí se observa que o presidente Pereira embora aparentando acreditar na probidade de Quartim houve por bem conseguir
da Assembleia autorização para reformar o contrato com o empreiteiro, assegurando desse modo os interesses do governo e,
em consequência, da coletividade. Além disso, indicou o engenheiro pernambucano Felipe Hermes Fernandes Trigo de Loureiro
(c.1841-1879) para fiscalizar o andamento das obras depois de – e aí está o mais importante – mandar reorganizar a
planta do edifício. A nosso ver, a intervenção de Trigo de Loureiro não ficou limitada à parte interna da construção. É muito provável
que tenha sido este profissional o responsável por conferir ao “barracão” ou "palácio das verduras”, como era pejorativamente chamado
pelos deputados, a dignidade arquitetônica de que até então estava desprovido aos olhos dos contemporâneos.
Fig.6 - Detalhe da planta da cidade de São Paulo, datada de 1877. Nela se observa o desenho da fachada do Palácio do Tesouro,
tal como reformado conforme projeto atribuído ao engenheiro provincial Felipe Hermes Fernandes de Trigo de Loureiro.
Fonte: CAMPOS, Eudes. Arquitetura paulistana sob o Império. 1997. 811 p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997.
), observamos que a
organização das fachadas mostradas neles não poderia ter existido antes da intervenção de Trigo de
Loureiro. Se foi ele o introdutor no edifício das desejadas platibandas,
anteriormente inexistentes, só pode ter sido ele também quem criou o antecorpo central coroado com frontão na fachada da Rua das Casinhas,
doravante conhecida como Rua do Palácio. As arcadas, por inúteis, foram tapadas; as janelas singelas do primeiro andar,
substituídas por portas à francesa com balcões, e dispostas pilastras, provavelmente de ordem jônica, nas fachadas para dar
sustentação ao entablamento, conferindo, portanto, uma modenatura clássica ao edifício: esses elementos de composição reforçavam
visualmente os ângulos da construção e subdividiam ritmicamente os panos lisos das paredes. O resultado, contudo, não era convincente,
havendo certa desproporção entre a altura do pavimento térreo e as aberturas desse nível, resquício das descomunais arcadas de que
fora provido o edifício ao ser concebido inicialmente como mercado de verduras. Em 1876, o periódico
, ao
criticar os “monumentos” arquitetônicos da cidade erguidos no tempo de João Teodoro (1872-1875), satirizou-o como exemplo de
. A caricatura consistia numa plataforma suportada por enormes patas de elefante, simbolizando as gigantescas
colunas que sustentavam as arcadas do mercado. A esse respeito, lia-se numa das folhas paulistanas:
Fig.7- Imagem do Palácio do Tesouro depois da reforma neorrenascentista (1891).
Foto tomada por Guilherme Gaensly por volta de 1902.
Fonte: SESSO Júnior, Geraldo. Retalhos da velha São Paulo. São Paulo: Gráfica Municipal, 1983.
. Com essa edificação conclui-se, porém, uma fase desastrosa das construções
oficiais em São Paulo, havendo sido designado naquele mesmo ano de 1877 o engenheiro francês Eusébio Stevaux (1825-1904) para
transformar a antiga Casa de Câmara e Cadeia na sede da Assembleia Provincial e Câmara Municipal, reforma como sabemos inspirada na
arquitetura francesa então contemporânea (
). Stevaux acabou dessa forma guindado à condição de um dos introdutores do
Ecletismo na arquitetura oficial paulista e isso explica o fato de Junius, entusiasmado, despender várias linhas com esse
edifício e simplesmente não se dar ao trabalho de tecer o mais breve comentário acerca da aparência do Palácio do Tesouro,
cujo estilo ainda preso a valores do Neoclassicismo deve ter sido visto como ultrapassado e sem apuro pelo sofisticado morador
da Corte, conquanto só tivessem passado cerca de cinco anos desde a conclusão desta última obra.
Fig.8 - Palácio da Assembléia Provincial e Câmara Municipal de São Paulo.
Reforma (1877-1879) de autoria do engenheiro francês Eusébio Stevaux.
Foto de Marc Ferrez, tomada em 1880.
Com a designação de Sebastião José Pereira para a presidência da Província de São Paulo em 1875 e com a nomeação do engenheiro
rio-clarense formado e doutorado em Cornell (EUA) Elias Fausto Pacheco Jordão para a direção da repartição de Obras Públicas
(1876-1880), surge a figura do engenheiro francês Eusébio Stevaux, se responsabilizando, a partir de 1877, pelas reconstruções e
remodelações dos prédios governamentais situados na cidade de São Paulo. Inicia-se assim uma fase de transição que será superada
quase dez anos depois com a chegada à Capital do arquiteto Ramos de Azevedo, profissional que liderará a arquitetura paulista
durante os próximos 40 anos.
Fonte: SÃO PAULO (Estado). Assembléia Legislativa. São Paulo; a imperial cidade e a Assembléia Legislativa Provincial.
São Paulo: Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, 2005. 139 p.
. Entretanto, no caso do
mirante do jardim, constante objeto de remoques por parte dos políticos da oposição e da imprensa humorística da época, talvez devamos
ver uma obra de exclusiva responsabilidade do empreiteiro, em virtude de seu aspecto exterior neoclássico bastante grosseiro – a
menos que o seu autor tenha sido o engenheiro militar Henrique Luís de Azevedo Marques (?-1880), que construíra a caixa d'água da
cidade em 1870, também segundo um tosco Neoclassicismo (
Fig.10- Caixa d’água da Rua Paranapicaba, em São Paulo. Construída em 1870 pelo engenheiro militar Henrique Luís de Azevedo Marques.
Bom exemplo do tipo de arquitetura bastante grosseira que era praticada na capital paulista na época em que florescia a carreira de
Antônio Bernardo Quartim como empreiteiro de obras públicas.
Fonte: CAMPOS, Eudes. Arquitetura paulistana sob o Império. 1997. 811 p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997.
Arq. Eudes Campos
Seção Técnica de Estudos e Pesquisas
Fig.11 - Caricatura de Antônio Bernardo Quartim agarrado com braços e pernas ao mirante do Jardim Público.
Autoria de Nicolau Huascar de Vergara, 1876.
Fonte: O POLICHINELLO. São Paulo, n.18, 1876.