PASOLINI PASSOU AQUI
notas para uma história do Cine Belas Artes
e a formação do circuito paulistano de cinema de arte
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Massificados, fãs e cinéfilos
As observações seguintes sobre os espectadores paulistanos não se preocupam com a
precisão sociológica ou teórica, mas apenas procuram introduzir o tema maior do cinema de arte.
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O grupo majoritário de espectadores, até a abertura dos multiplex localizados nos shopping centers
a partir da década de 1980, era o de fãs, diminutivo do termo inglês fanatic. Os fãs formavam grupos
especializados de centenas ou milhares de pessoas que se mobilizavam para assistirem a películas de
um gênero ou dos astros favoritos, seguindo dinâmicas variáveis ao longo do século XX. A expansão massiva da música
popular urbana criou uma situação semelhante. Fãs de cantores, nacionais ou estrangeiros, sabiam de cor detalhes
da vida e da carreira dos astros e estrelas favoritos. Hoje essa prática foi absorvida pela televisão, principalmente
no segmento das telenovelas, mas com aspectos diferenciados dos fanáticos submetidos ao modelo do
star system hollywoodiano. Muitas das práticas de fidelização dos fãs que nasceram com a
popularização do cinema se transferiram, primeiro para o rádio e, depois, para a TV, de forma exacerbada,
como a ampla repetição de informações por meio de revistas especializadas e colunas de fofocas, e de
uma grade de programação autorreferenciada, tendo como exemplo o Video Show da rede Globo.
O fã, além de possuir um conhecimento variado sobre o gênero ou a estrela que adotou, o que demandava
leituras constantes e acumulação de informações, criou um processo de transmissão de seu apreço
pelos filmes com o método da difusão boca a boca (bouche-oreille na sua origem
francesa), como forma de amplificação daquilo que teve conhecimento antes e depois do
lançamento dos filmes de sua preferência.
Os fãs estão perdendo espaço há muito tempo para os espectadores dos multiplex. Esses conjuntos de salas,
dominados como nunca por cadeias exibidoras estrangeiras, substituíram de forma radical o
antigo circuito caracterizado pelo “cinema de rua”.
Na cidade de São Paulo a principal é a Cinemark. Os cinemas dessa cadeia estão sempre localizados
em shoppings, formando o conjunto das chamadas “lojas-âncoras” dos complexos de compras junto com os
supermercados e as grandes redes varejistas. Esse é o público alvo dos blockbusters norte-americanos,
os lançamentos bombásticos “arrasa-quarteirão”, cuja tendência para a ocupação vertical do mercado exibidor
é cada vez maior. Um lançamento dessa categoria gira, em geral, em torno de 300 a 500 cópias, quando
não em maior número, de um único filme, isto é, o lançamento simultâneo de um blockbuster visa à ocupação
de um quarto a um terço de todos os cinemas existentes no país. Há uma tendência a se considerar
o espectador de cinemas de shopping como massificados. Os espectadores massificados escolheriam os
filmes ao acaso, sem se preocuparem com o enredo, atores ou diretores dos filmes, possuindo uma relação
passageira com a sala e a película escolhida. São considerados simples consumidores, à semelhança dos
usuários de fast-foods (em oposição, a título precário, ao gourmand). Como escreveu Luiz Gonzaga
Assis De Lucca, um especialista na implantação desse sistema,“não há vínculo algum entre a sala e o
espectador. Os cinemas são apenas parte de um conjunto de serviços que o Shopping Center
oferece”.
O tema mereceria um aprofundamento melhor, já que mesmo a massificação não se faz
independente das escolhas dos grupos sociais de pressão (familiares próximos e amigos) ou das
redes sociais (como Facebook e congêneres, como agentes contemporâneos nesse processo),
que estimulam cada vez mais o gosto desse tipo de espectador, em geral, adolescentes e jovens
entre 14 e 25 anos de idade. O “boca a boca” agora se faz pelas “infovias”, formando um novo tipo de
gosto do qual não se tem ainda uma ideia precisa.
Os cinéfilos, por sua vez, têm uma história, nos grandes centros como Rio e São Paulo,
tão longa quanto a dos fãs, embora somente nas últimas décadas essa categoria tenha ganho reconhecimento
mercadológico e social. A cinefilia entende o cinema como um fato artístico, dando-lhe a atenção que dedicaria
a uma exposição de arte ou peça teatral. A distinção pressupõe um capital cultural constantemente alimentado
por leituras e cursos (universitários ou não) para a construção de um gosto e uma atitude diferenciada
em relação à massa de espectadores. A diferenciação é construída por vários fatores como o conhecimento
da história do cinema; a adesão a modelos como a “política dos autores” criada
pela Nouvelle Vague francesa a partir dos anos 1950; a relação conflituosa, mescla de atração e repulsão,
com o cinema hollywoodiano; ou a proximidade com cinematografias vindas dos mais diversos cantos do mundo.
Os cinéfilos construiram ao longo do tempo uma atitude religiosa para a fruição cinematográfica, na medida
em que o interior do cinema é um templo ao qual se deve seguir a projeção em silêncio, respeitando-se
somente aos apelos vindos da tela, provocadoras de riso, espanto ou choro.
Enquanto o cinéfilo estabelece uma diferenciação básica com o espectador de multiplex ou o fã, todos,
contudo, se igualam enquanto consumidores de mercadorias. E é dessa forma que são tratados
pelo mercado distribuidor e exibidor que atende e estimula às pulsões desejantes segmentadas.
É fato bem conhecido que a cinefilia cresceu nos grandes centros brasileiros com o aparecimento dos
clubes de cinema. O Chaplin-Club foi o primeiro deles, funcionando no Rio de Janeiro na passagem do
cinema mudo para o sonoro, entre 1928 e 1931. Em São Paulo, isso se deu
somente uma década depois. Paulo Emilio Sales Gomes foi o introdutor da novidade, já que tivera em
Paris um contato com Plinio Sussekind Rocha, antigo integrante do
Chaplin-Club.
O primeiro Clube de Cinema paulistano (haveria um segundo) se pautava pela apreciação dos
clássicos do cinema mudo, seguidos por debates públicos baseados em programas especialmente
escritos para a ocasião. Embora assistissem a cópias precárias, como foi o caso de
Os Nibelungos, de Fritz Lang, a semente estava lançada. O Clube de Cinema teve uma curta
duração, posto que a repressão estadonovista logo o fechou. Com a partida de Paulo Emilio para a
Europa, em 1946, o segundo Clube de Cinema começou a ser esboçado por antigos participantes
(Francisco Luiz de Almeida Salles, Antonio Candido de Melo e Souza, Lourival Gomes Machado e outros).
O amadorismo anterior tinha sido deixado de lado, buscando-se bases profissionais para a consolidação.
Uma associação com o recém-fundado Museu de Arte Moderna – MAM, criado por Francisco Matarazzo
Sobrinho em 15/7/1948, transformou o Clube de Cinema em Departamento do Museu, com o nome de Filmoteca.
A associação a uma instituição deu um caráter oficial ao clube, facilitando a entrada na Federação
Internacional dos Arquivos de Filmes – FIAF. A Filmoteca integrava-se também ao movimento geral
de renovação cultural paulistana do pós-II Guerra Mundial, agregando-se aos novos museus
(MAM e Museu de Arte de São Paulo – MASP), à renovação teatral (Teatro Brasileiro de Comédia)
e cinematográfica (Cia. Vera Cruz), ambas surgidas pelas mãos de Franco Zampari, sócio
minoritário de Francisco Matarazzo Sobrinho em empreendimentos industriais.
A Vera Cruz tinha como objetivo alçar a produção nacional a um nível internacional, retirando-a do solo,
assim considerado pela elite paulistana, medíocre, representado pelas chanchadas cariocas ou aqui mesmo produzidas.
A companhia atraiu para São Paulo não só uma gama de técnicos vindos de diversos países, como também
magnetizou a imaginação de críticos e cineastas paulistanos e de outros Estados, que para cá se
dirigiram em razão do aparecimento da nova Meca cinematográfica.
A primeira sessão do Clube de Cinema associado ao MAM foi com o filme A paixão de Joana d’Arc, de
Carl Dreyer, em 10/3/1949, no auditório da rua Sete de Abril, 230, 2º. andar. Segundo o testemunho de
Almeida Salles concedido a Maria Rita Galvão, a sessão de clássicos foi um “acontecimento realmente
notável, marcou época em São Paulo”.
A Filmoteca começou a montar um acervo graças aos aportes financeiros realizados pelo MAM,
comprando e recebendo em doação cópias de filmes clássicos, de vanguarda e de arte.
Um primeiro congresso de cineclubes foi organizado pelo MASP em 1950. No Museu dirigido por
Pietro Maria Bardi também se organizou um Centro de Estudos Cinematográficos – CEC,
funcionando em moldes cineclubísticos. Indo além, o CEC se desdobrou no Seminário de Cinema,
o primeiro curso regular de técnica e estética cinematográfica da cidade.
O MAM afirmava possuir cerca de três mil associados no final da década de 1940.
A Filmoteca exibia seus filmes na pequena sala de 190 lugares. Uma campanha para a adesão de sócios pagantes
recebeu 100 inscrições. Por esses números, percebemos que, nesse momento, o volume de
interessados numa produção cinematográfica artística era bem exíguo. Esse processo amadureceu ao
longo da década de 1950, graças à receptividade pública alcançada pelas produções da Cia. Vera Cruz,
acompanhada da repercussão internacional em festivais de fitas como O Cangaceiro e Sinhá Moça.
A realização durante o IV Centenário da cidade de São Paulo de um festival internacional trouxe para a
cidade uma variada gama de atores, diretores e críticos estrangeiros (Edward G. Robinson
compareceu entre a numerosa delegação norte-americana; o megalomaníaco Erich Von Stroheim, alvo
de uma retrospectiva pioneira; o crítico do Cahiers du cinéma, André Bazin, e dezenas de outros nomes),
criando a ilusão de que São Paulo tinha se integrado ao processo de globalização da
produção da mercadoria cinematográfica.
Outras questões mobilizaram a agenda dos cinéfilos dos anos 1950. A crise do cinema norte-americano
e o movimento da Nouvelle Vague francesa sugeriram um panorama de mudanças em que a
“política dos autores”, defendida pelos críticos da Cahiers du cinéma, criava uma nova
perspectiva em que o comando do processo de produção se transferia para o diretor do filme, agora considerado
um artista, o verdadeiro criador da película cinematográfica.
Continua >
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Para citação adote:
SOUZA, José Inácio de Melo. Pasolini passou por aqui: notas para uma história do
Cine Belas Artes e a formação do circuito paulistano de cinema de arte.
INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 10 (36): ago.2014.
<http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>
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