PASOLINI PASSOU AQUI
notas para uma história do Cine Belas Artes
e a formação do circuito paulistano de cinema de arte
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O Cine Coral
No campo da exibição comercial, considera-se o Coral como o primeiro cinema de arte inaugurado na cidade.
A estratégia do cinema de Dante Ancona Lopez era a captação do público que circulava em torno da Rua
Sete de Abril. Esse território cobria os principais museus em atividade (MAM e MASP); espaços de
convivência como os bares, o Paribar, na Praça Dom José Gaspar, o Costa do Sol, na própria Sete de Abril, o
Pepe’s, na Galeria Metrópole (quem não se lembra do encontro dos personagens Carlos e Ana na casa
de chá da Galeria Metrópole em São Paulo S.A.?); o público intelectual da Biblioteca Municipal
Mário de Andrade, muitos deles, alunos e professores da Faculdade de Filosofia da USP, que
funcionava um pouco acima, na Rua Maria Antônia. Havia ainda o Clube dos Artistas e Amigos da
Arte (conhecido como “Clubinho”), congregando artistas e arquitetos na Rua Bento Freitas, 306.
Esse “território intelectual” fugia um pouco do centro nervoso da Cinelândia paulistana, localizado no eixo
das Avenidas Ipiranga e São João, onde se projetavam as marquises com os logotipos dos grandes
cinemas populares: Marabá, Ipiranga, Marrocos, Broadway e Art-Palácio. Durante
décadas o Marabá foi uma espécie de termômetro para a produção comercial nacional e importada,
posto que era sinônimo de sucesso o filme que enchesse a sala.
Dante Ancona Lopez (São Paulo, 1909-1999) começou sua carreira como publicista, um profissional
que fazia a ponte entre as distribuidoras e a imprensa, trabalhando os lançamentos trazidos pelos
irmãos Ponce (Generoso e Altamiro) para a pequena rede de cinemas encabeçada pelo Rosário na
década de 1930. Em data não precisada,
ele abriu a Publicidade Sem Rival Ltda, provavelmente em sociedade com os irmãos — Líbero
(mais tarde um prócer do PSP, partido de Adhemar de Barros),
Itálico, Vicente e Aurélio —, iniciando um voo solo no mercado publicitário cinematográfico.
Em 1952, com o mesmo grupo de sócios, fundou a Áurea Filmes Ltda, que tinha entre os seus objetivos
a importação de filmes impressos estrangeiros (cópias) e a distribuição de fitas nacionais e
estrangeiras. Em data também não confirmada, ele se deslocou da área principal de instalação das
distribuidoras de filmes em São Paulo, o bairro da Luz, mudando-se para a Rua Sete de Abril, 230, 6º. andar,
prédio dos Diários Associados onde estava instalado o MAM, o MASP e a Filmoteca.
A mudança servia aos interesses do seu novo projeto: a abertura de um cinema.
O local escolhido,
o número 381 da mesma rua, era uma antiga propriedade de Maria Lopes Sacramento,
onde antes funcionara uma salsicharia (o termo consta do processo de reforma e talvez se refira a
uma casa de pratos rápidos, como a Salada Paulista, instalada na Av. Ipiranga, na
mesma época). Em 21/10/1957
a proprietária encaminhou o requerimento para a alteração física do prédio para cinema, tendo como
encarregado o engenheiro Norberto Lion, com escritório na Rua Conselheiro Crispiniano, 377, 10º.
andar.
O terreno tinha 20 m de frente, dando os fundos para a Rua Basílio da Gama, formando uma área
de 1.107,6 m2. A reforma criou uma parte superior no prédio com 218 m2, que também
seria aproveitada pelo exibidor mais tarde. O contrato de locação era de 10 anos. Logo depois,
em fevereiro de 1958, o futuro Coral começou a
ser divulgado pela imprensa. Alardeava-se a inauguração próxima, em maio, dos 1.200 lugares com
poltronas reclináveis, ar condicionado e a tela que permitiria um “ângulo de visibilidade
perfeito” de qualquer parte da sala, presume-se.
Como o República e outras salas da época, ele só tinha plateia. A construção não foi tão rápida
e apenas em 9/9/1958 a Áurea Filmes encaminhou o pedido de abertura à Prefeitura.
Estudo para fachada de cinema, à Rua Sete de Abril,
que seria ocupado pelo Cine Coral.
Processo 214.138/58
Acervo DAMP/SEMPLA/PMSP
No dia 18 de setembro deu-se a pré-estreia com o filme Estes maridos, dirigido por Luigi Comencini,
em benefício das obras do Serviço de Assistência Social Missionária da Igreja Imaculada
Conceição.
O Coral tinha 971 lugares, cadeiras tipo pullman da Brafor, projetores Simplex de
R. Ekerman e cristais das portas e da sala de espera fornecidos por Conrado Sorgenicht.
Na fachada um letreiro vertical. A marquise trazia 98 focos luminosos e na face para a rua, desenhos marítimos,
que também adornavam o interior da sala. No endereço funciona hoje um mini-shopping,
reconhecendo-se ainda os contornos gerais da estrutura da fachada.
Dante declarou ao programador do Centro Cultural São Paulo, Plácido de Campos Júnior, que tinha
consciência da “[...] possibilidade de uma programação diferenciada daquela que então se fazia. Seria o
‘Cinema de Arte’, embora o cinema tradicional ou comercial também tivesse
espaço”. Tal não foi a
impressão deixada, observando-se a programação dos primeiros dois anos da sala. O Coral se
especializou na exibição da produção italiana tanto a mais comercial, entre as quais notamos
vários títulos estrelados por Totó e Vittorio de Sica, quanto aquela que hoje reconhecemos como
mais engajada, lembrando-se títulos do porte de Os eternos desconhecidos (I soliti ignoti),
uma amarga comédia de Mario Monicelli. Em julho de 1960, entretanto, abrigou a Semana do
Cinema Italiano, exibindo a parte moderna da mostra “História do Cinema
Italiano”, trazida pela Fundação Cinemateca Brasileira para exibição no auditório do MAM,
com o apoio da Unitalia, a agência oficial de promoção do cinema italiano no exterior, da Embaixada
e do Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro. Essa Semana já prefigurava um entrosamento de interesses
entre Dante e o grupo dirigente da Cinemateca, que daria frutos mais substanciosos dois anos depois.
A primazia do Coral como “primeiro” cinema de arte da cidade foi contestada pelo menos uma
vez pelo crítico Adhemar Carvalhaes.
O cinema da Rua Sete de Abril tinha como dístico “sempre um filme excepcional”, o
contrário do Apolo, da Rua Conselheiro Nébias, 211, uma sala concebida para 300 lugares,
um cinema minúsculo para os padrões da época, que já abriu, em 1961, como “sala especializada na exibição de
filme de arte”. O primeiro deles foi a produção soviética Don Quixote, dirigida por Grigori Kosintsev.
A estratégia para a inauguração do Apolo foi muito mais complexa do que a do Coral.
A salinha de Hugo Schlesinger tinha uma localização menos privilegiada, pois estava do outro lado da
avenida São João, próximo da antiga área de
prostituição. Como bem
notou a jornalista Mary Apocalipse, o cinema ficava
próximo de “inferninhos” e de “pensões não muito cândidas, e seus hotéis
idem”. Isso obrigou ao
exibidor e distribuidor da Interartes e Orbis Filmes a mobilização de uma entidade até então inexistente
na cidade, a Associação Brasileira de Críticos de Arte (Seção de São Paulo), presidida
por Walter Rocha, contando com os nomes dos maiores críticos de São Paulo na diretoria: B. J.
Duarte (Folha de S. Paulo), Flávio Tambellini (Diário de S. Paulo), Rubem Biáfora e Almeida Salles
(O Estado de S. Paulo). A ABCC guiaria a programação do Apolo. Na abertura, realizada em
8/2/1961, outro nome de prestígio juntou-se aos anteriores, Paulo Emilio Sales Gomes, que
discursou na ocasião. No Apolo, assim como tinha acontecido com o Coral, a ligação com outras cinematografias
já era uma realidade. O cinema da Sete de Abril deu espaço para o cinema japonês,
rompendo o círculo de exclusividade do bairro da Liberdade, que se somou aos do Leste Europeu.
No Apolo, além da fita soviética de estreia, contou-se com a presença do diretor da Film Polski,
Henryk Szymanski. A programação seguiria com a película iugoslava O Vale da paz, e outra
inglesa de quase dez anos antes com o ator Laurence Olivier, Ao pé do cadafalso (The beggar’s opera).
No comentário publicado na revista Visão, provavelmente de autoria de Paulo Emilio
Sales Gomes, mas sem assinatura, algumas observações foram feitas sobre o novo cinema
de arte da cidade. O primeiro, e o mais trágico, dizia respeito à projeção
inaugural: ela fora desastrosa, porque desfocada. O colunista do semanário também
alertava para os critérios da programação. Diante do anúncio
de uma das próximas atrações, Eugene Oneguin, uma ópera baseada em Tchaicovski produzida
pela produtora de Leningrado, a Lenfilm, em 1958, ele constatou que seria difícil “[...]
lotar constantemente os 300 lugares do Apolo, mas, para assegurar certa tradição, será preciso que a
administração aceite a ideia de audiências menores diante de tal ou qual filme particularmente
insólito para o gosto atualmente em voga. Aparentemente, José Santa Ciangolli [sócio de Schlesinger],
está disposto a correr o risco”. Por fim, uma observação de caráter geral: qual era o objetivo de um
cinema de arte? Por princípio devia ser recusada a perspectiva de transformação do cinema num escoadouro para filmes
encalhados nas distribuidoras. Por outro lado, uma política de captação de público poderia trazer
filmes relevantes de Bergman ou Alf Sjoberg nunca exibidos entre nós. “O campo de ação para
um Cinema de Arte”, observou o articulista de Visão, “é imenso, inesgotável, pois entra em sua
missão igualmente promover a reprise de obras significativas. Relançar fita já conhecida é,
para uma sala comercial corrente, sinal de decadência. Para um Cinema de Arte,
pode significar exatamente sua força”.
Apesar de tais avisos possivelmente de Paulo Emilio, nem Schlesinger, nem Santa Ciangolli estavam
dispostos a correr riscos. O primeiro seguiu durante o ano a sua estratégia de abertura de pequenos
cinemas pelo centro da cidade com o Líder (vizinho do Apolo), destinado a reprises, e o Marco Polo,
na Avenida Ipiranga, em frente ao Windsor, para uma “programação reservada para os que gostam
de emoções” (isso é verdade até data recente, já que o local também serviu mais tarde
para espetáculos de sexo ao vivo).
B. J. Duarte tinha esperanças de manter o Apolo como uma cópia paulistana do Studio des Ursulines,
o clássico exemplo de cinema de arte parisiense. Anunciou-se que vários críticos organizariam
“semanas” promocionais (B. J. estava pensando uma “Semana de Arte da
United Artists”, Martins Júnior, crítico de A Gazeta, garimpava uma “Semana Gary Cooper” e
Walter Rocha outra de comédias; Maurício Rittner selecionou as fitas para a “Semana Toho”),
levando o publicista do cinema, Renato de Martins Castro, a apostar, em julho de 1961, que “[...] com
o tempo o ‘Apolo’ venha a ser precisamente isso, uma ‘sala’ adotada por todos os afeiçoados do cinema
como Arte, acima de tudo”. O cineclubista Fernando Seplinski do Centro Dom Vital, um importante
centro gerador de cinefilia na época, no entanto, acusou a programação de desvirtuamento.
Benedito Junqueira, durante a semana de comemorações do primeiro ano de vida do Apolo, reclamava da
fita anunciada para a festividade, uma comédia com Sacha Guitry, prevendo um “aniversário melancólico”:
esperava-se que a sala “[...] honrasse suas curtas mas respeitáveis tradições com ‘Morangos silvestres’,
de Ingmar Bergman, ou aquela deliciosa sátira do cinema inglês ‘As oito vítimas’, que há tempos
vem sendo esperada na tela do
‘cineminha’ ”.
Logo depois o cinema da Rua Conselheiro Nébias foi transferido para o exibidor Francisco José Lucas,
da rede Haway, que maliciosamente considerou ter recebido um “presente de grego”.
De posse do que ele classificava como o “menor cinema de São Paulo”, ele pediu
isenção fiscal e suspensão da obrigatoriedade de exibição do filme brasileiro como formas de cobrir os
custos do negócio. Na ausência de facilidades, a solução foi “apelar” para outra programação e, em
breve, o Apolo passou a exibir O vale dos nudistas, entrosando-se com filmes
similares exibidos pelos concorrentes, onde se notava, no Áurea, por exemplo, a exacerbação das
películas japoneses de gangsteres (yakusa) e violência sexual (pinku eiga).
A falha do Apolo como cinema de arte, embora de sucesso como especulação imobiliária e
cinema comercial, provou que o campo estava propício para outras experimentações.
A combinação de uma programação diferenciada e a oferta de salas confortáveis sugere que
o público tinha se segmentado definitivamente, instituindo a cinefilia como uma prática corrente
no cenário cultural urbano. Isso abria espaço para experiências diversificadas no campo do cinema
de arte. A segmentação foi percebida pelo mercado exibidor também como um deslocamento
territorial da Cinelândia, que ficava restrita, agora, ao cinema popular ou dos fãs de gêneros
e atores específicos. Tal assertiva é confirmada pela abertura do Bijou, na Praça Roosevelt, 172,
a meio caminho do eixo das ruas Augusta-Consolação, que se tornaria, nos anos seguintes, a área
privilegiada para a cinefilia. O acordo firmado entre o Coral e a Cia. Serrador para exibição dos
filmes lançados na Rua Sete de Abril no Trianon da Rua da Consolação, em junho de 1961,
prefigura o movimento em direção ao eixo acima citado.
O Bijou começou a ser anunciado pela imprensa em agosto de 1962. O cinema era um lance do
argentino Jaime Schvarzman Rotbart, sendo vendido inicialmente como uma sala de elite, o
“João Sebastião Bar do cinema” (alusão a uma casa noturna da moda). Ou seja, o
exibidor ansiava por uma estratégia diversa do Apolo junto ao público cinéfilo, distanciando-se
da proximidade negativa fornecida pelos “inferninhos” da Rua Conselheiro
Nébias. Sala pequena,
com menos de 300 lugares, situava-se próxima do Teatro da Arena, da Rua Teodoro
Bayma. Para a abertura em 15/10/1962, procurou-se, um pouco ao estilo dos espetáculos oferecidos pelo
Arena, uma inauguração com declamações, a cargo de Carlos Zara, sobre textos de Vinicius de Moraes,
seguida por uma seleta musical com Os Titulares do Ritmo e Osmar
Izar, já que a renda reverteria em benefício da Associação dos Radialistas de São Paulo.
O Bijou abriu com o búlgaro A lenda do amor (Legenda za lyubovda, 1957), dirigida por
Vaclav Krska e distribuída pela Orbis Filmes de Hugo Schlesinger. Anunciava-se para as semanas seguintes títulos de
Jiri Weiss, Jerzy Kawalerovicz e Sergei Eisenstein (O encouraçado Potenkim).
Ao longo da década de 1960, portanto, firmou-se no panorama urbano tanto o conceito de
cinema de arte, quanto a sua proliferação. O Coral ampliou suas perspectivas estabelecendo uma
parceria com a Fundação Cinemateca Brasileira por meio da Sociedade Amigos da Cinemateca –
SAC (1962). F. J. Lucas, que destruíra o Apolo, abriu o Éden, situado na Avenida São João, 1.640,
tentando aproveitar o fluxo de espectadores do Cinerama, sala especializada situada um pouco acima.
Segundo a propaganda falaciosa utilizada, o Éden seria “[...] um local de reunião para a
sociedade paulistana, em ambiente sadio e selecionado, onde intelectuais, artistas, jornalistas, etc,
poderão debater a qualidade dos filmes que apresentaremos em exclusividade [...]. Será um
Clube de Cinema, o primeiro a ser fundado em nossa
cidade”. Em 1965, a Cia. Serrador
transferiu as atividades do Coral para o Picolino, que funcionava na Rua Augusta desde 6/8/1955.
O sucesso da programação do Picolino, também conduzida por Dante Ancona Lopez, fez com
que a Cia. Serrador mudasse o padrão do Scala, da Rua Aurora, 720, próximo à Praça da República.
Cinema aberto em 17/4/1962, passou para a nova categoria de cinema de arte em janeiro de 1966
(em 1975 foi reinaugurado como Belas Artes Centro). O Bijou, repassado para o exibidor
Francisco Augusto Coelho, declarava que o nome do diretor era o critério para a seleção dos filmes a
serem exibidos, numa manifestação direta à “política dos autores” criada pela Nouvelle Vague.
O jornalista Thomaz Souto Correa, no Suplemento Feminino de O Estado de S. Paulo, avalizou
os esforços do cinema na manutenção de “[...] uma programação que lhe valha o título de ‘cinema de
arte’ [...]. Já se sabe que no Bijou há sempre uma boa reprise para se
ver”. Ainda no final da década,
em 1969, foi inaugurado o Cosmos 70 (22/2/1969), na Rua Augusta, 962, que por um período foi
programado como cinema de arte pelo editor Massao Ohno e a atriz e cineasta Aurora Duarte.
Sociedade Amigos da Cinemateca – SAC
O fato de a cinefilia ser sustentada por um núcleo de espectadores mais regular na década de 1960, com
forte presença daqueles oriundos da juventude estudantil e universitária, facilitou a estratégia comercial
dos circuitos exibidores. O coração da prática cinéfila continuava sendo ditada pelo auditório do MAM,
gerido pela Fundação Cinemateca Brasileira, porém a sustentabilidade comercial era precária para a própria
instituição de conservação cinematográfica. O Coral, cujo sucesso financeiro e cultural tinha sido provado
em pouco mais de dois anos, era uma plataforma de expansão mais segura para o desenvolvimento da
difusão cultural da Cinemateca e dos objetivos dos cinemas de arte em geral.
As sociedades de amigos tinham se transformado numa prática popular de cooperativismo na década de 1950.
As associações de bairro e de defesa de causas políticas e culturais faziam parte do cenário urbano,
sendo a maioria delas de inspiração comunista, mas com necessária vocação pluripartidária, como o
tinham sido as frentes populares de duas décadas antes. A SAC também se alimentou desse fundo comum de
agitação esquerdista. Dante Ancona Lopez, pelo Coral, e Rudá de Andrade, pela Cinemateca, eram
militantes comunistas, mas a filiação política era a última coisa que eles gostariam de ver vinculada à SAC.
Deve-se lembrar que a Fundação Cinemateca Brasileira era uma
entidade apolítica. Para dar um caráter anódino e pulverizado à diretoria, convocou-se o apoio de várias
personalidades de peso: Florentino Llorente, alto funcionário da Cia. Serrador, Roberto Abreu Sodré,
futuro governador de São Paulo, antigos militantes das causas da esquerda como
Renato Sampaio Coelho, e personalidades ascendentes no mundo das celebridades, como Ligia
Freitas Valle Jordan. Dessa forma constituía-se uma frente de artistas, jornalistas, exibidores,
intelectuais, sob o comando de Dante na presidência, Rudá na “orientação técnica” e
Jean-Claude Bernardet na secretaria.
Parte do corte longitudinal do Cine Coral, no projeto
apresentado em 1958, destacando a cabine.
Na sobreloja, sobre o saguão do cinema, que se abre à direita
para a Rua Sete de Abril, seria instalado a SAC.
Processo 214.138/58
Acervo DAMP/SEMPLA/PMSP
A SAC era o prosseguimento do Segundo Clube de Cinema, da Filmoteca do MAM e da
Cinemateca, abrigando-se no mesmo endereço do Coral, na
sobreloja que finalmente encontrava um destino, promovendo pré-estreias às 22 horas,
uma novidade para a época, palestras, exposições, lançamentos de livros e publicação de catálogos.
A ata oficial de constituição da sociedade foi assinada em 2/7/1962. Os primeiros 600 sócios
estariam isentos do pagamento de joia. A primeira pré-estreia foi com a fita de René Clair, Todo o ouro do mundo,
seguida por O ano passado em Marienbad (Alain Resnais), A provocação (Francesco Rosi),
Hiroshima mon amour (Resnais) e A carta que não foi enviada, do soviético Mikhail
Kalatazov, que recentemente ganhou súbita notoriedade graças ao documentário sobre a coprodução
soviético-cubana Soy Cuba (1963). Ou seja: um programa que nenhum cinéfilo poderia desdenhar
no início dos anos 1960. Reforçando essa ideia, Bernardet falou à imprensa que: “Há nessa
cidade, ultimamente, um grande desejo de assistir obras de categoria artística, por um
público que se educa cinematograficamente cada vez mais,
tendo para confirmar essa assertiva o fato de a sala de projeções do ‘Museu de Arte Moderna de
S. Paulo’ ficar lotada quando projetamos filmes de categoria, clássicos ou modernos, inacessíveis
de outra maneira”.
Completando, Bernardet lembrou que por meio de projeções, livros, conferências e catálogos, o público
“cada vez mais se eleva e mais se refina nas suas exigências cinematográficas”.
O desenvolvimento do campo “cinema de arte” dentro do mercado exibidor motivou a realização,
em 1966, de um Encontro Nacional dos Cinemas de Arte, no Rio de Janeiro, sob os auspícios do
Diário de Notícias.
O Encontro ou I Conferência Nacional, como também foi chamado, reuniu os jornalistas do Rio de
Janeiro que militavam pela causa (Ely Azeredo e Alberto Shatovsky, notadamente; Shatovsky, nos
anos seguintes, criaria a rede de arte Cinema Um), com o pessoal de São Paulo e cineclubistas.
O temário objetivava o estabelecimento de um estatuto para o cinema de arte, criação de
estímulos para o setor, a organização de uma coordenação nacional e tomada de posição diante da
censura do regime militar instaurado em 1964.
Para Rudá de Andrade, representando a SAC no Encontro, o conceito de cinema de arte não era preciso.
O que marcaria o empreendimento seria uma “[...] determinada intenção na programação consciente,
visando a uma distinção cultural, uma instituição procurando
ter um vínculo cultural e contribuindo como mercado especializado para desenvolver o próprio
mercado nacional de exibição e distribuição”. As três assertivas moldavam-se à situação dos
cinemas de arte da época: 1) programação consciente, isto é, desligada das imposições das grandes
distribuidoras estrangeiras, marcadas pelas práticas da venda em bloco (block-booking) ou
da colocação de títulos desconhecidos dos exibidores;
2) ligação com uma instituição cultural (caso da SAC com a Cinemateca) e 3)
segmentação especializada do mercado exibidor. O proselitismo
político ficava por conta de uma idealizada preocupação com a cultura popular.
No plano mais concreto, o fulcro estava na montagem de um
circuito de cinemas voltados para a atividade, para o qual já se contava com um número
aproximado de 20 cinemas espalhados pelo Brasil,
abrangendo um volume de cerca de 30 mil espectadores. Pode-se colocar em
dúvida os dados citados. Havia, no entanto, um desejo de aproximação com o circuito
montado pelos cineclubes, cujo representante oficial no Encontro foi Cosme Alves Neto,
pela Federação dos Cineclubes do Rio de Janeiro. Foi eleita uma comissão para a
organização da Associação Brasileira de Cinemas de Arte formada por Rudá, Cosme e Fabiano
Canosa. Os estatutos foram aprovados ao final do Encontro, em 27 de novembro, distribuindo-se
aos associados uma primeira lista de filmes passíveis de interesse pelas salas, entre os
quais os clássicos Scarface (Howard Hawks), Sangue de pantera (Jacques Tourneur) e
O vampiro de Dusseldorf (Fritz Lang).
Assinalando boa vontade, o Serviço de Censura de Diversões Públicas – SCDP baixou uma portaria (nº. 13/67),
concedendo certificados especiais aos filmes considerados de arte e de “valor educativo” para utilização
pelas entidades culturais (os cinemas comerciais, caso do Coral, ficavam de fora do alcance da portaria).
Com o término do contrato de dez anos da Áurea Filmes com a locadora do imóvel da Rua Sete de Abril,
a Comércio e Representação Lopes Sacramento Ltda., Dante Ancona Lopez foi obrigado a desocupar o Coral.
Como o Trianon já exibisse a programação daquele cinema, a passagem para o território da Paulista foi suave.
Segundo Inimá Simões, Dante repassou o cinema para a exibidora carioca dos irmãos
Valanci.
Ao contrário do que escreveu Heloisa Buarque de Almeida,
o cinema da Sete de Abril não fechou, seguindo na sua carreira até a
decadência e o desaparecimento.
Como outros cinemas da década de 1970, ele foi dividido em
duas salas para aumentar a renda do espaço, o Coral 1 e Coral 2 (1978), já que o mercado não aceitava mais
a existência de cinemas de 1.000 lugares. Quando o filme pornográfico invadiu o
chamado “centro velho”, o Coral inseriu-se no modismo em 1988, selando a sua morte no final do ano de 1990.
A saída de Dante do Coral foi um entre vários sinais da perda de qualidade do território que fora o
seu ponto de partida dez anos antes. O auditório do MAM deixou de ser utilizado pela
Cinemateca, e o próprio Museu foi “liquidado” por imposição de seu fundador,
Francisco Matarazzo Sobrinho, mais interessado nas Bienais de Arte realizadas no Ibirapuera,
ressurgindo, porém, mais tarde na localização atual.
O MASP, por sua vez, migrou para a Av. Paulista, instalando-se no moderno prédio concebido por Lina Bo Bardi.
A Faculdade de Filosofia da USP, à Rua Maria Antonia, de onde vinha parte significativa do público
dessas instituições, entrou em processo de mudança para o campus do Butantã,
principalmente depois dos conflitos de rua ocorridos em 1968 entre a FFLCH e a Universidade Mackenzie.
Em meados da década de 1960, portanto, uma nova territorialidade cinéfila tinha que ser estruturada no
já esboçado eixo das ruas Augusta / Consolação e Avenida Paulista.
Continua >
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Para citação adote:
SOUZA, José Inácio de Melo. Pasolini passou por aqui: notas para uma história do
Cine Belas Artes e a formação do circuito paulistano de cinema de arte.
INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 10 (36): ago.2014.
<http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>
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