Com isso, o cinema
ficou fechado de janeiro a julho de 1967 para as reformas necessárias.
A reconstrução do ex-Trianon futuro Belas Artes propiciou o primeiro aumento do número
de espectadores da sala que passou para 1.400. Graças ao apoio da Associação Brasileira de
Desenho Industrial, o cinema foi inteiramente repaginado com novas poltronas, decoração e iluminação.
Alargando a perspectiva cultural do alcance da sala, foi criado um pequeno palco com iluminação
adequada para espetáculos teatrais com peças de um ato, servindo ainda para concertos
de câmara, palestras e conferências.
Seguindo a experiência do Picolino, agendou-se uma sessão às
22:30 horas para películas especiais. O saguão ganharia uma galeria de arte,
estendendo o seu poder expositivo à área defronte ao cinema que
não fora ainda engolida pela ampliação da Rua da Consolação. Pensava-se em
stands no
espaço aberto para a rua, voltados para o lançamento de livros e discos (a coluna social de
Tavares de Miranda falou em livraria e galeria de arte oferecidas pela Cia. Serrador e a SAC).
Os filmes cogitados para a abertura giravam em torno de Fellini (
Julieta dos espíritos), Milos Forman
(
Os amores de uma loira) e Claude Lelouch (
Um homem, uma mulher). Como esse programa
cultural era ditado por uma das autoridades máximas da Serrador, Florentino Llorente,
tudo se esperava do novo cinema.
Para os exibidores, o filme de arte não era mais o tabu de antes. Graças às ações da crítica,
da cinemateca, dos clubes de cinema, dos distribuidores “mais esclarecidos”, e até mesmo
por imposição de um público exigente, a concordância entre a cinefilia e o mercado estava
perfeitamente sincronizada. Esse novo tempo permitira, por exemplo, que uma fita inacabada de
Adrzej Munk,
A passageira (Pasazerka, 1963) fosse lançado no Picolino, dirigido pela SAC,
apesar de ser considerado um lançamento “um pouco perigoso” pela Cia. Serrador.
Contudo, a película recebeu uma ótima acolhida.
O público passou a exigir da Serrador um “alto nível artístico” para a programação. O Belas Artes se
voltava para o atendimento dessa realidade, dotando São Paulo de um “verdadeiro cinema de arte”.
Para a crítica foi uma verdadeira ducha fria a abertura do Belas Artes em 14/7/1967 com a
comédia de Norman Jewison, Os russos estão chegando (o público deve ter gostado, porque a
fita ficou mais de um mês em cartaz). A. Carvalhaes, no Diário de S. Paulo, foi um dos que se
decepcionaram: “[...] anteriormente, com exceção do Picolino, os demais cinemas de arte
eram pequenas e mal dotadas salas, algumas até mesmo guilhotinando os filmes
na projeção em mal adaptadas telas panorâmicas. O Belas Artes nos é apresentado com foros de um dos maiores
cinemas de arte de qualquer parte [...]” do
mundo. Ora, concluiu, a fita de Norman Jewison
estaria melhor colocada no Metrópole ou no Paissandu. A escolha para a inauguração fora
“lastimável”. Teria que se esperar os meses seguintes para que o eixo fosse encontrado com a
apresentação de
Fahrenheit 451, de Truffaut, seguido por
O anjo exterminador, de Buñuel.
Mas a “marca” do Coral prevaleceu, exibindo-se filmes comerciais ao lado de outros mais
engajados com um dos primeiros Francis Coppola,
Agora você é um homem (You are a big boy now),
alternando-se clássicos ou reprises fora de circulação, voltando em cópias novas como
O circo
(Chaplin) e
Fantasia (Walt Disney). Uma novidade foi a perda da primazia dos italianos presentes
na “fase Coral”, em razão das importações de Dante Ancona Lopez. No Belas Artes se exibiram
fitas de diversos distribuidores (Rank, Warner, etc.), sendo
Romeu e Julieta, de Franco Zefirelli,
um dos seus maiores sucessos na nova fase, permanecendo meses em cartaz.
Rua da Consolação, no cruzamento com a Avenida Paulista,
numa tomada em direção ao centro da cidade.
Os postes, ao meio da imagem, delimitam ainda o antigo alinhamento e
permitem dimensionar a grande parcela de terreno perdida para desapropriação.
Percebe-se, à direita, o letreiro do Cine Belas Artes,
junto ao edifício de apartamentos, que compõe o conjunto construído.
13/9/1968
foto: Ivo Justino / Gabinete do Prefeito
Acervo AHSP
Quanto ao blá-blá-blá culturalista vendido à imprensa por Florentino Llorente, nada ou muito pouco
aconteceu, mesmo porque depois de 1968 o panorama cultural foi completamente alterado
pelo endurecimento do regime militar com o AI-5. O importante a se notar na abertura do Belas
Artes foi a confirmação da territorialidade cinéfila no eixo Consolação/Augusta/Paulista,
fenômeno que se mantém até os dias correntes. Tiveram importância nessa área geográfica
o auditório do Instituto Goethe, hoje transformado nas salas 4 e 5 do Espaço Itaú (na época Espaço Unibanco),
que abriu uma nova janela para o cinema novo alemão, no final da década de 1960, introduzindo ao
público paulistano os jovens diretores Werner Herzog e Win Wenders. Ainda na
Augusta deu-se a alteração do perfil do Marachá (Rua Augusta, 778) entre 1971 e 1977 sob a direção
de Álvaro Moya, que passou de cinema comercial a sala de arte. Como em casos anteriores,
Moya instituiu pre-estreias nas quartas-feiras às 24 horas, a chamada “sessão maldita”.
Programou ciclos como o dedicado à obra de Jean-Luc Godard. Além de garimpar
preciosidades nas distribuidoras, ele criou o festival dos melhores filmes de cada ano, prática que
está atualmente estabilizada no Cinesesc.
O cruzamento da Avenida Paulista com a nova Consolação, na sexta-feira 13 de setembro de 1968,
traz ainda as marcas de uma transformação severa.
A vista, que os frequentadores do Cine Belas Artes conheciam, apresenta ao fundo,
em continuidade não interrompida, o trecho inicial da Avenida Rebouças.
foto: Ivo Justino / Gabinete do Prefeito
Acervo AHSP
Outro fator que aumentou o número de cinemas de arte na cidade devia-se à nova
geração saída dos cursos de cinema (Escola de Cinema da Faculdade São Luiz e Escola
de Comunicações e Artes). A formação de um público profissional saído da Universidade facilitou
a expansão de novos centros difusores de cinefilia, que não dependia mais dos profissionais
“esclarecidos” do mercado exibidor ou distribuidor. O pequeno auditório do Museu Lasar Segall e
os vários cineclubes que se abriram pela cidade na década de 1980-1990 apoiaram-se
justamente nesse novo tipo de profissional. O fenômeno do cineclubismo foi inclusive mais
importante do que a simples fruição cinematográfica, já que criava um campo de luta em defesa
do cinema brasileiro de curta e de longa metragem, assim como de embate contra a censura do regime
militar. Ainda que fora do eixo preferencial da cinefilia, deve-se lembrar o importante auditório do
Cineclube da GV (Fundação Getúlio Vargas), fonte de formação do exibidor e distribuidor André Sturm, por exemplo. Instalado na
Avenida Paulista, o MASP criou o seu Departamento de Cinema em 1975, cuja direção ficou
a cargo de Leon Cakoff, organizador, posteriormente, da Mostra Internacional de Cinema
(o MASP tinha duas salas, ambas no primeiro subsolo, o auditório e uma pequena sala, comportando,
no total, 600 espectadores). A rede carioca de Alberto Shatovsky, a Cinema Um, chegou a São Paulo
na mesma época, instalando-se no antigo Orly, situado na Rua Augusta (comprado para instalação do
Cinesesc em 1979). Teatros como o Paiol, da Rua Amaral Gurgel, funcionaram também como
cineclubes no início dos anos 1970, sob a direção de Abrahão Berman. O Teatro Anchieta, na
Rua Dr. Vila Nova, pertencente ao SESC, passou a exibidor de filmes de arte, mantendo
viva a chama da polêmica ao apresentar o proibido curta de Glauber Rocha,
Di-Glauber,
por exemplo, realizado pelo cineasta durante os funerais do pintor Di Cavalcanti. Na Rua General Jardim o Teatro
da Aliança Francesa ampliou suas atividades apresentando fitas do acervo do consulado francês.
O Bar Riviera, tradicional ponto de encontro, marca a outra esquina do cruzamento encimado pelo Cine Belas Artes.
Ao seu redor, outros estabelecimentos se sucedem, referências para diferentes gerações, como o Ponto Quadro, à direita.
O registro, de 1972, documenta as etapas finais de construção da passagem de pedestres subterrânea na Rua da Consolação, outra referência local.
foto: sem autoria/ Gabinete do Prefeito
Acervo AHSP
Embora não tenha sido localizada a documentação, é possível que durante a reforma para a
divisão do Belas Artes também tenha sido pensada a abertura do minúsculo cineminha do subsolo que
passou a se chamar Mário de Andrade. A reinauguração do Belas Artes ocorreu em 8/8/1970 com
as Salas Villa Lobos (plateia) e Portinari (antigo balcão), apresentando os filmes
If (Lindsey Anderson)
e
Satyricon (Fellini) Mas a Mário de Andrade somente foi ocupada pela SAC em 3/3/1972,
marcando o renascimento da entidade depois de alguns anos de hibernação. A entrada se fazia pelo
saguão de espera da Sala Villa Lobos, descendo-se ao subsolo por uma escadaria de madeira
acarpetada. O espaço tinha 85 m
2, sem sanitários, com uma ventilação provida
por ventoinhas, uma minúscula cabine de projeção comandada pelo mesmo projecionista da
ECA, o popular Felisberto, atendendo a um público de 88 a 100 espectadores. Os
filmes de abertura foram o marginal
Jardim das espumas, de Luis Rosemberg Filho, e o
documentário do formando da ECA, Aloiso Raulino,
Jardim Nova Bahia. Mesmo com todos esses
qualificativos, uma fiscalização da Prefeitura realizada em 1978 classificou a “construção em completo
desacordo com a legislação”.
Detalhe de prancha da sala Mário de Andrade, apresentada em 1976.
De dimensões exíguas e condições de funcionamento precárias,
motivou contínua fiscalização.
Processo 945.111/76
Acervo DAMP/SEMPLA/PMSP
Isso se verificou quando a família Azer Maluf com escritório na Rua Boa Vista, 254, 3º. and.,
sede da Imobiliária, Comércio e Indústria Bandeirante S.A., entrou com pedido para a reforma do
Belas Artes em 12/9/1977. O ponto polêmico encontrado pela administração pública foi a salinha da
Mário de Andrade. Na opinião
dos engenheiros da Prefeitura, o local devia ser interditado. O Secretário de Administrações Regionais,
Celso Hahne, assim procedeu, assinando a interdição em 11/10/1978, momento
em que Phelippe Azer Maluf já tinha morrido, estando o imóvel de propriedade do filho Albert Phelippe.
O último contrato de locação fora assinado em 7/11/1979, com vigência até 30/4/1983. Em 1981,
o processo de interdição ainda corria na Prefeitura. Essa situação foi “resolvida” com o
incêndio de origem criminosa ocorrido em 10/5/1982, que levou à rescisão do contrato de locação.
Embora o mercado exibidor da cidade estivesse em decadência, a Cia. Serrador ainda resolveu
apostar no Belas Artes, convertendo o cinema num
multiplex de seis salas, o primeiro da empresa.
Um novo contrato com a família Azer Maluf passaria a vigorar após as reformas, mas um novo
personagem entrou em cena: a Gaumont do Brasil.
Nos anos iniciais da década de 1970, a região ao redor do Cine Belas Artes ganha a configuração que marca os últimos 40 anos.
Com o fim do projeto Nova Paulista, reduzido a um trecho de duas quadras e sua conexão com as Avenidas Rebouças e Dr. Arnaldo,
seu aspecto geral pouco mudaria em comparação a este registro realizado em 1972, até a abertura da estação Paulista, da linha amarela do Metrô.
foto: sem autoria/ Gabinete do Prefeito
Acervo AHSP
A Gaumont do Brasil Cinematográfica Ltda. era uma holding que tinha como sócios a
Gaumont Participações Ltda. e o banco América do
Sul,
controlando a Gaumont Cinematográfica Ltda., Gaumont Publicidade Ltda., Gaumont Hotéis, Turismo e Cinema Ltda.,
Gaumont Produções, Distribuição de Filmes Nacionais Ltda. e Gaumont Teatro Ltda. A sede ficava na Avenida
Ipiranga, 381, bloco A, 15º. and., com registro na Junta Comercial desde 29/7/1982, ou seja, logo depois do
incêndio do Belas Artes. O dirigente principal era Jean-Gabriel Albicoco (Cannes, 1936; Rio de
Janeiro, 2001), um diretor que tinha feito carreira na Nouvelle
Vague.
Logotipo da empresa Gaumont do Brasil.
Processo 1983-0.021.887-4
Acervo DAMP/SEMPLA/PMSP
Albicoco foi um dos fundadores da Sociedade de Realizadores de Filmes, participando da
renovação do circuito exibidor parisiense, quando teria investido na ideia dos
multiplex.
Depois de uma passagem pela TV, ele aportou no Brasil por volta de 1972 com um projeto de realização de um
Polichinelo negro, tendo como ator principal Paulinho da Viola. A proposta não vingou, porém
Albicoco estabeleceu-se no Rio de Janeiro. Consta que trabalhou na TV Globo, e explorou o
cinema do Hotel Meridien. Por volta de 1974 assumiu a distribuição dos filmes da Gaumont, quando teria
trazido uma centena de películas para exibição no país. Dentro de uma visão “anticolonialista”
de exploração do mercado periférico, ele conseguiu convencer a matriz a coproduzir no país,
entrando em produções como
Xica da Silva e
Dona Flor e seus dois maridos, ambas de 1976, e
O beijo da mulher aranha, em 1985, já na fase de subsidiária da distribuidora no Brasil.
As disputas entre os controladores
da Cia. Serrador facilitaram a entrada da Gaumont no negócio exibidor brasileiro. Como já
foi dito, o circuito Serrador em São Paulo estava em plena decadência, tendo caído de 40 salas
para cerca de 15, sendo duas delas em Campinas.
Como a estratégia de Albicoco era a distribuição de “filmes de arte”, ele também propôs à matriz a
transformação do Belas Artes num complexo de salas, como já fora pensado por Antonio
Paulo Serrador, com lotações variando entre 150 a 300 lugares. O olhar culturalista recebeu atenção
com a sugestão de elevação do cinema a um “centro cultural cinematográfico”,
voltado para um programa de ciclos, festivais e mostras
especiais.
Os valores da venda entabulada entre a Gaumont e a Cia. Serrador giraram entre um e
três milhões de dólares. O custo da reforma do Belas Artes consumiu outros
500 mil dólares.
O projeto foi assinado por Annemarie Rust, arquiteta do Rio de Janeiro. Ele previa a
manutenção dos elementos construtivos existentes, operando-se as modificações e acréscimos
no interior do edifício. Para tanto, o antigo balcão seria dividido em duas salas, a redução do pé
direito da plateia daria lugar a mais uma sala, dois na subdivisão da plateia e a ampliação da antiga
“ratoeira” da Mário de Andrade. A reforma virou um entrechoque entre a Prefeitura e a exibidora
quando se descobriu uma discrepância entre as plantas apresentadas e o efetivamente realizado
após a inauguração em 1/6/1983. A Comissão Especial de Uso e Ocupação do Solo – CEUSO
considerou, na reunião de 21/6/1983, que o cinema não atendia aos requisitos de segurança,
interditando o prédio.
A SEHAB acompanhou o parecer declarando o prédio “irregular”,
sem “habite-se”, aberto apenas com o alvará de funcionamento. Sampaio Dória, pelas Administrações
Regionais, reforçou a interdição do Belas Artes.
Corte longitudinal para a nova configuração de salas do Belas Artes, 1982.
É possível perceber a estrutura do antigo balcão, em hachurado,
onde o piso foi levantado. O projeto dividia a sala original
em 3 planos horizontais, gerando 4 salas (duas no último piso).
O piso intermediário, ao nível da rua, era, por sua vez, subdivido,
obtendo-se a quinta sala, como registra abaixo o corte transversal.
Na versão seguinte do projeto, o piso inferior ganharia na parte da frente
uma pequena sala de exibição, aproveitando-se um depósito.
A solução engenhosa criava problemas de circulação e
introduzia um grave potencial de risco para segurança dos usuários.
Processo 1982-0.019.979-7
Acervo DAMP/SEMPLA/PMSP
Depreende-se do volumoso processo aberto pela Prefeitura, que a Gaumont construíra seis cinemas
em vez de cinco, aumentando a lotação para 1.436 espectadores, em vez dos 988 previstos
inicialmente. Várias alternativas foram discutidas, todas pedindo a redução do número de salas, até
que o CEUSO aceitou as seis salas porém com várias alterações: o número de espectadores se fixava
em 988, retirou-se o mini-shopping que atravancava a entrada, substituído por uma simples bombonière,
ampliaram-se corredores de entrada e saída das salas,
etc.
O complexo foi reaberto em 27/10/1983 com a mesma programação de quatro meses antes:
Crônica do amor louco (Marco Ferrari), O desespero de Veronika Voss (Fassbinder),
Retratos da vida (Claude Lelouch), Danton (Vajda) e os nacionais Sargento Getúlio
(Hermano Pena) e Sete dias de agonia (Denoy de Oliveira). Um folheto produzido pela
exibidora anunciava a abertura do Belas Artes como um gesto de “libertação” do jugo do poder das
“majors” norte-americanas, que monopolizavam o mercado em aliança com a censura do regime militar.
Em sentido contrário, a produtora francesa dedicava-se à promoção do
“Cinema de Arte”: “Fazendo um balanço dos primeiros anos de luta, constatamos com orgulho que
sempre participamos, com nossos filmes, entre os melhores de cada ano. Assim se impôs a
imagem da Gaumont”. Singular noção de luta antiimperialista, quando se sabe pela imprensa que a
matriz francesa tinha trazido os projetores da italiana Cinemeccanica como “doação” do governo para
evitar pagar os impostos correspondentes.
Estudo para fachada do Gaumont Belas Artes Serrador,
com cinco salas, apresentado em 1982.
Processo 1982-0.019.979-7
Acervo DAMP/SEMPLA/PMSP
Estudo para fachada do Gaumont Belas Artes,
agora com seis salas, apresentado um anos depois.
Processos 1983-0.021.800-9, 1983-0.021.886-6
Acervo DAMP/SEMPLA/PMSP
A aventura “libertária” da Gaumont do Brasil durou exatos dois anos. Em julho de 1985 começaram
a surgir na imprensa notas sobre a transferência do circuito para a Alvorada Cinematográfica
Internacional Ltda., exibidora de Wilton Figueiredo, cuja base de ação estava, até então,
situada no interior dos Estados de São Paulo e Minas Gerais (Empresa de Cinemas São Paulo Minas Ltda.,
com sede em Passos).
A justificativa da multinacional francesa para a saída do Brasil estava na
“Lei Sarney Filho” (Lei nº. 7.300, de 27/3/1985), que equiparava as empresas
cinematográficas às jornalísticas, vedando a entrada de capital estrangeiro nas composições acionárias.
Em paralelo corria a informação de que a Gaumont precisava fazer caixa diante dos prejuízos com a filial
italiana, sacrificando-se o ramo sul americano.
A crise do mercado exibidor continuou sua marcha, seguindo-se nos anos seguintes o inexorável
fechamento das salas voltadas para a rua – os “cinemas de rua” –, enquanto as
multinacionais da exibição tomavam conta dos
shoppings-centers. O Art-Palácio, Ipiranga, Metrópole e
Vila Rica são agora imóveis fechados e sem uso; outros ganharam nova feição como o
Majestic, que se transformou em Espaço Unibanco de Cinema (atual
Itaú); outro ainda se transformou em livraria
mega-store, depois de passar pela ameaça de
virar templo evangélico (Astor). Outros mais sobreviveram como cinemas de arte,
antes de se renderem ao inevitável (Top Cine).
O Belas Artes, responsável
por cerca de 40% dos rendimentos do circuito Alvorada em 1985, foi repassado ao circuito
carioca Estação Botafogo em julho de 2001.
A distribuidora e exibidora
carioca de filmes de arte fechou um acordo com a Alvorada para a administração
dos 10 cinemas paulistanos em funcionamento na
época. Por volta de julho de 2003 a
Estação Botafogo resolveu concentrar suas transações no
Rio de Janeiro, saindo do mercado paulista. Quanto ao Belas Artes, uma reforma orçada em
R$ 4 milhões talvez tenha pesado nos cálculos da distribuidora, levando-a ao abandono do
principal complexo de exibição, já que o Studio Alvorada (Conjunto Nacional) tinha sido
fechado.
André Pompéia Sturm, em associação com o produtor e diretor Fernando Meirelles da O2Filmes, viu no
Belas Artes em vias de encerramento das atividades, uma boa oportunidade, comprando o
ponto.
André Sturm (15/7/1966) tinha começado no cinema como cineclubista, quando era aluno de
Administração da Fundação Getúlio Vargas. Entre 1984 e 1989 foi programador do Cineclube da GV.
Saindo da FGV, abriu o Cineclube Oscarito (1989-1991), acumulando também a função de
diretor de programação da Cinemateca Brasileira na mesma época. Em 1989 fundou a Pandora Filmes,
importadora e distribuidora que buscava trazer fitas “outrora pouco acessíveis no mercado brasileiro”,
eterna carência dos cinemas de arte, trazendo revelações dos novos talentos da
sétima arte. Passou a exibidor com o Vitrine, situado numa galeria da Rua Augusta, 2.530, próximo ao
Cinesesc (o Vitrine era um cinema de galeria aberto em 18/4/1977; passou por várias denominações
como Estação Vitrine, Cineclube Direct TV, Cineclube Vitrine, não se sabendo
exatamente o período em que ficou sobre a direção de André Sturm, provavelmente entre 2001 e 2005).
Exerceu ainda os cargos de diretor da Federação Paulista de Cineclubes, presidente da
Associação Brasileira de Documentaristas (ABD-SP), presidente da ABD nacional, da Associação
Paulista de Cineastas – APACI e do Sindicato da Indústria Audiovisual do Estado de São Paulo – SIAESP (2003-7),
com assento na poderosa Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP, da qual foi
diretor adjunto, onde implantou o Programa Cinema do Brasil, voltado para a
exportação de filmes por meio de coproduções ou venda de direitos, com o apoio da APEX e do
Ministério da Cultura. No início da gestão Luiz Inácio Lula da Silva foi membro do Conselho Superior
de Cinema. Em 2007 entrou para a Secretaria do Estado da Cultura como Coordenador da
Unidade de Fomento e Difusão, criando, entre outras atividades, o programa “Vá ao cinema”,
que distribui vales-ingressos nos cinemas para alunos da rede pública de ensino
(o vale é trocado por um ingresso, cuja cobertura monetária é depois cobrada pelo
exibidor à Secretaria).
O programa chegou a distribuir 1,9 milhão de vales-ingressos, chegando a 2009 com 2,1 milhões,
distribuídos por 115 cidades do Estado de São Paulo. Sturm ainda é curta-metragista e diretor de
longas com vários filmes no seu currículo.
Não foi localizada a documentação sobre a reforma realizada no Belas Artes pelo arquiteto
Roberto Loeb. Ela se devia ao aporte de cerca de R$ 4 milhões de reais feito pelo departamento
de marketing do banco inglês HSBC, que tinha se unido à Pandora e à O2Filmes como forma de ganhar
visibilidade na cidade, onde tinha 300 agências e pontos de
atendimento.
O entendimento entre as partes, segundo Sergio Dávila
do jornal
Folha de S. Paulo, tinha ocorrido depois da
realização de um filme institucional para o banco pela produtora de Fernando Meirelles.
Roberto Loeb ampliou os corredores estreitos e o pé-direito baixo dos espaços considerados “claustrofóbicos”.
Cadeiras mais confortáveis substituiriam as antigas. Um elevador para deficientes físicos
não foi instalado a tempo para a reinauguração.
No início de janeiro de 2004 a reforma começou pelas salas Cândido Portinari e Mário de Andrade,
que foram fechadas, continuando o resto do complexo em funcionamento. Do final do mês em diante, todo o
prédio foi fechado para as obras, que seguiram até maio. A abertura ainda foi
retardada por um incêndio de pequenas proporções ocorrido na sala Cândido Portinari.
Depois de quase cinco meses de obras, no dia 24/5/2004 ocorreu, às 20:30 horas, a pre-estreia da película
brasileira O outro lado da rua. Para o público, a abertura deu-se quatro dias depois.
O Belas Artes, ostentando o nome do banco em duas fitas de celulóide na fachada, abriu ampliado para
1.040 lugares. O elenco de
oito filmes se dividia da seguinte forma:
O herói da família (Aleijadinho),
O dia depois do amanhã
(Cândido Portinari),
Cronicamente inviável,
Quanto mais quente melhor e
As bicicletas de Belleville (Carmen Miranda),
O outro lado da rua (Mário de Andrade),
Viva voz (Oscar Niemeyer) e
Histórias mínimas
(Villa Lobos). Uma segunda reforma retirou parte das lâminas da fachada para a abertura de uma
janela envidraçada. Foi quando se mudou o logotipo do banco para as características minimalistas
que durou até o fechamento.
Depois de renovado e reinaugurado, o Belas Artes iniciou sua programação com todo o arsenal
acumulado anteriormente pelos cinemas de arte. Em primeiro lugar se instituiu como cineclube para exibição de películas
clássicas, fora de circulação e contemporâneas, além de realizar “resenhas em ciclos
temáticos”.
Aos associados, haveria a venda de carnês de ingresso por trimestre, semestre ou
anual. O programa de ciclos previa aqueles voltados para o conjunto da obra de um cineasta ou personalidade
de relevo na realização cinematográfica com mostras “Dois em Um” (exibição de dois filmes
de dois cineastas ou personalidades) e “Coletânea” (quatro filmes com
elementos similares em termos de tema, estilo, época, etc.). Pensou-se na série
“Segunda chance”, com a exibição de bons filmes exibidos por pouco tempo no circuito comercial,
e a “Cinema do mundo”, com fitas de cinematografias novas ou desprezadas, caçadas por
Fernando Meirelles no exterior, para exibição digital com legendas eletrônicas. O evento que
ficou mais famoso foi o “Noitão Belas Artes”, de ocorrência mensal, em que a partir das 24 horas
da sexta-feira se projetavam uma película em pré-estreia, seguida de uma fita relacionada à
anterior; a sessão terminava com um café da manhã oferecido aos espectadores notívagos;
no intervalo das sessões havia sorteio de DVDs, livros e ingressos para outras sessões do
Belas Artes. Não sem razão, o “Noitão” homenageava as experiências anteriores do Marachá, da década de
1970, e do próprio Cineclube Oscarito, do qual Sturm tinha sido sócio-fundador.
Depois da saída do banco, o atual proprietário do imóvel, Flávio Maluf, diante da valorização
comercial do ponto em razão da abertura da estação Paulista do metrô (na Rua da Consolação, a cerca de 20 metros do cinema,
junto às Casas Pernambucanas), pediu um reajuste no valor da locação,
impossível de ser coberto somente pelos rendimentos de bilheteria. Como resultado, Sturm
foi obrigado a deixar o imóvel, iniciando-se o movimento de “salvação” do
cinema a pedido de organizações não governamentais (ONG) como a Via Cultural – Instituto de
Pesquisa Ação pela Cultura, junto ao Condephaat, ações do Ministério Público Estadual e do Movimento
Belas Artes – MBA.
Graças às gestões do secretário municipal da Cultura Juca Ferreira junto à Caixa Econômica Federal
foi estabelecido um convênio de cogestão entre a Cinemas Belas Artes (André Sturm), a
Caixa Econômica e a Secretaria para a reabertura do complexo de salas. Pelo convênio, assinado
em 28/1/2014, o banco estatal se comprometia a conceder uma linha de crédito para a reforma
e manutenção mensal de funcionamento com a inclusão da Caixa na fachada do cinema
(Caixa Belas Artes). A reforma, segundo Sturm declarou à
Folha de S. Paulo, não teve a participação da
Caixa. A Secretaria, de acordo com a diretora do Departamento do Patrimônio Histórico,
Nadia Somekh, receberia uma sala para programação da SP Cine, o órgão da Secretaria
encarregado do desenvolvimento econômico do cinema
paulista.
O convênio teria a duração da sustentação
financeira provida pela Caixa Econômica Federal, orçada em R$ 1,8 milhão anuais.
A mais nova reabertura do Belas Artes se deu em 19 de julho com quatro salas:
Villa-Lobos (316 lugares), Cândido Portinari (274 lugares), Oscar Niemeyer (150 lugares) e
Aleijadinho (143 lugares). As seguintes, Mário de Andrade e Carmen Miranda, as localizadas
no subsolo, ficaram para data posterior.
A projeção será predominantemente
digital, reservando-se a Cândido Portinari e a Aleijadinho para projeções também em
película. Em razão da escolha do processo digital, a oferta de filmes explodiu, programando-se
19 filmes para a primeira semana de reabertura.
Alguns dos filmes desta nova fase foram
Minha irmã, de Ursula Meier, jovem diretora francesa
de carreira ainda incerta, e
Medos privados em lugares públicos, de Alain Resnais, uma
homenagem ao diretor falecido em março de 2014, escolhendo-se um dos seus filmes recordistas de
permanência na tela do Belas Artes. A Cândido Portinari concentrou a maioria das
reapresentações de clássicos (
Morangos silvestres e outros),
mas não exclusivamente, porque a Aleijadinho abriu com o brasileiro de Hermano Pena,
Aos ventos que virão, ao lado de
Queimada, de Gillo Pontecorvo. Os passos seguintes
serão a retomada do “Noitão” e outras programações especiais.
Com a volta do Belas Artes, a cidade de São Paulo passou a contar com 16 salas dentro das
características de “cinemas de rua”. O Secretário da Cultura do Município, Juca Ferreira,
espera que em breve outras se agreguem ao conjunto com as dos fechados Ipiranga, Marrocos e Art-Palácio,
todos localizados na antiga área da Cinelândia paulistana.