Os largos de São Paulo e o carro de 'praça'
Por décadas a presença de táxis – os carros de praça – tem sido uma marca regular na paisagem urbana de São Paulo. Seus condutores, inclusive, integram até mesmo o universo de personagens da cidade em crônicas, filmes e outros relatos.
Um dos registros visuais mais antigos que documentam veículos estacionados em pontos designados é provavelmente uma imagem fotográfica do final da década de 1860 do Pátio do Colégio. Tendo ao fundo a igreja do Colégio e a sede do governo provincial, perfilam-se perto de meia dúzia de carros à tração animal, alguns com quatro rodas.
Carros estacionados na "praça do Colégio", como o local é designado em regulamento municipal de 1868 entre os
primeiros pontos de estacionamento para veículos de aluguel.
In: Album Comparativo da Cidade de São Paulo (série).
São Paulo: [s.e.], 1916-1919
Acervo: BMMA/SMC
Essa atividade, naquele local, é documentada também em almanaques e guias que começam a ser publicados na
segunda metade do século XIX. Um exemplo, editado por Abilio A. S. Marques, é o
Indicador de São Paulo:
administrativo, judicial, profissional e comercial para o ano de 1878. Na página dedicada a "Carros e Tílburis que estacionam nas Praças", consta como "ponto principal" o Largo do Colégio, com funcionamento das seis da manhã às nove da noite.
Este registro, como várias outras referências aqui citadas, revelam que práticas ainda hoje rotineiras ou há pouco abandonadas, estavam estabelecidas por mais de um século. O mesmo Indicador inclui, por exemplo, a "Tabela de preços dos Tílburis, Vitórias e Carros de quatro rodas", estruturada por zonas. O texto registra regras como a de proibição de recusa de passageiros, os procedimentos para dias de espetáculos etc.
Essas condutas estão presentes no
Código de posturas do município de São Paulo, de 6 de outubro de
1886, que os aborda no Título XVIII, denominado
Sobre os diversos meios de manter a segurança,
comodidade e tranqüilidade pública. Entre os artigos do código, que enfatizam tópicos como matrícula de condutores, licença de veículos, velocidades permitidas, treinamento de animais, entre outros, os veículos de aluguel surgem como referência direta apenas no artigo n.225:
Nenhum veículo de condução chamado de praça [nosso grifo] poderá estacionar fora dos lugares indicados como estações pelo Regimento policial; sob pena de 10$ de multa. Naquelas estações, os cocheiros que não se portarem com a devida decência, que derem vaias em qualquer pessoa ou fizerem vozerias entre si, serão multados em 10$ e ser-lhes-á por 45 dias cassada a licença de que trata o art. 207.
Naquelas mesmas estações, os cocheiros que jogarem qualquer jogo de cartas, búzios, etc., serão multados em 20$.
Ainda que as práticas adotadas no período do Império não correspondam ao recorte desta edição do
Informativo, é oportuno apontar outras ocorrências, que reafirmam as regras e costumes do setor. É o
caso, por exemplo, de anúncio na imprensa, publicado originalmente no jornal
Correio Paulistano,
de 22 de agosto de 1865, por Donato Severino, sob a chamada
Progresso (reproduzido em OESP, 9.2.1938;
RAM, fev.1938):
O abaixo assinado participa ao público, e particularmente a seus fregueses que, do dia 21 deste mês em diante, tem carros e tílburís para aluguel, estacionados em o largo da Sé, onde podem ser procurados para qualquer serviço. Em quanto não houver um regulamento da polícia, ou postura a respeito, e nem fôr aprovada uma tabela especial, previne o mesmo abaixo assinado que vigorarão os preços...
O anúncio indica remuneração diferenciada para carros (certamente veículos maiores com quatro rodas) e tílburis, adotando para os primeiros preços "dentro das pontes, e pela primeira hora, preenchida ou não".
Se o registro indica a ausência de regulamento ou postura específicos até o momento, o código de 1886 permite identificar uns dos mais antigos gestos nesse sentido. Entre os "livros da Câmara Municipal", que reúne compilações manuscritas de posturas, e integram o fundo custodiado pelo Arquivo Histórico Municipal, o volume 310, cobrindo o período 1830-1873, inclui postura datada de 11 de maio de 1868, aprovada pela Assembléia Legislativa Provincial.
Nessa postura, composta por um único artigo com dez parágrafos, aquela Assembléia delega à Câmara Municipal e à Polícia a responsabilidade para gerenciar um conjunto de medidas voltadas ao registro de veículos e habilitação de condutores. De forma sumária, corresponde em espírito ao delineamento que será seguido pelas codificações posteriores, que a partir dessa prioridade — registrar e habilitar — define normas de condução como velocidade e comportamento em cruzamentos, locais de treinamento ect. O parágrafo 7 revela aspecto chave para o tema deste ensaio ao estabelecer que a Polícia designará os pontos de estacionamento para veículos de aluguel.
O
Regulamento da Polícia, de 9 de julho de 1868, transcrito no mesmo livro, apresenta em 28 artigos um detalhamento da postura, que mantém como ponto central a matrícula obrigatória dos cocheiros e o registro de veículos. Os artigos 5 e 6 referem-se diretamente a "carros de aluguel" e a veículos "quer de praça quer de cocheira". Estes termos que se tornariam usuais nas décadas seguintes — primeiro, carros de aluguel, e muito depois, carros de praça —, parecem ter origem remota. Além disso, a expressão "quer de praça quer de cocheira" indica, aparentemente, uma prática adicional: a da oferta de veículos de aluguel de melhor padrão.
Talvez, como reflexo de oferta significativa de serviços de aluguel de veículos para condução pessoal e de igual presença na frota do período, o
Regulamento inclui diversos artigos a eles referentes. Seja a proibição "ao condutor de veículo estacionado na praça" de recusa de serviço, bem como a exibição obrigatória em local visível da tabela de preços (artigo 12), seja a recomendação de bom trato ao passageiro (artigo 16). No tocante ao estacionamento de veículos de aluguel, os artigos 18 a 20 estabelecem sua proibição fora dos locais designados "por edital" e o horário de funcionamento das 6 às 22 horas, exceto nos dias de espetáculos ou divertimentos públicos, e, por fim, exigem que no regresso de serviço estacionem "no extremo da linha de seus iguais, ou por detrás deles".
Um aspecto que a leitura da legislação revela, embora sem maiores detalhes operacionais, é a possibilidade de funcionamento de empresas dedicadas a veículos de aluguel para condução pessoal. Indo além da prática registrada em que o proprietário de um carro poderia ter vários cocheiros designados para um mesmo veículo, o artigo 24 determina que empresas de aluguel de veículos deveriam ter escriturado o registro dos condutores e a remuneração por veículo.
Por fim, o artigo 27 designa cinco pontos de estacionamento para carros de aluguel, entre eles a "praça do Colégio", corroborando com a identificação da foto do local mencionada inicialmente. E, além deste, os largos de São Gonçalo, da Luz e do Brás junto às estações de trem, e de São Francisco.
Carros de aluguel estacionados no Largo da Sé, ao lado da antiga catedral. Ao fundo, Rua do Imperador, 1887.
AZEVEDO, Militão Augusto de.
Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo: 1862-1887.
São Paulo: [s.e.], 1887
Acervo: BMMA/SMC, SAN/DIM/DPH/SMC
O Largo da Sé
Embora não identificado na regulamentação sobre pontos de estacionamento, a presença de veículos para aluguel — carros de quatro rodas e tílburis, todos à tração animal — no Largo da Sé durante o século XIX está registrada em algumas imagens, entre elas fotografias realizadas por Militão Augusto de Azevedo (1832-1905). Sua imagem do Largo da Sé e da Rua do Imperador, datada de 1887, que corresponde ao extremo norte da atual praça, apresenta carros com dois cavalos enfileirados ao lado do anexo da velha catedral. À direita, próximo ao entroncamento das atuais Ruas Direita e Quinze de Novembro, vê-se um carro com um único cavalo, porém de acabamento mais refinado, cujo condutor traja uma vestimenta diferenciada complementada por uma cartola.
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Detalhe da imagem anterior, destacando carros com padrão diferenciado, estacionado perto da confluência da Rua Direita, 1887.
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Carros de aluguel, com quatro rodas,
estacionados junto à velha catedral, 1887.
AZEVEDO, Militão Augusto de.
Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo: 1862-1887.
São Paulo: [s.e.], 1887
Acervo: BMMA/SMC, SAN/DIM/DPH/SMC
No período republicano, a legislação municipal, caracterizada na primeira década por um intenso esforço normativo, quase certamente tentando atender à explosiva demanda urbana, voltará a enfocar os estacionamentos de veículos de aluguel.
A
Resolução n.17, de 20 de fevereiro de 1893, que "Adota deliberações sobre as profissões de cocheiros e ganhadores", e constituiria primeiro gesto de revisão sobre a legislação dedicada ao trânsito de veículos, nada menciona. No entanto, a lei n.18, de 20 de janeiro do mesmo ano, relativa a receita e despesa para o ano de 1893, traz duas referências significativas. Primeiro, a tabela A –
Imposto de licença,
que taxa "carros de praça"; segundo, a tabela D —
Imposto de estacionamento, com tarifas para "carro de praça" e "tílburi de praça", estes últimos com tarifa menor.
Detalhe de imagem do Largo da Sé por volta de 1910, pouco antes da demolição da velha catedral,
destacando-se o perfil de um carro com quatro rodas, modelo usual entre os veículos de aluguel aí estacionados.
Acervo: SAN/DIM/DPH/SMC
No mesmo ano ainda, a lei n.64, de 13 de setembro, que aprova a tabela de impostos municipais, volta a
relacioná-los. Na
Tabela do Imposto de Alvarás, Estacionamento e Localizações surgem: "Carro de praça ou de aluguel, de quatro rodas... 80$000" e "Tílburi de aluguel ou de praça... 50$000".
Em 1894, a lei n.120, de 31 de outubro, que "Regula a inspeção de veículos e carretagens" por meio do mais
abrangente ordenamento sobre trânsito na cidade até então, inclui o capítulo VII, com dois artigos: "Dos pontos de estacionamento". O primeiro, de número 42, reafirma as orientações anteriores, ao proibir "aos cocheiros de veículos estacionarem em outros lugares que não sejam os designados nesta lei". Finalmente, o artigo seguinte define os pontos e o respectivo número de veículos para passageiros e para carga. Os primeiros, em número de cinco, além dos situados juntos às estações, correspondiam a um total de 57 carros e 57 tílburis, sempre à tração animal.
Aspecto do Largo da Sé, por volta de 1910, registrando não apenas a permanência do estacionamento de veículos,
mas parte de sua extensão.
Acervo: SAN/DIM/DPH/SMC
O Largo da Sé surge, em 1894, na legislação como um dos pontos mais expressivos, com 25 carros e 15 tílburis, provavelmente substituindo a função exercida pelo do Pátio do Colégio, seguido pelos pontos dos Largos de São Francisco e de São Bento, Praça da República e Largo do Arouche.
Carros de aluguel, com quatro rodas.
Detalhe de registro do Largo da Sé, por volta de 1910.
Acervo: SAN/DIM/DPH/SMC
Outras ações normativas sobre trânsito, ao longo dos próximos vinte anos, parecem restritas a adaptações exigidas pela introdução do automóvel. É, por exemplo, o caso da lei n.1.855, de 19 de março de 1915, que "Regulamenta o trânsito de motocicletas nas ruas da cidade e dá outras providências", ao exigir em um de seus dois artigos:
Os automóveis de praça, que estacionarem nos pontos permitidos, deverão ser munidos de um depósito destinado a receber o óleo ou a graxa usados nesses veículos, devendo não só esse receptor como os demais aparelhos funcionar perfeitamente, de modo a impedir o derramamento de graxa na via pública.
Apenas no início da década de 1920, quando tem lugar outro momento de revisão e sistematização da legislação neste segmento, são registrados novos procedimentos. A lei n.2.264, de 13 de fevereiro de 1920, que "Dispõe sobre a inspeção e fiscalização de trânsito de veículos no Município", por exemplo, define pela primeira vez nesses textos um vestuário para os profissionais.
O artigo 14 é específico: "Os condutores de automóveis de aluguel, para condução pessoal, usarão dolman e bonêt (sic), com as cores que a Prefeitura determinar." O uso de casacos e bonés corresponde a uma norma mais ampla. O artigo seguinte determina que os condutores de tração "animada" (o termo aí adotado para tração animal), estacionados em pontos, "apresentar-se-ão decentemente vestidos, usando sempre chapéu duro".
Carros estacionados no Largo da Sé, em frente à Casa Baruel, na confluência com Rua Direita,
em detalhe de fotografia
realizada por volta de 1914.
Acervo: SAN/DIM/DPH/SMC
Esse investimento simbólico no vestuário aparece em imagens do período anterior, basta rever o detalhe do registro fotográfico de 1887 realizado por Militão. Alguns pormenores em fotografias do Largo da Sé ao longo da década de 1910 trazem traços similares. O detalhe, de imagem datada de 1914, apresenta, no mesmo local da imagem de Militão, dois automóveis, com cabine separada para motorista e passageiros. Ao lado, os prováveis condutores, de quepe, compondo com o paletó e a gravata, conversam em grupo, que parece incluir um mercador de rua com seu cesto no braço. A placa do veículo – G33- indica ser um veículo de aluguel da categoria Garage, com melhor padrão. Outro detalhe, de imagem datada de 1913, ainda no mesmo local, traz um registro mais preciso dos veículos. Observem-se o uniforme similar e a recorrência da placa – G907, a confirmar o ponto especial.
Veículos similares, no mesmo local, no Largo da Sé,
em detalhe de foto realizada por volta de 1913.
Acervo: SAN/DIM/DPH/SMC
A mesma lei 2.264, de 13.2.1920, inclui ainda outros artigos sobre veículos de aluguel, além dos relacionados a estacionamentos. O artigo 16, por exemplo, define que seus condutores "trarão sempre consigo, quando em serviço, a guia das ruas da cidade". Terá sido esta decisão posta em prática? E o artigo seguinte introduz nos automóveis de aluguel e de estacionamento – atente a menção direta a automóveis – o uso do taxímetro, em local visível para o passageiro, com aferição anual do equipamento.
Os pontos de estacionamento
A lei n.2264 será regulamentada, extensivamente, pelo Ato n.1.426, de 26 de abril de 1920. Em relação à legislação anterior, introduz aspectos como
Dos sinais de aviso – sonoros, aos quais é dedicado o capítulo II. Nos artigos sobre veículos de aluguel, como o artigo 79 aborda as obrigações especiais dos condutores desta categoria, de modo não muito diferente do código de 1886 (artigo 225) ao discutir a ordem nos pontos, além do uso da tabela de preço.
A observância dos pontos de estacionamento é destacada. O artigo 14 proíbe, salvo para espera de passageiro ou de carga, que o carro de aluguel pare fora dos pontos de estacionamento. Adiante, no artigo 22, é vetada a parada de veículos em geral, na Praça Antônio Prado e na Rua Direita, entre as Ruas Libero Badaró e São Bento, quer para receber, quer para deixar passageiros. No período anterior a esta determinação, restrições similares ocorrem eventualmente em atos legais isolados.
Dois capítulos (VII e VIII) são dedicados ao tema do estacionamento de veículos, sempre entendidos como aqueles destinados a veículos de aluguel. São definidos 36 pontos para estacionamento de automóveis, num universo de 553 vagas, e 7 para tílburis e carros, estes sem indicação de total de vagas. A proporção revela certamente a redução da presença de veículos à tração animal neste segmento de transporte. Entre os principais pontos para estacionamentos, surge o Largo da Sé com 40 vagas, ultrapassado em capacidade por outros na região central e em especial junto às estações ferroviárias, entre eles o Largo de São Bento com 70 vagas. A grande concentração de pontos localiza-se desde já no Centro Novo, em direção ao distrito da República.
Largo da Sé, em 1914.
Com a velha catedral já demolida, é possível descortinar o contorno da futura
Praça da Sé. O estacionamento de veículos de aluguel permanece e conviverá por algumas décadas com
o crescente número de automóveis particulares, entre outros veículos,
que usarão também o local para essa finalidade.
À esquerda, um remanescente de outro período, um bebedouro para animais e alguns carros à tração animal.
Acervo: SAN/DIM/DPH/SMC
Pontos adicionais de estacionamento passam a ser objetos de atos, a partir do de número 1.543, de 15 de março de 1921. Os textos não mencionam a destinação a veículos de aluguel, embora subentendida pelo contexto. A emissão desses atos é crescente até 1924, sendo emitidos 271 atos nesse intervalo, dos quais 233 apenas nos dois últimos anos, determinando, ou modificando, pontos e números de vagas de estacionamentos de automóveis no Centro Velho e distritos ao redor (
1921: 15 atos sobre o tema para um
total de 175 atos;
1922: 23 para um total de 209;
1923: 141 para um total de 359;
1924: 92 atos para um total de 218, cessando posteriormente). Seria necessária uma aferição mais cuidadosa para confirmar serem essas vagas estritamente para uso de veículos de aluguel, em especial pela ocorrência em várias determinações similares em 1923 de referência explícita a automóveis de aluguel. Carros e tílburis nunca mais serão mencionados nestes textos, provavelmente, indicando a queda em desuso.
Este breve painel sobre os veículos de aluguel, aqui destacando a presença dos pontos de estacionamento, é talvez uma dos aspectos de maior visibilidade do temário dedicado a transportes, tendo como referência a documentação primária e bibliográfica custodiada pelo Arquivo Histórico Municipal e pelo DPH/SMC. É parte significativa, ainda que reduzida, das ações ante o grande desafio enfrentado pela cidade e pelo poder executivo local devido ao crescimento urbano no período da República Velha. Estudos nesta direção, em complemento a outras abordagens, representam um campo de pesquisa histórica a ser estimulado.
Ricardo Mendes
Seção Técnica de Estudos e Pesquisas
MENDES, Ricardo. Os largos de São Paulo e o carro de 'praça'.
INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL, 3 (13): julho/agosto 2007 <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>