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PMSP/SMC/DPH
São Paulo, julho/agosto de 2008
Ano 4 N.19  

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  • MANUSCRITOS

  • Habitações populares em São Paulo: precedentes


    Não obstante a contemporaneidade que este tema nos deixa antever, o fato é que a questão das moradias populares já se configurava como um problema passível de reflexão desde meados do século XVI ou, sem exagero, já a partir de 1560, época em que São Paulo foi oficialmente elevada para a categoria de Vila.

    E nem poderia deixar de ser diferente, pois essa nova condição alcançada pelo incipiente núcleo jesuítico pressupunha a existência de uma área urbana – em contraposição a uma também incipiente área rural –, que, naquele momento, começava a ser constituída na colina entre o Rio Tamanduateí e o Ribeirão Anhangabaú. Assim, a ocupação desse espaço implicava na construção de edifícios destinados ao culto religioso (igrejas), para a administração pública e, principalmente, para moradias. Entre os séculos XVI e XVII, mas adentrando mesmo no XVIII, lentamente o núcleo citadino foi tomando forma, e isso através de um moroso, mas contínuo processo de parcelamento do solo.

    Apesar de ser esta uma matéria já bem estudada por outros autores, cabe ressaltar que aquele primeiro momento da urbanização paulistana (a exemplo do que ocorreu com as demais cidades coloniais brasileiras) muito deveu a um sistema de distribuição de lotes então chamados de datas de terras. Tal sistema, por sua vez, pressupunha a configuração do Rocio, ou seja, de uma área constituída por terras públicas que, uma vez divididas, poderiam concedidas aos moradores pela Câmara Municipal (veja uma definição mais detalhada de Rocio no final deste artigo). Entretanto, é preciso lembrar que esse processo não ocorreu de modo tranqüilo, até porque São Paulo, e isso desde os seus primórdios, abrigava uma sociedade hierarquizada, dividida entre ricos e pobres, e, também, entre livres e escravos. As tensões, portanto, eram inerentes a esta conjuntura e se faziam representar também no campo da habitação, notadamente em relação às camadas menos favorecidas da população. Em outras palavras, sabemos que os membros mais influentes da sociedade não encontravam muitos obstáculos nas suas solicitações para a obtenção de áreas mais apropriadas para a construção de suas residências. Porém, para os desprovidos de fortuna, o acesso aos lotes configurava-se como algo bem mais complexo, seja em decorrência das regras estipuladas para a sua efetivação, seja pela existência de terrenos passíveis de doação, uma vez que, com o tempo, os mesmos somente poderiam ser encontrados em áreas cada vez mais periféricas e, por vezes, insalubres.

    Sendo este um tema que ainda guarda inúmeros aspectos não explorados em sua totalidade, sugerimos, para os pesquisadores interessados, uma consulta aos documentos custodiados pelo Arquivo Histórico Municipal, especialmente no conjunto manuscrito denominado Datas de Terras, este composto por 90 volumes que abrangem o período de 1740 a 1915. Como complemento, já se encontram publicadas as Cartas de Datas de Terras, coleção constituída por 20 volumes que abrangem o período de 1555 a 1863. Damos esta indicação tendo em vista o fato de que, geralmente, o exame dessa questão fica condicionado a meados do século XIX e primeiras décadas do XX. Entretanto, as investigações sobre as habitações populares podem (e devem) abarcar um período bem maior. Sob esse aspecto, basta lembrar que parte dos tradicionais bairros do Pari, Brás e mesmo de Perdizes, foram constituídos a partir do retalhamento de suas áreas pela municipalidade – em terrenos públicos, portanto – com a posterior concessão dos lotes via cartas de datas, não se tratando, portanto, de loteamentos privados (de chácaras, por exemplo) como estamos mais acostumados a ver na história de São Paulo.

    Por vezes, as concessão das datas de terras chegou a ser efetuada gratuitamente e, posteriormente, estabeleceu-se o pagamento de uma pequena taxa por parte do concessionário, bem como a inclusão de algumas obrigações a serem cumpridas. Em 1860, por exemplo, o imposto cobrado por cada data de terra concedida estava estipulado em 100 Réis; a partir da Postura de 31/05/1875, a taxa sofreu uma alteração, sendo então avaliada na razão de 20 Réis por m2, valor este que continuava em vigor no ano de 1881. Dentre as regras que deveriam ser cumpridas pelos concessionários, a primeira delas estipulava que o terreno deveria ser fechado (murado) no prazo de seis meses e, depois, que a casa fosse construída em até dois anos; o cumprimento dessas determinações efetivava o trato, pois caso contrário, os terrenos poderiam ser considerados devolutos, voltando a sua posse para o domínio público.

    Alguns bairros, como dissemos, foram, em parte, constituídos a partir desse sistema, a exemplo do Cambuci e Lavapés e cujos terrenos, na sua configuração original, foram destinados aos menos favorecidos. Nesses dois locais, os lotes concedidos pela Câmara Municipal paulistana já podiam ser contados na casa das dezenas pelos idos de 1859, motivo pelo qual os arruamentos estavam quase que atingindo as margens do rio Tamanduateí. Após receber algumas reclamações de outros moradores sobre esta invasão, os vereadores decidiram:
      demarcar novamente os terrenos dados a diversos [munícipes] no lugar denominado Lavapés, deixando do lado de cima a largura de vinte palmos, e do lado da margem do rio mais largura para servidão pública, e que esta nova demarcação seja feita na presença de alguns senhores Vereadores.
    De fato, entre os anos de 1859 e 1860, havia o risco de toda antiga Várzea do Carmo (aqui incluindo a área do atual Parque D. Pedro II) ser retalhada em lotes. Porém, uma condição física do local não permitiria que, naquele momento, isso acontecesse, pois a planície mais próxima da margem direita do rio sofria com constantes inundações. Entretanto, e pelos lados do Brás e do Pari existiam terrenos mais secos e passíveis de serem concedidos, como ocorreu no dia 3 de dezembro de 1859, ocasião em que 56 solicitações para datas foram aprovadas. Em questão de semanas, toda a região já estava dividida, uma vez que em janeiro de 1860 os lotes distribuídos já ultrapassavam o número de 181.

    Por certo que a concessão das datas de terras foi o principal instrumento utilizado pela municipalidade no sentido de aliviar a tensão provocada pela necessidade de moradias, notadamente em relação às habitações destinadas aos proletários. E, no caso dos bairros até aqui citados, esse processo fica bastante claro, posto que os mesmos, e desde os meados do século XIX, já se configuravam enquanto uma área para o abrigo dos extratos menos abonados da sociedade; característica esta que se tornaria efetiva décadas depois. De fato, tratava-se de uma ação (ou política pública) que, deliberadamente, incentivava o adensamento de uma região então desprezada pela elite, considerada insalubre, e isso por conta das características desses terrenos, sempre sujeitos a enchentes e alagamentos.

    Nesse processo, porém, dois outros pontos merecem destaque: o primeiro deles diz respeito ao fato de que esta política na área da habitação restringia-se apenas em disponibilizar os lotes, uma vez que a edificação das moradias corria por conta e risco do outorgado. O segundo ponto a ser sublinhado refere-se aos grupos considerados aptos para receber uma data. Sob esse aspecto, vale frisar que apenas os homens livres poderiam ser contemplados, condição esta que excluía os escravos. Entretanto, e detalhando um pouco mais, podemos verificar que não apenas os cativos estavam apartados, senão, também, uma grande parcela constituída por aqueles que nada possuíam. De fato, a obrigatoriedade de construir a residência num prazo relativamente curto, por si só já era um empecilho; mas, não apenas isso. A colaborar para com este impedimento estavam os critérios objetivos utilizados para identificar o “povo”.

    Vejamos um exemplo: no dia 19 de julho de 1860, o vereador Diogo de Mendonça subiu à tribuna da Câmara e pronunciou um longo discurso a respeito do aumento dos aluguéis na cidade que estavam “sobrecarregando os trabalhadores” e, na continuidade, discorreu sobre a necessidade de se aproveitarem os terrenos da então Várzea do Carmo para a construção de casas para “o povo, principalmente [para] as classes menos abastadas”. Mas, e quem faria parte dessas classes menos abastadas? O próprio vereador cuida de explicar: seriam eles os “empregados públicos, estudantes, artífices e comerciantes” que, conforme as palavras do edil compunham a imensa maioria da população. Aqui, e de maneira bastante explícita, nos é revelada a eliminação de parcelas significativas da população, justamente aquelas constituídas pelos mais pobres que, para o vereador, não eram motivo de preocupação e, por isso, não foram citados. Ora, e mesmo excluindo os escravos, por certo que a sociedade paulistana abrigava uma gama bem mais variada de trabalhadores, como os pescadores do Pari, as quitandeiras que vendiam seus produtos pelas ruas da cidade, as costureiras, as amas de leite, ou mesmo as lavadeiras – muitas delas libertas – que sobreviviam de seu ofício nas margens do Rio Tamanduateí, dentre muitos outros profissionais. Poucos deles, é preciso frisar, reuniriam todas as condições para se tornarem, efetivamente, concessionários de datas de terras, especialmente se levarmos em consideração as regras para o fechamento do terreno e a construção da moradia em prazos bastante abreviados. Para estes, restava apenas o recurso de alugar pequenos quartos, porões ou o de se aglomerarem em um tipo de habitação que rapidamente se espalharia pela cidade a partir daquela mesma década de 1860: os cortiços.

    Assim, apenas aqueles que possuíam um certo pecúlio – por mínimo que fosse – poderiam se candidatar sem riscos à concessão das datas. Este foi o caso de D. Joana Emília da Silva que, em julho de 1862, solicitou um terreno na Rua da Consolação, nas proximidades do cemitério:
      Pedido de terras de Joana Emilia da Silva: Ilmos. Srs. da Câmara Municipal – Diz Joana Emilia da Silva que existem terrenos devolutos na estrada dos Pinheiros defronte do sitio do Capitão Hermenegildo José dos Santos, e como a Suplicante pretende edificar e não tem terrenos para isso, requer a esta Câmara que lhe conceda uma carta de data nesses terrenos que ficam aquém do marco de meia légua e, por isso – Pede a Suplicante a esta respeitável Câmara que seja servida mandar passar a referida carta de data do terreno e assim espera.
    Além da indicação de que a postulante pretendia edificar, ou seja, ela provavelmente já possuía meios para isso, a análise da documentação nos revela uma surpresa, ou seja, a de que parte da própria Rua da Consolação, nas imediações do cemitério e de Higienópolis, foi ocupada graças à concessão de datas de terras e, especificamente no que diz respeito ao entorno do cemitério, estas já atingiam 29 no curto período entre finais de 1862 e início de 1863. Mas, as solicitações não cessaram, como podemos verificar através de um parecer emitido pelos vereadores em 1866:
      A Comissão Permanente, [vendo e examinando] as petições juntas dos cidadãos Dr. Joaquim Augusto de Camargo, Francisco José Dias, Francisco Ignácio de Freitas, Candido de Santiago Dias e Antonio Augusto da Fonseca, que requerem cada um uma data de terra adiante do Cemitério; dos cidadãos José Gomes de Faria e Joaquim Mathias da Silva Bueno, em frente do cemitério público [...] é de parecer que se lhes defira favoravelmente, boas que são as informações tomadas de suas situações.
    Através desta última citação podemos, ainda, reforçar o argumento de que as parcelas medianas da sociedade possuíam um acesso facilitado aos lotes, ou às datas de terras, para a construção de suas residências. A menção, no final do documento, de que a Comissão havia tomado boas informações a respeito dos requerentes é bastante significativa, bem como o título de Doutor aplicado a Joaquim Augusto de Camargo.

    De qualquer forma, e mesmo considerando que esta seria a camada mais beneficiada, não podemos deixar de considerar que o sistema então empregado em muito aliviava a pressão provocada pela falta de moradias, não sendo ainda ilícito considerar que muitas famílias realmente carentes dela se beneficiaram.

    Em agosto de 1737, por exemplo, os vereadores paulistanos recebiam uma petição assinada por Catarina Leme da Silva que desejava obter um terreno no caminho então conhecido como “de José Pinto, indo para a Luz, correndo pela aguada de Caetano Soares Viana, pelo ribeiro acima”. Tendo em vista essas indicações, o lote pretendido estava colocado entre o Pari e o bairro da Luz, nas imediações do Tamanduateí. Porém, o que mais importa na redação desse pedido foi a indicação de que a requerente era “uma mulher pobre, viúva, não tendo agasalho para si e nem para sua família”. Tendo em vista esta condição, ela solicitou ainda que o imposto (ou foro) a ser pago fosse calculado pela Câmara “atendendo a limitação de sua pobreza” e, mais ainda, que os vereadores lhe fizesse esta “mercê e esmola”, concedendo-lhe a área em questão. E, de fato, assim foi feito. A carta de data - neste caso chamada de Carta de aforamento – foi expedida “de hoje e para todo o sempre com a pensão de pagar 160 Réis por ano.” Nenhuma outra exigência foi feita, o que demonstra, por um lado, o aceite das argumentações apresentadas e, por outro, que o terreno solicitado não estava na ordem dos mais valorizados, posto que distantes do núcleo.

    Sem uma declaração explícita de pobreza, mas supondo tal condição, André da Mota de Carvalho afirmou, em dezembro de 1807, ser “morador desta cidade” e, nessa condição, desejava “fazer casa para acomodar-se com sua mulher e mais família”. Argumentou, ainda, que “como na rua que vai de Santa Ifigênia para a Sra. da Consolação se acham terras devolutas, e para o dito fim necessita de 20 braças de testada com fundos que couber [...] pede se dignem dar a mencionada porção de terras.” A decisão da Câmara, nesse caso, foi a seguinte:
      Concedemos ao suplicante 15 braças de terras de frente, com os fundos competentes, [e depois de] medidas e arruadas, se passe sua carta de data. São Paulo em Câmara, 12 de dezembro de 1807.
    Chama a nossa atenção o fato de que nenhum imposto foi cobrado e, também, a inexistência de quaisquer outras condições a serem cumpridas, como o prazo para fechamento do terreno, por exemplo. Por certo que aqui importava mais a ocupação dessa parte da cidade, então recém-aberta e arruada, além da colina e, por isso, chamada de Cidade Nova.

    Apresentado esses dois exemplos, dentre muitos outros, podemos agora contrapô-los a um terceiro, este datado de agosto de 1819. Naquela ocasião, a senhora Ana Escolástica solicitava a concessão de uma data “na estrada que vai desta cidade para a Freguesia de Santo Amaro”, nas vizinhanças do terreno pertencente a “Martinho Dias Vieira, com fundos até o córrego que divide o cercado denominado do Bexiga.” Apesar de sumárias, essas informações nos permitem concluir que o terreno pretendido estava localizado na Rua Santo Amaro, no atual Bairro da Bela Vista – ou do Bexiga, como aparece no documento. Mas, e quais seriam os indicativos que nos permitem qualificar D. Ana Escolástica como pobre? Inicialmente, verificamos a ausência de sobrenome. Em todo o documento ela aparece citada apenas como Maria Escolástica, designação esta somente aplicada aos escravos, libertos, ou mesmo aos membros das camadas mais pobres. De toda forma temos ainda na justificativa apresentada a menção de que a requerente necessitava do lote “para bem estabelecer-se com sua pobre família” e, por isso, desejava que a Câmara lhe concedesse a citada data de terra. Esta argumentação presente na petição, ou seja, a de que se tratava de uma pobre família, adiciona mais um dado para o esclarecimento da real condição da requerente que, por último, aparece sempre desacompanhada, sem marido. Provavelmente, D. Ana Escolástica era viúva, ou mesmo solteira, mas com filhos; uma situação bastante comum na São Paulo dos séculos XVIII e XIX.

    Nessas condições, a concessão do terreno foi autorizada “sem pensão de foro algum”, ou seja, sem a cobrança de qualquer taxa. Mas, em contra partida, os vereadores fizeram algumas exigências e, dentre elas, a de que a solicitante deveria...
      ... fechar o dito terreno em seis meses [sob] pena de se dar por devoluto a quem o pedir, e será mais obrigada a ter sua testada limpa e conservar a servidão pública desembaraçada, e tirar os formigueiros que houver dentro de seu terreno e em sua frente se houver, e quando os houver.
    Apesar de conter tais obrigações, verificamos que a determinação de construir a residência no prazo de dois anos aqui não estava colocada. De toda forma, esta seria uma imposição quase que invariável nas novas concessões que se firmaram nas décadas seguintes, fato este que, por si só, inviabilizaria muitas cartas de datas passadas daí por diante.

    Nesta última situação estava o peticionário Francisco Xavier de Brito que, em março de 1826, apresentou-se como “morador desta Imperial Cidade de Sam Paulo, na mesma casado e com família” e que...
      ... achando-se devoluto um terreno no tanque denominado Carvalho, da parte direita, e que arruado que seja terá oito braças de fundo, chegando aos valos do Coronel Joaquim José dos Santos, e de frente até entestar com a porteira do dito Coronel, e precisando o suplicante desse terreno por Carta de Data para nele edificar casa para sua habitação e de sua família, requer que lhe concedam o dito terreno...
    Através das indicações de localização, concluímos que este terreno situava-se na Cidade Nova, nas proximidades da antiga Chácara do Carvalho, hoje parte do bairro de Campos Elísios. Não por outro motivo, o inspetor daquela região era o Marechal José Arouche de Toledo Rendon que, inclusive, foi acionado pela Câmara Municipal para dar seu parecer a respeito desta petição que foi elaborada nos seguintes termos:
      Ilustríssimos Senhores do Nobre Senado: O arruamento no lugar indicado pelo suplicante está determinado pelo muro da Chácara que é hoje do Doutor Costa; fica portanto uma nesga estreita de terreno desde o córrego até a porteira do Coronel Santos. Cuido que este terreno não foi concedido a pessoa alguma, e se foi ele está e sempre esteve sem benefício algum. Em vista do que Vossas Senhorias deferiram com a Justiça do Costume. São Paulo em quatro de novembro de 1825. O Inspetor da Cidade Nova, José Arouche de Toledo Rendon.
    Cumpridas essas etapas, o arruador do Conselho, Manuel Alves dos Reis, demarcou o terreno, fincou as estacas nos lugares definidos e, por fim os vereadores concordaram em conceder a referida data de terra.

    Entretanto, e diante da obrigatoriedade de logo “beneficiar e aproveitar a terra pedida”, bem como a de “fechar o terreno dentro de seis meses” dentre outras determinações constantes no contrato – e tudo isso sob “pena de se haver por devoluto uma vez que não se cumpram as referidas condições”, o concessionário Francisco Xavier de Brito desistiu de ocupar o lote; ou, poderíamos mesmo supor, porque não teve condições de ali construir sua casa.

    De qualquer forma, tudo leva a crer que o peticionário não teve mesmo condições de fazer frente a essas obrigações, pois o terreno, anos depois, restava abandonado. Tendo em vista esta situação, uma observação foi anotada no mesmo documento que concedera a referida data de terra:
      Por deliberação da Câmara Municipal de 17 de março de 1832 se declara que esta Carta de Data deve ter caído em comisso, por não terem sido cumpridas as condições nela impostas e achar-se o terreno ainda desaproveitado.
    Com pequenas diferenças, o caso ocorrido com Francisco Xavier de Brito repetiu-se dezenas de vezes. Disso dão mostras as inúmeras petições dirigidas à municipalidade solicitando que os prazos para o fechamento do terreno e posterior edificação fossem estendidos, o que, por sua vez, nos sugere uma série de negociações nesse âmbito. As dificuldades para o acesso às moradias, portanto, somente aumentaram com o decorrer dos anos.

    Entretanto, o sistema de concessão de datas de terras não poderia ser mantido por muito tempo tendo em vista, principalmente, o esgotamento das terras públicas passíveis de serem concedidas. Por outro lado, e com o aumento das edificações, a cidade já atingia os limites das chácaras e sítios, todos eles de propriedade privada que, daí por diante seguiriam num contínuo processo de parcelamento.

    Com o avanço desse processo, ao qual devemos somar o vertiginoso crescimento da população na segunda metade dos oitocentos, decorre a crônica deficiência de moradias que se faria presente já a partir da década de 1860 e que continuaria pelos decênios seguintes. Como resultado, logo surgiriam novas propostas visando alterar a política até então adotada pela municipalidade nessa área que, como vimos, restringia-se a disponibilizar os terrenos para que os próprios concessionários construíssem suas moradias. Uma das primeiras indicações nesse sentido foi feita pelo vereador José Homem Guedes Portilho que, no dia 30 de março de 1875, pronunciou o seguinte discurso no plenário da Câmara:
      O incremento que dia a dia e de um modo extraordinário vai tomando a população da Capital tem produzido conseqüências que a todos deve impressionar. É geral o clamor contra o excessivo preço dos alugueis de casas, e esse mal que tão de perto afeta as classes mais desfavorecidas da fortuna tende a assumir maiores proporções com a corrente sempre crescente da imigração para esta cidade, não só de diversos pontos do Império como da Europa e, ultimamente, dos estados platinos. É geralmente reconhecido também que as novas edificações não acompanham a marcha ascendente da população e que pouco se pode esperar do esforço individual com o preço extraordinário a que tem chegado os terrenos e materiais, a exorbitância dos salários e a falta de operários. Nessa conjuntura a medida a tomar é, no nosso entender, promover-se a criação de Companhias que, ou edifiquem por si, ou adiantem capitais a juros módicos e prazos largos, a quem quiser edificar prédios na capital.
    Na continuidade, o vereador Portilho explica que em outras capitais tais empresas já se achavam constituídas, como a Cia. Predial da Corte, no Rio de Janeiro, a Associação Cooperativa Predial do Recife e a Companhia Edificadora de Porto Alegre; todas elas, no entender do vereador, prestavam bons serviços e poderiam servir de modelo para uma congênere em São Paulo. “Como impedir a aglomeração de muitos indivíduos na mesma habitação havendo falta de casas na cidade?” questionava o edil. E a resposta, no seu entender, seria a municipalidade incentivar a criação de tal empresa que, por sua vez, poderia receber investimentos privados. Pelo projeto, entretanto, o papel da Câmara não se restringiria a esta ação senão, também, na concessão de privilégios, na isenção de impostos e no direito da companhia em desapropriar “terrenos incultos e edifícios arruinados que seus donos não tratarem de reparar”.

    Apesar de ser aprovado por unanimidade, o projeto do vereador Portilho não produziu qualquer resultado.

    Posteriormente, novas deliberações cuidaram de estabelecer algumas regras para a construção de cortiços, habitações populares e Vilas Operárias. Dada essa possibilidade, logo em seguida seriam os próprios empresários que se apresentariam à Câmara munidos de diferentes propostas para a construção de tais vilas. Mas, poucas delas seriam realmente concretizadas, até porque a grande maioria dependia de benefícios que a municipalidade negava-se a conceder.

    A questão de fundo que permeava a construção de habitações populares possuía um viés ideológico, pois o liberalismo então vigente propugnava que o governo não deveria assumir essa tarefa, ou mesmo conceder benefícios, por considerar que se tratava de um campo exclusivo da esfera privada. Em 1893, por exemplo, o empresário Antônio Ferreira apresentou um plano para a construção de Vilas Operárias e solicitou uma ajuda da Câmara sob a forma de empréstimo em dinheiro. Analisada pela Comissão de Finanças, a resposta não poderia ter sido mais direta:
      A comissão de finanças, tendo examinado a proposta do Sr. Antonio Ferreira para construir uma vila operária, mediante empréstimo fornecido por esta Câmara, é de parecer que seja rejeitada, visto que não está nas atribuições desta Câmara fazer empréstimos dessa natureza.
    O então vereador Pedro Vicente completaria dizendo ainda que “o proponente deveria recorrer a um banco hipotecário ou de credito real para o empréstimo que pretende, e não a Câmara.”

    Apesar de se constituir num problema social e, portanto, passível de uma intervenção mais firme por parte do governo local, a carência de moradias para os menos afortunados permaneceu por anos no campo do discurso e das regulamentações, uma vez que as ações concretas dependiam única e exclusivamente da iniciativa privada.

    Percebendo esse problema, o então vereador Cesário Ramalho da Silva apresentou, em 1893, um projeto de lei que pretendia alterar por completo a costumeira ação da Câmara nesse campo, pois delegava à própria municipalidade tanto o planejamento quanto a construção de uma “vila suburbana composta por 200 casas de construção barata, porém higiênicas e sólidas”. Conforme o edil, as razões para tal mudança na política habitacional baseavam-se nos seguintes argumentos:
      É perfeitamente reconhecida a deficiência de habitações para as classes menos favorecidas da fortuna e para grande parte da população operária, já pelos preços exorbitantes a que atingiram os terrenos nesta cidade, além da enorme carestia e escassez de materiais para construções, já pela falta de capitais e portanto a elevação dos juros que inibe os empréstimos hipotecários como meio normal para aquisição de bens de raiz por aqueles que não os podem pagar integralmente, ainda que possuam uma parte da respectiva importância. Demais o grande acúmulo de população em uma área limitada da cidade, traz-nos toda a sorte de dificuldades, fomentando a construção dos denominados cortiços, facilitando a propagação de moléstias infecto contagiosas, as quais não obstante a benignidade do nosso clima, tem-se desenvolvido ultimamente de modo assustador. Assim pois, parece que a municipalidade da capital prestaria um relevante serviço, quer ao seu estado higiênico, quer aos seus habitantes, adotando uma medida eficaz, estabelecendo uma vila operária, adquirindo para isso um terreno suficiente e que preencha o fim a que é destinado, edifiquem algumas centenas de casas modestas e ponha-as a venda, devendo o pagamento ser feito em prestações semestrais, garantidos de modo completo os interesses da Câmara.
    Tal proposta, que décadas mais tarde seria colocada em prática pelo poder público, não recebeu naquele momento um parecer favorável. A comissão de higiene, por exemplo, e apesar de entender que a construção de tais habitações eram necessárias, pois o “ideal seria ver os proletários em casas confortáveis e salubres, fazendo desaparecer os cortiços que são sempre focos de pestilências”, recriminou a participação da Câmara, taxando-a de “muitíssimo inconveniente”, já que transformaria a municipalidade em empreiteira, algo impensável na ocasião.

    Argumento parecido foi utilizado pela comissão finanças, pois além de ponderar que o caso envolvia uma operação financeira difícil de ser realizada, os seus membros avaliaram que sim, “a Câmara deveria auxiliar e fomentar a criação de vilas operárias ou edificações de casas de aluguel barato para a população, mas nunca tomando para si o papel de diretora de empresa, nem entrando em tais negociações diretamente, porque o resultado de sua administração seria com certeza desastroso.”

    No dia 21 de novembro de 1893, o projeto de Cesário Ramalho da Silva foi rejeitado.

    Por conta desse posicionamento – e não obstante a realização de alguns empreendimentos pelas mãos de empresários – a questão das moradias populares em muito se agravaria pelos anos que se seguiram. Apesar de haver um consenso no campo político de que a situação merecia uma rápida solução, a divisão entre os grupos estava posta de maneira quase que irreconciliável. De um lado encontravam-se aqueles que propugnavam por uma participação mais ativa do governo e, de outro, os que ainda avaliavam ser este um tema que deveria ser tratado no âmbito restrito da iniciativa privada. Não por outro motivo, os cortiços e as sub-habitações espalhavam-se pela cidade, fato este que chamou a atenção do vereador Celso Garcia. Defensor de uma participação mais concreta e arrojada do governo nesse campo, Garcia tentava sensibilizar seus pares através de discursos como o que pronunciou no dia 29 de julho de 1905:
      Eu tenho notado que, em certos bairros da nossa capital, principalmente no Bom Retiro e no Braz, já há inumeráveis habitações comuns. Há nesses bairros muitas famílias compostas de muitas pessoas e morando em uma só casa, num só quarto até, às vezes num corredor úmido e infecto. Nessas habitações qual não há de ser o ar viciado? Em cada habitação é um acúmulo de pessoas, de móveis, de objetos, de utensílios de cozinha, um soalho que não se lava; nesses antros vive o velho, o moço e a criança; aí dão à luz as mulheres, cerram os olhos os moribundos; aí talvez em mais de um caso, quando muitas famílias morem em um só cômodo, dorme o impudico ao lado da donzela, o ébrio ao lado do velho e da criança.
    Não bastasse, Celso Garcia fez publicar na imprensa vários artigos – verdadeiras reportagens, poderíamos dizer – em que pintava um quadro humano verdadeiramente trágico que observara em tais moradias coletivas. Vejamos o trecho de uma delas, resultado de uma de suas visitas investigativas:
      Entrei descerimoniosamente pelo portão, agora aberto. Eis-me num pátio. Homens, mulheres, crianças, aqui e ali. Em compridos fios de arame, de um a outro lado, alvejam roupas estendidas ao sol. No porão, inúmeras portas. Pelas portas, algumas veladas de um reposteiro de fios grossos, entrevejo camas, roupas, cadeiras, pratos, sacos, caixões. Estava eu agora diante de um túnel no porão. Era baixo, frio e sombrio, construído de tijolo sem revestimento de reboco. Avancei, afoitamente, pela escuridão do túnel [não obstante a visita ter sido feita de dia]. Uma mulher, deitada no cimento, levantou-se; ao fundo, uma colcha colocada como reposteiro. Arredei-a: divisei, mais adiante, outras camas. Esse longo túnel, estreito, sem ar, sem luz, servia de habitação a mais de uma família! A colcha era, de certo, parede divisória. Se derrubassem essa casa, deixando apenas descobertas e intactas aquelas câmaras soturnas, ninguém suporia que aí vivessem homens. Voltei ao pátio. Estava agora entre um velho e uma velha, moradores do subterrâneo. Contaram-me quanto pagavam. Dez mil réis por mês de aluguel!

    Problema antigo, portanto, as habitações populares seriam motivo de reflexão por parte dos diversos governos que se seguiram e, poderíamos mesmo dizer, ainda permanecem nesse limiar do século XXI.



    ROCIO: de tradição portuguesa, e implantado no Brasil ainda no período da colônia, o rocio pode ser definido como uma grande área constituída por terrenos públicos e passíveis de serem doados, em lotes, para os moradores da cidade. Segundo o historiador Antônio Barreto do Amaral, São Paulo teve o seu rocio desde 1633, mas durante muitos anos, não se cumpriu o que a lei dispunha, dando margem a que fosse usurpada da municipalidade grande parte dos terrenos públicos que lhe pertenciam. No dia 25 de março de 1724, o então governador da Capitania de São Paulo, D. Rodrigo César de Meneses, regulamentou a questão através de lei e determinou que, novamente, se demarcasse o rocio da cidade, passando uma carta de sesmaria que ficou conhecida como Marco de Meia Légua. O rocio de São Paulo era então uma grande circunferência de uma légua de diâmetro, tendo por centro o antigo Largo da Sé. Essa área só foi medida aos 13/07/1769 por determinação do governador e capitão-general D. Luís Antônio de Sousa, cabendo a demarcação ao medidor do Conselho, Antônio da Silva Lopes. A partir de então, foram espalhados os 4 marcos: a Leste, para os lados da Penha, na Av. Celso Garcia; ao Norte, para os lados de Santana, na Av. Voluntários da Pátria; a Oeste, na direção de Pinheiros, na altura da Av. Paulista e, no quadrante Sul, na altura do bairro do Ipiranga. No interior dessa circunferência, todas as terras sem título legal de posse passaram a ser, imediatamente, consideradas públicas e de administração exclusiva da Câmara Municipal. A municipalidade, por sua vez, poderia, mediante a solicitação dos moradores, distribuí-las em pequenos lotes através da concessão das Datas de Terras.

    Luís Soares de Camargo


    Fontes primárias
    • Concessão de datas de Terras, Volumes 183, 184, 185, 225 e 226 (Manuscritos).

    • Cartas de Datas de Terras, Volumes IV, VIII, e XX.

    • Atas da Câmara de São Paulo, Volume 45, sessão do dia 3/11/1859.

    • Atas da Câmara de São Paulo, Volume 46, sessão do dia 19/07/1860.

    • Atas da Câmara de São Paulo, Volume 48, sessão dos dias 4 e 11/9/1862.

    • Atas da Câmara de São Paulo, Volume 52, sessão do dia 5/5/1866.

    • Atas da Câmara de São Paulo, Volume 61, sessão do dia 30/3/1875.

    • Atas da Câmara de São Paulo, Volume 79, sessão dos dias 18/3, 8/7 e 26/9/1893.

    • Anais da Câmara Municipal de São Paulo, 1905, sessão do dia 29/7/1905.

    • Anais da Câmara Municipal de São Paulo, 1908, sessão do dia 20/6/1908.




    Para citação adote:

    CAMARGO, Luís Soares de. Habitações populares em São Paulo: precedentes. INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL, 4 (19): jul/ago.2008 <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>


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