Casas e vilas operárias paulistanas
A situação da moradia da classe trabalhadora no final do Império
Antes de entrarmos propriamente no assunto do presente número do Informativo AHM será útil esclarecer alguns pontos acerca do
código de 1875 e do assim chamado código de 1886.
O código de 1875 e a recodificação de 1886
O primeiro código de posturas da cidade de São Paulo foi aprovado pela Assembléia Provincial em 14 de maio de 1873. Considerado muito rigoroso e injusto, sofreu enorme oposição por parte da população paulistana, até então desacostumada a respeitar as posturas municipais, por falta de uma eficiente fiscalização. Sensíveis à opinião pública, os vereadores paulistanos solicitaram a suspensão imediata do código, mas a presidência da Província informou que só tinha poder para aprovar provisoriamente as posturas municipais, e não para revogá-las. A solução era manter o código em vigor e substituí-lo o mais breve possível por outro, mais adequado. Foi então nomeada uma comissão revisora integrada pelo vereador Paulo Egídio de Oliveira Carvalho (autor do código de 1873), pelo conselheiro João Crispiniano Soares e pelo Dr. João Mendes de Almeida, responsáveis pela versão que substituiria em 31 de março de 1875 o código rejeitado.
Com o rápido desenvolvimento da capital paulista, ocorrido numa época de grande crescimento econômico propiciado pelo florescimento da atividade agroexportadora do momento, baseada no café, onze anos foram suficientes para fazer envelhecer, aos olhos dos edis paulistanos, a apresentação do código de 1875, tido agora como uma compilação de normas municipais de confusa e simplória redação. A responsabilidade de reorganizar as posturas vigentes foi então atribuída ao Dr. Estevão Augusto de Oliveira Junior, comissionado pela Câmara para esse trabalho. Convém chamar a atenção aqui para o fato de que o chamado código de 1886 não era na verdade um novo código, e sim mera recodificação do código de 1875, não tendo sido necessário cumprir alguns trâmites oficiais para a sua entrada em vigência: não foi solicitada a sua aprovação provisória à presidência da Província, nem sua aprovação definitiva foi submetida à Assembléia Provincial. Foi simplesmente aceito pela Câmara Municipal em 6 de outubro de 1886 e entrou em vigor imediatamente. A nova redação dada ao código em vigor desde 1875, segundo a Edilidade, tinha a virtude de tornar mais claras as posturas, e o todo mais harmônico, ficando separada do resto a parte regulamentar.
Nessa recodificação, ou rearranjo, foram incorporadas, logicamente, posturas aprovadas depois da entrada em vigência do código de 1875. O art. 11, por exemplo, transcrevia um padrão edilício só recentemente adotado pela Câmara, cuja confecção estava prevista no art. 8o do código de 1875. Outra importante inclusão na reorganização das posturas paulistanas datada de 1886 foi a padronização dos cortiços.
Os cortiços paulistanos no tempo do Império
Desde alguns anos vinham essas moradias insalubres infestando a Capital. Constituíam a face negra da expansão econômica e física da cidade, sujeita a um processo de notável incremento populacional, em função, como dissemos, do sucesso apresentado pela economia agroexportadora e pela política imigrantista adotada pelo governo provincial. De fato, a falta de moradia já era sentida desde os últimos anos de 1850, no tempo em que ainda se sonhava com a construção da estrada de ferro inglesa, e só se agravou com o passar das décadas. Os aluguéis eram exorbitantes e as construções oferecidas, velhas e malsãs. Nos primórdios da industrialização paulistana, ao proletariado nascente não restava senão amontoar-se em pardieiros ou em sórdidos cubículos erguidos pelos especuladores. O lucro auferido pelos proprietários de cortiços era tão grande que a Câmara passou a cobrar um pesado imposto sobre este tipo de habitação subnormal desde ao menos 1877. Em 1881, finalmente, os vereadores conseguiram formular uma clara definição de cortiço: quartos encarreirados cobertos de meia-água, com pé-direito variando de 10 a 12 palmos (2.20 m a 2.64 m) e cujas frentes não davam para a via pública (Atas da Câmara Municipal de São Paulo, 1881. p.77).
Os problemas sociais e de higiene pública decorrentes desse gênero de moradia coletiva obrigaram as autoridades a se preocupar mais seriamente com o assunto. Primeiramente, ainda na década de 1870, cogitou-se em criar companhias prediais que construíssem casas de aluguel adequadas às residências das camadas desfavorecidas, mas estas iniciativas não tiveram o menor êxito.
Por fim, em uma das sessões camarárias de 1881, o vereador Major Domingos Sertório (c.1824-1910) propôs normas para a regulamentação de cortiços, que foram imediatamente aprovadas pela corporação municipal. Houve, no entanto, grande demora para serem apreciadas pelo Legislativo Provincial, o que levou a Municipalidade, em 1885, a representar à Assembléia a urgência da aprovação definitiva dos artigos de posturas datados de 1881.
Uma vez promulgada a lei n.13, de 27 março de 1886, seriam suas determinações incorporadas a seguir ao código de 1875, que estava em reestruturação (art. 20 da recodificação de 1886). Os cortiços deveriam ser construídos em terrenos com mais de 15 m de largura, observar um espaço mínimo de cinco metros entre cada linha de cortiços, e, em caso de ser constituída cada unidade por único cômodo, este deveria ter pelo menos cinco metros quadrados de área [sic]. A altura das construções do solo à cimalha deveria ser de 4,50 m e o piso elevado de 0,20 m do solo. As janelas deveriam ter ao menos de 0,90 m a um metro de largura e o duplo correspondente de altura. Como inovação, inexistente nos artigos aprovados pelos vereadores em 1881, mas introduzida cinco anos depois pela Assembléia Provincial (lei n.13), havia o parágrafo 4o (do art. 20 da recodificação de 1886), exigindo portas e janelas em todas as peças de cada unidade, determinação que, ao dispor sobre a parte interna das moradias para as camadas desfavorecidas, surpreendentemente extrapolava os limites estabelecidos pelo art. 71 da lei de 27 de outubro de 1828 (Regimento das Câmaras Municipais), que reservava às edilidades a atribuição de velar apenas pela “elegancia e regularidade externa dos edificios”.
A exigência de portas e janelas em todos os cômodos bem pode ter sido copiada do Projecto de novos alojamentos para a classe pobre da
cidade do Rio de Janeiro, apresentado ao Governo Imperial pela extincta Junta Central de Hygiene, cujo teor foi publicado no número da Revista dos Constructores datado de 7 de março de 1886. As exigências mínimas para as construções proletárias constantes do projeto de lei carioca eram muito ambiciosas e no artigo 5o vinham expressas as mesmas disposições que extrapolavam a lei de 27 de outubro de 1828:
5.º Serão construídas [as casas] de maneira que todos os aposentos, sem excepção, tenham janellas [...]
Observa-se por aí a limitação das atribuições das Câmaras Municipais no que se refere à regulamentação das construções urbanas durante o Império. Limitação contra a qual já se insurgiam os sanitaristas da Corte, preocupados em ditar regras higiênicas para a parte interna das edificações, desde os anos de 1870 pelo menos. O Regimento das Câmaras vedava ao poder público aquilo que era considerado uma abusiva ingerência na esfera do privado, numa atitude de proteção à liberdade individual e à inviolabilidade da propriedade particular. Contudo, essa prática liberal vinha sendo superada na Europa por novas formas de intervenção pública, desde os primeiros assolamentos das grandes epidemias, ainda na primeira metade dos Oitocentos.
Origem das vilas operárias na cidade de São Paulo
Como afirmamos antes, a Câmara paulistana aceitou o padrão de edificações elaborado pelo engenheiro municipal, e o fez em 11 de agosto de 1886, mandando publicá-lo conjuntamente com o ofício que encaminhou a proposta, datado de 26 de julho daquele ano. No Correio Paulistano de 18 do mesmo mês foi o padrão divulgado na íntegra, desacompanhado porém do texto do ofício correspondente. Esse padrão, repetimos, veio a constituir o art. 11 da recodificação de 1886. Na mesma ocasião em que o aceitou, a Edilidade encarregou o seu engenheiro, Luís César do Amaral Gama, de executar mais um outro padrão, desta feita
para a construcção de casas, para trabalhadores a imitação das conhecidas no Rio de Janeiro com o nome de Villas, isto é, com entrada para um pateo commum, porém em melhores proporções que as dos actuaes cortiços.
A passagem acima transcrita é de grande relevância documental, pois atesta a origem das vilas operárias e vilas de classe média que no século seguinte seriam construídas na cidade de São Paulo. Por ela ficamos sabendo que a denominação dessa tipologia residencial – vila – era de procedência carioca e que em sua disposição espacial a vila não passava de uma versão melhorada do cortiço.
Este, por sua vez, chamado às vezes no Rio de Janeiro pelo nome de estalagem descendia das velhas albergarias coloniais e imperiais, como já havia sido notado há muito tempo pelo Prof. Nestor Goulart Reis Filho ( Quadro da arquitetura no Brasil, 1969) . Situada fora ou na entrada das povoações, a estalagem era constituída por fileiras de cubículos dando para um pátio comum. Nesses cubículos, providos de porta, mas geralmente sem janelas, ficavam hospedados os tropeiros e os viajantes, num tempo em que não existiam hotéis. Em São Paulo, havia, no início do século XIX, uma albergaria desse tipo, instalada num ponto entre a saída do caminho de Sorocaba (Piques) e o caminho de Santo Amaro (atual rua desse nome), pertencente a um homem cognominado Bexiga. Aí pousou o famoso botânico francês Saint-Hilaire em 1819.
Segundo Francisco de Assis Vieira Bueno (1816-1908), em seu A cidade de São Paulo, havia outra no Lavapés, nas estrada que ia para Santos. Maria Pais de Barros (1851-1953), em No tempo de dantes (1946), também relata que, em sua infância (c. 1860), quando acompanhava regularmente a família às fazendas paternas situadas no interior da Província, pernoitava numa estalagem semelhante à do Bexiga, localizada nas proximidades de Jundiaí, pertencente a um português cujo apelido era Barão da Ponte. Tanto o sórdido cortiço, como as primeiras vilas operárias (que nada mais eram do que cortiços melhorados) seguiam essa tipologia, alastrando-se pelos fundos dos quintais, ou seja, pelo interior desocupado das quadras.
No primeiro terço do século XX, as vilas de classe média não fariam diferente. Uma passagem comum permitia o acesso da rua ao pátio interno, rodeado de pequenas habitações unifamiliares, erguidas evidentemente com padrão melhor que o dos cubículos dos cortiços ou que o das moradias operárias de fins do XIX. Dispondo a área comum de mais espaço, e às vezes de arborização, as casas das vilas de classe média seriam decoradas de acordo com fantasiosos estilos arquitetônicos, inspiradas no Pitoresco e no Ecletismo para mais atrair a clientela. Um exemplo desse tipo é sem dúvida a Vila Marquesa de Itu (1914-1919), na Luz, de autoria do engenheiro Eduardo Aguiar de Andrada, ou o extravagante Parque Residencial Savóia (1939), erguido pela construtora do engenheiro Arnaldo Maia Lelo, nos Campos Elísios.
O padrão das vilas operárias de 1889
O novo padrão para a habitação popular, encomendado pela Câmara paulistana em 1886, veio a constituir um capítulo de um muito bem detalhado padrão municipal, a respeito do qual não poucos equívocos têm sido cometidos por pesquisadores recentes que se têm debruçado sobre a regulamentação edilícia paulistana do período anterior à República. Com efeito, a origem do engano é muito antiga e, estranhamente, provém de fontes oficiais. Como até hoje há quem cometa equívocos a respeito desse padrão, consideramos não ser ocioso repetir aqui a cronologia exposta em nossa tese de doutorado.
O novo padrão municipal, elaborado a partir da ordem emitida pela Câmara em 11 de agosto de 1886, era de autoria do engenheiro Amaral Gama, e trazia a data de 18 de outubro de 1886, posterior, portanto, à reorganização das posturas municipais, datadas do dia de sua aceitação pela corporação municipal, ou seja, de 6 de outubro daquele ano. Achava-se em tramitação pelas repartições provinciais em julho do ano seguinte e obteve despacho presidencial favorável em abril de 1888. Permaneceu engavetado por vários meses, até ser finalmente mandado à publicação por ordem do presidente da Câmara em 17 de janeiro de 1889.
O edital, que pôde ser lido pela população da Capital no Correio Paulistano do dia subseqüente, iniciava-se da seguinte forma:
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