Eusébio Stevaux, arquiteto
Alguns exemplares da Arquitetura Oficial paulistana, muito significativos e datáveis do último quartel do século XIX, merecem ter sua autoria imputada a Eusébio Stevaux. De fato, atribuímos a ele todas as intervenções em edifícios públicos na cidade de São Paulo, ocorridas entre os anos de 1877 e 1885. É impossível não reparar nas semelhanças de determinadas soluções arquitetônicas existentes no Paço da Assembleia Provincial e Câmara Municipal (1877/1879), no Palácio do Governo (reconstruído entre 1881 e 1886) e na Faculdade de Direito (1884-1885). Todas essas construções ostentavam uma linguagem formal francamente eclética, baseada no repertório de raiz neo-renascentista, e são esteticamente, do ponto de vista de hoje, é forçoso confessá-lo, pouco atraentes.
Na sede da Assembleia Provincial, comprovadamente de Stevaux, segundo relatórios presidenciais, observamos uma imitação das
mairies parisienses do Segundo Império Francês e do início da Terceira República. Uma cúpula central, de formato tronco piramidal,
recoberta com telhas de ardósia sem dúvida importadas, conflitava com os rígidos frontões triangulares que arrematavam os simulados
pavilhões terminais (os tímpanos desses frontões achavam-se decorados com arabescos de inspiração rococó). Esculturas alegóricas
de tamanho desproporcional, representando, conforme testemunhos contemporâneos, a Agricultura, a Ordem, a Lei e a Justiça, assombravam
as platibandas do edifício. Decorada certamente com elementos de pedra artificial (ornatos pré-moldados de cimento), cuja produção
pioneira se dava na Olaria do Bom Retiro desde 1875, conforme anunciado em jornal da época, a sede da Assembleia Provincial e
Câmara Municipal não causou aversão nos contemporâneos. Muito pelo contrário, parece ter sido entusiasticamente recebida como a
primeira manifestação de legítima arquitetura em terras paulistanas. Junius, pseudônimo de Firmo de Albuquerque Diniz (1828-?),
de gosto arquitetônico apurado na Corte, onde já triunfava o Ecletismo, alonga-se em considerações sobre este prédio no seu
livrinho
Notas de viagem (1882), atribuindo erradamente a autoria do projeto ao engenheiro E. F.(Elias Fausto Pacheco Jordão), então Diretor de Obras Públicas, superior hierárquico de Eusébio Stevaux.
As circunstâncias que envolveram a reconstrução do Palácio da Presidência da Província também nos induzem a atribuir sua
idealização a Stevaux (fig. 5). Quando o presidente Florêncio de Abreu (1881) resolveu reconstruir
o velho prédio jesuítico, a Tesouraria de Fazenda, repartição do governo central, aí alojada,
deveria passar para uma nova sede a ser erigida no Largo de Palácio (atual Pátio do Colégio).
O antigo convento, de propriedade nacional, recebeu então uma verba de pequena monta do governo imperial para a sua reconstrução;
os cofres provinciais também ajudaram financeiramente. As obras, no entanto, logo foram paralisadas por falta de recursos.
Quanto à nova sede da Tesouraria, também ela recebeu módica quantia, mas o projeto então delineado para essa repartição logo se tornou
alvo de críticas. Em 1882, o engenheiro de origem francesa queixava-se em relatório das modificações indevidamente introduzidas nesta
última construção. Por essa época, conseguiu ser transferido para a Capital, assumindo a responsabilidade pelos trabalhos de reconstrução
do Palácio do Governo, que progredia lentamente. Vemos, assim, que ambas as construções tinham uma origem comum: o prédio da Tesouraria de
Fazenda havia sido projetado e sua construção iniciada, em razão da reconstrução do Palácio da Presidência. Ponto essencial, pois se
desconhecemos de quem é a autoria do Palácio da Presidência, sabemos perfeitamente bem o nome do autor da primeira versão da
Tesouraria de Fazenda: Eusébio Stevaux, segundo o auto de colocação da primeira pedra do edifício, transcrita por José Jacinto Ribeiro
em sua
Chronologia Paulista.
Fig. 5- Palácio da Presidência. Antigo convento jesuítico,
reformado entre 1881 e 1886. Obra atribuída a Eusébio Stevaux.
Foto de Kowalsky & Hensler, por volta de 1892.
KOSSOY, Boris. Album de photographias do Estado de São Paulo.
São Paulo: CBPO/Kosmos, 1984.
Portanto, nada mais plausível do que atribuir a autoria do novo palácio do governo a Stevaux, o que explicaria
as coincidências formais existentes entre esta edificação e a sede da Assembleia Provincial. No palácio, estava
presente o mesmo sincretismo ingênuo que justapunha um frontão de secura neoclássica, sobrepujando a porta de ingresso,
a elementos em forma de tabernáculo, ou edícula, de gosto neo- renascentista, que coroam os pavilhões das extremidades.
Quanto ao pórtico suportado por quatro colunas, que se vê em imagens de datas posteriores, deve ser o resultado de uma modificação
feita pelo próprio autor no projeto original, pois fotografia atribuída a Militão Augusto de Azevedo datada por volta de
1884 ou início do ano seguinte, hoje pertencente ao acervo do Museu Paulista, mostra-nos o palácio reconstruído sem
a presença desse elemento arquitetônico supletivo. O resultado era tão sem graça, que provavelmente foi o próprio Stevaux
quem convenceu o vice-presidente em exercício José Luís Almeida Couto (9 de agosto de 1884 a 19 de maio de 1885) de que o
acréscimo de um pórtico seria essencial para reequilibrar o frontispício (fig. 6).
Fig. 6- Fotografia do Palácio da Presidência em sua conformação primitiva, sem o pórtico de quatro colunas.
Imagem de autoria de Militão Augusto de Azevedo, tomada por volta de 1884 ou 85, antes dos trabalhos de complementação da fachada,
encomendados verbalmente pelo vice-presidente Almeida Couto.
Acervo do Museu Paulista da USP
Fotográfos: José Rosael / Hélio Nobre)
Aliás, é no estado de completude que surpreendemos o projeto do Palácio da Presidência em litogravura de Jules Martin (1832-1906) (fig.7).
Além do pórtico frontal, observamos no alto as composições que deveriam emoldurar os mostradores de relógio, ao lado de outros detalhes
que não se executaram, tais como urnas e estátuas decorativas sobre as platibandas (figs. 8 e 9).
Fig.7- Projeto do novo Palácio da Presidência da
Província de São Paulo, com o acréscimo do pórtico tetrastilo.
Ao alto do pórtico estava prevista a seguinte inscrição, não executada:
Hoc opus Senator Florencio C. de Abreu e S.ª erexit.
Note-se ainda que nas platibandas se viam urnas, estátuas decorativas e mostradores de relógio, que também não foram adotados.
Litogravura de Jules Martin, datada provavelmente de 1885.
A inscrição referente ao senador Florêncio Carlos de Abreu e Silva era uma homenagem póstuma do governo provincial paulista,
já que morreu em fins de 1881, logo após ter entregue o cargo de presidente da Província de São Paulo.
TAUNAY, Afonso de E. Velho São Paulo.
São Paulo: Melhoramentos, 1953. v.1.
Fig.8- Gravura mostrando o Palácio da Presidência,
de Eusébio Stevaux, ao lado da velha igreja do Colégio,
arruinada em 1896 e substituída pelo torreão contruído
no ano seguinte pelo arquiteto Ramos de Azevedo (1851-1928).
Autor não identificado.
Almanach do Estado de São Paulo para 1890.
São Paulo: Jorge Seckler, s.d.
Fig.9- Vista do Palácio do Governo do Estado de São Paulo,
no início do período republicano, após a demolição da igreja
jesuítica e a construção do torreão de autoria do arquiteto Ramos de Azevedo.
Foto de Gaensly & Lindemann.
KOSSOY, Boris. Album de photographias do Estado de São Paulo.
São Paulo: CBPO/Kosmos, 1984.
A composição em forma de edícula era, ao que parece, a marca registrada de Stevaux. Surge primeiramente no coroamento do corpo central
da Assembleia, a emoldurar um óculo que só muito mais tarde seria ocupado pelos mecanismos de um relógio. A composição aqui é
rematada por um frontão curvo, de nítida influencia da Renascença francesa. Já no Palácio da Presidência e na fachada reformada
da Faculdade de Direito, aparece uma variação desse tema. Nos dois últimos edifícios, o pequeno frontão curvo é substituído por
uma cornija que acompanha a forma circular do mostrador. Nos três casos, porém, os pares de pilastras que emolduram o vão central
são ladeados de volutas e os conjuntos eriçados de pináculos. Esse tipo de composição será recorrente nas obras do Ecletismo, mas na
São Paulo dos anos de 1880 constituem exemplares únicos.
Supomos que o início precipitado da sede da Tesouraria de Fazenda tenha sido o motivo que levou Stevaux a ser transferido do 5° para o 1°
distrito, pois, nesta última posição poderia encarregar-se diretamente da execução de ambos os projetos: o palácio do governo e a
Tesouraria. A partir de então, princípio de 1882, ao que parece, até 1885 ficaria responsável por todas as construções e reformas de
edifícios provinciais na Capital. Diante disso, nada mais lógico do que ver na reforma do velho convento franciscano, onde se alojava a
Faculdade de Direito, o dedo, mais uma vez, de Eusébio Stevaux (fig. 10 a 12).
Fig. 10- Academia de Direito, antigo convento de São Francisco, reformado entre 1884 e 1885, obra por nós atribuída a Eusébio Stevaux.
Foto de Gaensly & Lindermann, por volta de 1892.
KOSSOY, Boris. Album de photographias do Estado de São Paulo.
São Paulo: CBPO/Kosmos, 1984.
Figs. 11 e 12- Porta de ingresso da Faculdade de Direito, ladeada por um par de colunas jônicas, feitas de alvenaria de tijolos supomos.
Na ampliação da imagem é possível observar detalhes da decoração interna do edifício supostamente reformado por Stevaux:
colunas dóricas de alvenaria e marmorizados nas paredes do vestíbulo.
Fotógrafo não identificado, início do século XX.
São Paulo antigo e São Paulo moderno, 1554-1904.
São Paulo: Vanorden, [1905].
Outra característica do engenheiro francês presente nas obras governamentais executadas na Capital, era o emprego de mármores
originários de sua fazenda do Pantojo. Não só partes externas do Palácio da Presidência deveriam ter sido executadas em mármore verde
(as colunas do pórtico frontal), como também a escadaria e o vestíbulo desse edifício eram valorizados com material do Pantojo
(mármore branco). Sabe-se ainda pela documentação oficial que havia trabalhos de mármore nas obras da Tesouraria de Fazenda.
Encontraremos mais uma obra de Stevaux no fecho do Jardim Público, construído entre 1881 e 1883. Segundo a descrição do projeto
original, tratava-se de um gradil de 166 m de comprimento, dividido em lanços por pilares de mármore verde do Pantojo. O acesso
seria feito por meio de um suntuoso portão flanqueado por quatro grandes pilares de mármore verde e preto. Os elementos metálicos
seriam produzidos na Fabrica de Ferro de Ipanema, ao passo que os mármores, tanto o verde quanto o preto, seriam, logicamente,
fornecidos por Stevaux.
Após seu desligamento do serviço público, procurou receber na condição de fornecedor, em fins de 1885, o pagamento referente ao
serviço do qual fora verbalmente encarregado pelo vice-presidente em exercício José Luís Almeida Couto. Esse pedido
certamente estava relacionado com a construção do pórtico tetrastilo. Para a execução desse elemento arquitetônico, Stevaux
forneceu peças de mármore lavrado correspondentes às peças principais do pórtico, em mármore verde (entre elas, os fustes
das quatro colunas), e às correspondentes à escada externa do palácio do governo, aos capitéis jônicos, à arquitrave e à soleira
(todas em mármore branco, sem dúvida). Segundo o engenheiro Freire (Carlos Americano Freire, que substituiu Stevaux na direção
de obras), o executado correspondia amplamente à despesa feita, porém, não deixava de alertar o diretor geral: embora as peças já se
achassem depositadas no barracão fronteiro ao palácio, não constava da repartição nenhuma autorização para esses serviços, cuja
despesa, aliás, pertencia ao governo geral e não ao provincial. É possível que Stevaux jamais tenha sido pago integralmente por
esses serviços, pois, segundo Henrique Raffard (1851-?) em seu livro
Alguns dias na Pauliceia (1890), os fustes das colunas
que deveriam ser de mármore verde, por medida de economia, acabaram sendo feitos de tijolos. E o mesmo deve ter ocorrido com os pilares
do portão do Jardim Público, conforme é possível constatar por meio de certa fotografia antiga (a menos que a foto que conhecemos
não corresponda ao portão aqui enfocado, mas a outro, de data posterior) (Fig.13).
Fig.13- Aspecto do antigo portão do Jardim da Luz,
voltado para o Largo do Jardim.
Segundo Alfredo Moreira Pinto
(em
A cidade de São Paulo em 1900), no alto dele havia a inscrição:
Presidência do senador Florencio de Abreu. 1881.
Foto de autor não identificado.
São Paulo antigo e São Paulo moderno, 1554- 1904.
São Paulo: Vanorden, [1905].
O Palácio da Presidência foi concluído em 1886, enquanto as obras da Tesouraria, abandonadas, se arruinavam.
João Alfredo Correia de Oliveira, o novo presidente da Província (19 de outubro de 1885 a 26 de abril de 1886), teve a ideia
de completar a reurbanização do Largo de Palácio, ou do Colégio, com uma fonte monumental, que do ponto de vista estilístico,
combinava perfeitamente bem com a nova sede do governo provincial.
A fonte, embora modesta, estava calcada em exemplos franceses do Segundo Império. Fornecido um simples
croquis por algum
engenheiro da Província – talvez o próprio Freire, efêmero sucessor de Stevaux –, o projeto foi depois detalhado por Serafim Corso,
artesão italiano especialista em grutas e peças decorativas para jardins, conforme nos informa documentação remanescente, depositada
no Arquivo Público do Estado (Fig.14).
Fig.14- Em primeiro plano, a fonte do Largo de Palácio.
Obra do mestre italiano Serafim Corso, especialista em cascatas e ornatos de jardins, datada de 1886, executada com base
num
croquis fornecido por um engenheiro provincial, talvez Carlos Americano Freire, efêmero sucessor de Stevaux na direção
das obras provinciais em andamento. Na foto, vemo-la recém-construída, mesclando caracteristicas da arquitetura neo-renascentista
com o paisagismo de índole pitoresca. A construção decorativa veio coroar as obras de reconstrução do velho convento jesuítico,
posicionando-se num ângulo desgracioso do jardim público então criado.
Foto de Militão Augusto de Azevedo, datada de 1887.
AZEVEDO, Militão Augusto de.
Album comparativo da cidade de São Paulo, 1862-1887.
São Paulo: DPH (SMC), 1981.
A importância profissional de Eusébio Stevaux
Numa época pioneira da engenharia, em que tantos campos se abriam aos profissionais e em que estes eram solicitados a atuar em cada
um desses campos com a mesma desenvoltura, a construção civil e a arquitetura constituíam áreas um tanto desprezadas, tradicionalmente
na mão dos mestres de obras. A engenharia hidráulica, a naval, a ferroviária, a sanitária, a industrial atraiam os jovens profissionais,
que preferiam destacar-se nos âmbitos que contribuíam para o progresso material da sociedade de então a dedicarem-se à concepção de
edifícios que, no Brasil, nada de extraordinário oferecia. Além disso, era necessário o conhecimento de composição arquitetônica e
essa matéria certamente não era dada de maneira nem muito profunda, nem talvez muito estimulante nas escolas de engenharia.
Stevaux engajou-se no serviço da Diretoria Geral de Obras Públicas num momento em que se necessitava de engenheiros hábeis no trato
da Arquitetura, que fornecessem projetos com um padrão mínimo de qualidade para os novos edifícios do governo. Embora não
fosse particularmente dotado para essa arte, sua competência e integridade profissional foi sem dúvida reconhecida, sendo por isso
merecidamente aproveitado na renovação dos desgastados prédios oficiais. O mérito de ter sido convocado em Guaratinguetá pertence,
ao que parece, ao Diretor de Obras Públicas Elias Fausto Pacheco Jordão (1849-1901). Engenheiro de origem ituana, formado e doutorado
em Cornell (EUA), entre 1870 e 1874, Pacheco Jordão fora nomeado para o cargo pelo presidente Sebastião Pereira (9 de julho de 1875 a 18
de janeiro de 1878), que, sucedendo a João Teodoro (21 de dezembro de 1872 a 30 de maio de 1875), decidira reorganizar esse ramo
do serviço público.
Pertence Stevaux, portanto, a uma fase que podemos chamar de pré-azevediana, na qual, pela primeira vez, um engenheiro, em São Paulo,
conquista o reconhecimento da máquina administrativa governamental, principalmente por seu desempenho como arquiteto.
Embora as idealizações de Stevaux nos pareçam hoje ingênuas e muito pouco inspiradas, o número de intervenções de sua autoria
(a Assembleia Provincial, o novo palácio do governo, o novo portão do Jardim Público, a reforma da Faculdade de Direito e a
obra inacabada da Tesouraria de Fazenda) – documentadas em alguns casos, atribuídas em outros por meio de provas
circunstanciais – só confirma a admiração dos contemporâneos por seus trabalhos.
O injusto esquecimento em que caiu seu nome
Após a retirada de Stevaux do serviço público, virá Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1928) reiniciar em 1886
a construção de uma obra sua naquela altura paralisada e arruinada, a Tesouraria de Fazenda, atualmente transformada em
Secretaria da Justiça, passando desde então a conceber e construir praticamente todos os edifícios públicos oficiais e
a exercer a liderança absoluta sobre a Arquitetura e construção civil paulista até sua morte, ocorrida em 1928.
É claro que para o público contemporâneo ficou evidente o salto de qualidade representado pelas obras de Ramos de Azevedo e
seu escritório. E essa constatação conduziu ao rápido arrefecimento do entusiasmo com que eram recebidas as construções
concebidas por Stevaux.
Júlio Ribeiro em seu romance
A Carne (1890) salienta a impressão positiva que o edifício da Tesouraria de Fazenda, de Ramos
de Azevedo, provocou na opinião pública da época, ao mesmo tempo em que registra a má vontade com que começavam a ser vistas
as obras antes admiradas de Stevaux. A personagem Lenita, tão esclarecida quanto insensível aos sentimentos humanos,
declarava provocativamente em carta a Barbosa, seu amante:
Gosto imenso da Tesouraria da Fazenda que está construindo Ramos de Azevedo: é um edifício que honra S. Paulo pela severidade e
elegância de estilo, pela robustez que ostenta, desde os profundíssimos alicerces até o levantado coruchéu. Aquela mole enorme
forma um todo compacto, homogêneo, sem o mínimo defeito, sem uma trinca sequer de tassement. Quem viu o que ali estava... cruzes!!!
Para se avaliar o que era basta que se veja o atual Palácio do Governo, da mesma procedência. Os manes do Sr. Florêncio de Abreu podem
limpar as mãos à parede dos Campos Elísios, se é que os Campos Elísios têm parede. Desmanchar a velha, a maciça, a histórica,
a legendária construção dos jesuítas, para estender por ali fora aquele pardieiro medonho! [grifo nosso]
Essa passagem da carta de Lenita a Barbosa comprova que o edifício inacabado da Tesouraria, anterior ao projeto de Ramos de Azevedo
de 1886, e o palácio do governo, iniciado no tempo de Florêncio de Abreu, tinham a “mesma procedência”, isto é,
eram ambos provenientes do mesmo autor, Eusébio Stevaux. A má vontade de Ribeiro com os projetos desse engenheiro francês era
acintosa, e logo adiante faz Lenita dizer, criticando a reforma da Faculdade ou Academia de Direito:
A academia foi reformada.
Talvez eu não tenha razão; mas o caso é que eu a preferia exteriormente como ela era outrora. Tinha pelo menos o mérito de representar
o gosto arquitetônico dos religiosos que dirigiram a colonização do Brasil [sic]. Hoje não representa coisa nenhuma tem aparência
limpa mas desgraciosa e até caturra. [grifo nosso]
Embora não se tenha encontrado documentação oficial alguma que comprove a atribuição de autoria feita a Stevaux em relação aos edifícios oficiais acima citados, Palácio do Governo e Faculdade de Direito, não se deve desprezar a passagem de seu necrológio publicado no Diário Popular do dia 22 de fevereiro de 1904, que confirma o que até agora não passava de mera conjectura, fundamentada em provas circunstanciais. Diz-se aí a certa altura:
Nesse cargo [de superintendente de Obras Públicas, erroneamente atribuído a Stevaux] executou ainda diversas e importantes obras
como sejam o actual Palacio do Governo, o edifico da Assemblea, o antigo paço municipal [de fato, estes dois últimos eram
um único edifício onde funcionou a Câmara dos Vereadores até os anos de 1890] e a Faculdade de Direito.
Com o enriquecimento da Capital e o amadurecimento do Ecletismo paulistano, na passagem do século XIX para o XX, as obras de Eusébio Stevaux foram ficando cada vez mais desprestigiadas. Isso contribuiu diretamente para desaparecimento de todas elas e para o total esquecimento do nome de seu autor. Foi a partir da pesquisa desenvolvida para nossa tese de doutorado, defendida em 1997, que pôde retornar finalmente à luz a autoria de algumas construções oficiais de fins do oitocentismo, já tão conhecidas dos paulistanos por meio de velhas fotografias.
Conclusão
Entre os profissionais qualificados atuantes na cidade de São Paulo durante o último quartel do século XIX, são frequentes
os nomes de Hermann von Puttkammer, Mateus Häussler, Tomás Gaudêncio Bezzi, Francisco de Paula Ramos de Azevedo e Luís Pucci,
entre outros, mas nunca é mencionado o de Eusébio Stevaux. E, no entanto, é considerável a parcela de responsabilidade que
teve esse engenheiro francês na criação da fisionomia da urbe paulistana nos derradeiros anos dos Oitocentos, já que os
espaços de maior significação simbólica da cidade estavam então dotados de edifícios públicos por ele construídos ou reformados.
O resgate desse profissional veio preencher uma inexplicável lacuna na historiografia da arquitetura eclética em São Paulo.
Pois, se todos sabemos o que representou a vinda de Ramos de Azevedo para o desenvolvimento da arquitetura da cidade,
praticamente nada se conhecia acerca das circunstâncias que precederam a chegada desse eminente arquiteto.
Dos simples mestres de obras, quase todos ilustres desconhecidos, na maioria portugueses, alemães e, depois,
italianos, passávamos diretamente para Ramos de Azevedo, que sempre se empenhou em contribuir para a criação da própria mística,
ao destacar seu papel de pioneiro da arquitetura em São Paulo.
Hoje tem Stevaux o seu lugar assegurado na história da arquitetura da cidade. Sua importância, porém, não é diretamente proporcional
ao seu talento, já que como vimos era limitado, mas sim, diretamente proporcional ao que representaram suas obras, do ponto de vista
simbólico, para a camada dirigente que, por intermédio do governo provincial, as encomendava. No âmbito da arquitetura oficial
paulista, Stevaux não foi mero antecessor, mas o verdadeiro precursor de Ramos de Azevedo, na medida em que por alguns anos
dominou a produção da arquitetura oficial da capital paulista, satisfazendo o anseio das elites da época, numa etapa inicial de
seu processo de aburguesamento. Após um rápido período de nove anos, sua saída do serviço público deu chance para que o Barão,
depois Visconde, e mais tarde Conde do Parnaíba (presidente da Província entre 1886 e 1887), trouxesse para São Paulo um profissional
que naquele momento se mostrava com perfil mais adequado, à altura do gosto refinado de uma pequena fração educada das camadas superiores.
Eudes Campos
Seção de Estudos e Pesquisas
Documentação primária
- SÃO PAULO. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Obras Públicas. Ordem 5195. De Serafim Corso ao presidente da Província, solicitando dilatação no prazo para a entrega das obras da fonte do Largo de Palácio. 1.º de abril de 1886.
- NECROLOGIA. Diario Popular. São Paulo, 22 de fevereiro de 1904, s.p.
Bibliografia
- CAMPOS, Eudes. São Paulo: desenvolvimento urbano e arquitetura sob o Império. In: PORTA, Paula (org.)
A história da cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004.3v. v.2.
- ______. Arquitetura paulistana sob o Império: aspectos da formação da cultura burguesa em São Paulo. 1997. Tese (Doutorado em Arquitetura) – FAU USP, São Paulo. 4v.
- DINIZ, Firmo de A. (Junius). Notas de viagem. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, 1978.
- RAFFARD, Henrique. Alguns dias na Paulicéia. São Paulo: Academia Paulista de Letras, 1977.
- RIBEIRO, José Jacintho. Chronologia Paulista. São Paulo: Diario Official, 1899-1901, 2v. em 3.
- RIBEIRO, Júlio. A carne. Rio de Janeiro: Tecnoprint, [c. 1985].
Fonte secundária em meio eletrônico
- LIMA Ferraz de, Solange. Pátio do Colégio, Largo do Palácio. Anais do Museu Paulista. São Paulo, USP, p.61-82, 2003.
Disponível em:
ISSN 0101-4714
Acesso em: 4 de janeiro de 2009.
Para citação adote:
CAMPOS, Eudes. Eusébio Stevaux, arquiteto.
INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL, 4 (23): mar/abr.2009 <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>