Uma residência paulistana atribuída a Eusébio Stevaux
Na residência apontada por Yan de Almeida Prado (1951) como tendo sido projetada por Eusébio Stevaux para Augusto de Sousa Queirós
(1844-1900), construção localizada num canto da chácara do Barão de Sousa Queírós (1806-1891), pai de Augusto, no ponto onde se
encontra atualmente o Edifício Ester, na esquina da Rua Sete de Abril com a Praça da República (o endereço original era Rua Sete de Abril,
n.º 79, segundo o almanaque de 1890) – casa apalacetada já existente em 1881 (fig.1 e 2) e observável em velhas fotos –, foi dado um passo
importante em direção à superação do estilo neoclássico, estilo que predominava nas construções residenciais ricas da cidade naqueles anos
de 1870.
Fig.1- Detalhe da planta da cidade de São Paulo executada pela Companhia Cantareira e Esgotos, provavelmente entre 1879 e 1881,
mostrando a projeção horizontal da casa de Augusto de Sousa Queirós.
Projeto atribuído ao engenheiro francês Eusébio Stevaux por Yan de Almeida Prado, em artigo de 1951 (revista Habitat).
Informativo AHM. São Paulo, AHMWL, n.º 20, set./out., 2008.
Fig.2- Detalhe do Mapa SARA Brasil, executado em São Paulo,
de acordo com o voo aerofotogramétrico de 1929, mostrando a projeção horizontal da casa de Augusto de Sousa
Queirós, aqui realçada no círculo vermelho.
As assimetrias notadas no desenho (na parte relativa às alas posteriores) são
provavelmente o resultado do fenômeno conhecido como
paralaxe, não devidamente corrigido
na restituição executada com o fotocartógrafo Nistri então empregado.
No círculo verde a projeção da casa de seu irmão, Luis Antonio.
SÃO PAULO (cidade). Arquivo Histórico Municipal Washington Luís,
Seção de Manuscritos.
Nesta habitação a parte central da fachada, coroada de frontão triangular ornado com relevos de ramagens à Renascença, avançava
em relação ao corpo principal da construção, na tentativa de romper com o elementarismo volumétrico vigente nas residências
ricas de então – avançava tanto que se tornou possível abrir uma janela em cada piso em ambas as paredes laterais do antecorpo.
Ao mesmo tempo, a decoração composta de elementos de cantaria fingida, requadramentos, painéis com ornatos fitomórficos e
frontões curvos sobre alguns vãos buscava introduzir o formalismo de sabor neo-renascentista na construção, cujo exterior,
contudo, teimava em apresentar o tratamento linear e em superfície característico do Neoclassicismo (fig.3 e 4). Impressão
que era reforçada pela presença das platibandas lisas e inteiriças no alto da edificação (ambigüidade estilística, aliás, observável,
como já visto, em outras obras atribuídas a Eusébio Stevaux).
Fig.3- Fachada principal da casa de Augusto Sousa Queirós, voltada para o Largo 7 de Abril (antigo do Curro), atual
Praça da República.
Foto de autor não identificado. c.1929.
PRADO, J. F. de Almeida (Yan de Almeida). S. Paulo antigo e sua arquitetura.
Illustração brasileira, Rio de Janeiro, anno X, n.° 109. s. p., set. 1929.
Fig.4- Desenho digital, executado pelo Autor (2007), reconstituindo a fachada principal da casa de Augusto de Sousa Queirós.
Informativo AHM. São Paulo, AHMWL, n.º16, jan./fev., 2008.
Disponivel em: <>
Embora resquícios conservadores persistissem no exterior desse palacete, a força da presença deles ficava muito atenuada ante
as novidades, entre as quais os elementos tectônicos e ornamentais de raiz neo-renascentista que decoravam a parte externa da
edificação. Outra inovação que notamos era a peculiaridade de estar a porta de ingresso da casa situada na fachada secundária
voltada para a Rua Sete de Abril (fig. 5), o que implicou, internamente, na eliminação da importância do eixo longitudinal central.
Os dois terraços descobertos a flanquear o antecorpo frontal, acessíveis pelas janelas francesas da fachada principal correspondentes
às salas que ladeavam o corpo avançado constituíam mais um detalhe novo do ponto de vista tipológico, e todo esse conjunto de
particularidades só fez aguçar nosso interesse por esse exemplar residencial.
Fig.5- A fachada lateral da casa de Augusto Sousa Queirós
deitava para a Rua 7 de Abril.
A cobertura de ferro e vidro vista sobre a
porta de entrada seguramente não é original, mas é possível que desde o início do século XX substituísse a cobertura primitiva,
de menores proporções (perceptível na foto de Axel Frisch, n.º 4, publicada no texto da Seção de Estudos e Pesquisa, neste Informativo).
Tomada por volta de 1925, a foto tem sua autoria atribuída a Max Rosenfeld (?-1962) e pertence à coleção de D. Margarida de Souza
Queiroz.
LEFÈVRE, José Eduardo de Assis. De beco a avenida; a história da rua São Luiz. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2006.
Na parte interna, a casa transmitia um ar de discreta opulência, e, conforme veremos adiante, nela já não figurava o conceito de pavimento
nobre (concentração no primeiro andar da residência de todas as funções nobres da casa: o receber, o comer e o repousar). Registros
fotográficos tomados nas primeiras décadas do século XX documentam os seus aposentos obscuros, quando a habitação estava provida de
peças de mobiliário que, visivelmente, por seu estilo, em grande parte já não era original (figs. 6 a 12). Paredes empapeladas em tons
sombrios, lambris e guarnições de madeira escura envernizada, escada nobre, instalada no âmago da casa, com lances retos, e tetos de
estuque decorados na sala de jantar garantiam sólido conforto a essa construção: tudo executado, porém, sem grande inspiração artística.
Conforme podemos deduzir a partir das fotos sobreviventes, datadas da década de 1920 e pertencentes à coleção de D. Margarida de
Souza Queiroz, no andar de baixo estava agenciado o salão principal no espaço correspondente ao corpo avançado central. Este salão,
como de costume, achava-se ladeado de dois compartimentos menores, o escritório e a sala da senhora talvez, ambientes cujas janelas
francesas frontais davam para os terraços já citados. Na parte posterior do corpo principal da casa situava-se a grande sala de jantar de
cerimônia, em posição tradicional, isto é, perpendicular ao eixo longitudinal da casa e decerto próxima da cozinha. Ainda
nesse piso havia espaço suficiente para o agenciamento de uma sala de estudos e nas duas alas posteriores, de um só pavimento
(das quais infelizmente não existem fotos), concentravam-se, certamente, como sempre, a copa, a cozinha e as demais dependências de
serviço (fig. 13).
Fig.6 a 12- Vistas internas da casa de Augusto de Sousa Queirós, tomadas por volta de 1925, de autoria atribuída
ao fotógrafo Max
Rosenfeld (? -1962) e pertencentes à
coleção de D. Margarida de Souza Queiroz.
Conferir nas fig.13 e 14, referentes às
plantas reconstituídas do imóvel, os prováveis ângulos de tomada das fotos, assinalados em vermelho.
Fig.6- Salão. As janelas vistas no fundo, amplamente iluminadas, voltavam-se para a Praça da República. Os dois vãos vistos à esquerda e
à direita do compartimento, cobertos por pesados cortinados, abriam-se nas paredes laterais do corpo central avançado
existente na fachada principal.
Fig.7- Vista da caixa de escada, tomada a partir de um passadiço existente no segundo piso.
Fig.8- Aspecto do hall de entrada, vendo-se ao fundo a caixa de escada que conduzia ao pavimento superior.
A janela, no alto e no fundo, situava-se no nível do segundo pavimento e era acessível por um passadiço que fazia a
ligação entre os cômodos da frente e os dos fundos.
Fig.9- Aspecto da sala de jantar. As janelas iluminadas à direita davam provavelmente para um terraço situado na parte
posterior da residência.
Fig.10- Saleta, que provavelmente funcionava como
boudoir, ou sala da senhora. Tanto esta sala, quanto o escritório,
visto a seguir, formavam com o salão a costumeira sequência de três salas contíguas voltadas para a frente da casa,
disposição que se notava nas habitações ricas da arquitetura luso-brasileira desde o final do século XVIII.
Fig. 11- Aspecto do escritório, com dois móveis característicos desse tipo de ambiente: a grande mesa de escrita e, atrás dela,
a
burra à prova de fogo, para a guarda dos documentos importantes e dos valores familiares.
Fig.12- Vista da sala de estudos, que de acordo com a nossa reconstituição ficava no fundo da casa. Notar a decoração de gosto
eclético, típicamente finissecular, misturando o mobiliário Luis XVI com peça de estilo art nouveau (biombo). Os móveis estavam
dispostos em diagonal, criando a sensação de displicente desordem. No centro do compartimento, um grande vaso com samambaias
parece atravancar a circulação.
Fig.6 a 12: LEFÈVRE, José Eduardo de Assis. De beco a avenida;
a história da rua São Luiz.
São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2006.
Com relação a essa casa, cuja projeção horizontal aparece na planta da cidade de São Paulo de 1881, desde há muito suspeitávamos que
ela não seguisse o conceito de
piano nobile. Para esclarecer esse ponto importante, numa conversa telefônica casual mantida em abril de
2002 com a historiadora Maria Cecília Naclério Homem, que desenvolvia uma pesquisa sobra a arquitetura doméstica paulistana do século
XIX e XX no IEB, sugerimos que ela procurasse ter acesso às informações constantes do inventário do proprietário para esclarecer em
definitivo a nossa suspeita. Dias depois, ela nos garantiu que, de acordo com a descrição do imóvel feita no arrolamento dos bens
deixados pelo morto, no segundo pavimento só estavam dispostos os aposentos familiares e um salão de bilhar (fig.14).
Constituía, assim, a casa projetada por Stevaux relevante elo de transição na cadeia evolutiva que transformou a rica moradia
paulistana de então, organizada segundo o programa tradicional luso-brasileiro, no típico palacete de padrão cosmopolita,
amplamente divulgado entre as elites da cidade a partir dos anos 1890.
PLANTA BAIXA
PLANTA 1.º ANDAR
Fig. 13 e 14 - A planta baixa e a do primeiro andar da casa foram parcialmente reconstituídas a partir das imagens anteriores.
Desenhos do Autor, executados em 2007 com técnica digital. Em vermelho, estão assinalados os possíveis ângulos de tomada das fotos
vistas atrás.
Informativo AHM. São Paulo, AHMWL, n.º16, jan./fev., 2008.
Disponivel em: <>
À esquerda da residência de Augusto, na esquina das atuais Avenidas São Luís e Ipiranga, ergueu-se depois a moradia de outro
filho do senador Sousa Queirós, personagem que em memória ao ilustre avô, militar e notório proprietário rural (brigadeiro em 1818),
recebera o nome de Luís Antônio (figs. 15 a 17).
Fig.15 - Aspecto da fachada principal da casa de Luís Antônio de Sousa Queirós. A estrutura do frontispício em três corpos repetia a
da fachada da casa de Augusto de Sousa Queirós, mas importantes detalhes ornamentais e compositivos revelavam que o projeto da
casa de Luís Antônio se mostrava mais atualizado em relação às regras de composição da arquitetura doméstica do tempo do Ecletismo.
LEFÈVRE, José Eduardo de Assis. De beco a avenida; a história da rua São Luiz. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2006.
Fig.16 e 17- Plantas da residência de Luís Antônio de Sousa Queirós. Note-se que a escada interna, na casa de Augusto confinada no âmago da construção,
foi parcialmente deslocada para fora neste exemplar. Com a configuração externa de um torreão, tornou-se um importante ponto de
interesse, e, juntamente com a escada externa da entrada lateral concebida com curvas caprichosas, se contrapunha ao volume geométrico
e estático onde se concentrava o resto da construção.
LEFÈVRE, José Eduardo de Assis. De beco a avenida; a história da rua São Luiz. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2006.
O palacete de Luís Antônio era posterior a 1881, pois sua projeção horizontal não figura na planta executada nesse ano pela Companhia
Cantareira e Esgotos (fig.1). Do ponto de vista estilístico, porém, pode muito bem ter sido construído nos últimos momentos do Império.
Várias eram as semelhanças havidas entre este imóvel e a casa de Augusto, sendo que as diferenças encontradas, contudo, eram bem mais
eloqüentes que as similaridades.
Construção bastante despojada, com seu ar de vila renascentista, apresentava basicamente a mesma composição da casa contígua em sua
fachada principal: um corpo avançava ligeiramente, posicionando-se no meio, provido de três vãos em cada andar, mas sem frontão
algum; apenas rematado por uma platibanda lisa e corrida. Tal como ocorria na casa de Augusto, esse antecorpo também se achava
flanqueado por terraços que serviam as duas salas secundárias dispostas de cada lado do corpo central (fig.15).
A composição das elevações era, no entanto, bem mais sóbria neste exemplar. Aqui não havia requadramentos, nem painéis decorativos em relevo; apenas frontões triangulares e curvos que se alternavam sobre as janelas do segundo piso. Como requinte de ornamentação via-se um friso decorativo a percorrer a parte inferior do entablamento, decorado com uma temática tipicamente renascentista: grutescos executados segundo a técnica do esgrafito (lembremo-nos que decoração parecida foi empregada em 1887 no edifício do Correio Geral, da autoria de Mateus Häussler).
Internamente, a disposição geral também recordava a da casa de Augusto. Tal como nesta última, a entrada da moradia localizava-se na
fachada lateral, esquerda nesse caso, acessível por meio de dois vistosos lances de escada externos que, de modo convidativo, se
abriam em forma de elipse. Notava-se, porém, uma certa irregularidade e assimetria na disposição interna dos cômodos, novidade de caráter
modernizante, introduzida sem dúvida com o objetivo de evitar a cansativa previsibilidade da compartimentação neoclássica típica.
A presença do eixo de composição transversal na casa de Luís Antônio era extremamente acentuada. Partia do patamar da escada de entrada e atingia o lado oposto da construção, passando pelo centro do corpo de cantos chanfrados que abrigava a escada nobre. Esta havia sido deslocada do âmago do edifício, ficando seu corpo parcialmente visível à direita da casa (fig.16 e 17). A caixa de escada tinha, portanto, a forma exterior de um torreão (como muitas casas dos anos de 1890 adotariam). Todo recoberto com afrescos decorativos, o torreão exibia uma aparência bastante contrastante com relação ao restante bastante sóbrio da edificação,
constituindo este pormenor um indício seguro da forte influência do historicismo eclético no projeto, tendência que passaria a predominar na arquitetura doméstica paulistana a partir dos primeiros anos da República (fig.15).
Perguntamo-nos se o nome de algum arquiteto de prestígio, quem sabe o do próprio Eusébio Stevaux, não estaria por detrás da concepção desse
palacete, que, com muita discrição, procurava manter-se estilisticamente atualizado, aproximando-se da arquitetura internacional de
índole romântica datada dos derradeiros anos do século XIX.
Eudes Campos
Seção de Estudos e Pesquisas
Bibliografia
- CAMPOS, Eudes. Arquitetura paulistana sob o Império: aspectos da formação da cultura burguesa em São Paulo. 1997. Tese (Doutorado em Arquitetura) – FAU USP, São Paulo. 4v.v.2.
- _____. Os Pais de Barros e a Imperial Cidade de São Paulo. Informativo Arquivo Histórico Municipal.
São Paulo, PMSP/ SMC/DPH/ n.16, ano 3, mar./abr. 2008.
Disponível em: .
Acesso em 10 de março de 2009.
- LEFÈVRE, José Eduardo de Assis. De beco a avenida; a história da rua São Luiz. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2006.
- PRADO, J.F. de A. (Yan de Almeida). Arquitetos de São Paulo em 1880. Habitat. São Paulo: n.3, p.50-53, 1951.
Para citação adote:
CAMPOS, Eudes. Engenheiro Eusébio Stevaux (1826-1904): Uma residência paulistana atribuída a Eusébio Stevaux.
INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL, 4 (23): mar/abr.2009 <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>