São Paulo – das Intendências à Prefeitura
A constituição dos projetos de cidade pelo viés da saúde e higiene (1890-1911)
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A cidade sob o regime republicano:
a administração das Intendências Municipais
São Paulo já não era mais a pequena vila de fisionomia colonial descrita pela pena de Ernani da Silva Bruno.
A cidade frente às grandes modificações ocorridas nas últimas décadas do XIX, “despertava em muitos que a
observavam uma sensação de fluidez, de inconstância, de imprecisão”. Essa inconstância precisava ser ordenada
e normatizada por meio de ações advindas do poder público. Para a execução de um bom gerenciamento da urbes
era necessário o desenvolvimento de leis e instituições que definissem comportamentos individuais e coletivos
bem como o uso e apropriação dos espaços públicos e privados.
Destarte, a medicina social trazia algumas respostas às questões suscitadas pela cidade em constante
transformação. Os ideais de racionalidade, modernização e aperfeiçoamento moral dos indivíduos estavam
presentes na constituição do saber e no discurso médico em vigor. Salubridade, limpeza e organização eram
algumas das palavras de ordem do projeto de cidade que as classes dirigentes buscavam implantar em São Paulo.
A administração municipal ainda se mostrava instável do ponto de vista de sua configuração interna,
não havendo uma organização que estruturasse o poder executivo dando à cidade uma “vida política
razoavelmente autônoma”. Da administração exercida pela CMSP a direção da cidade passou às mãos de
um intendente nomeado pelo Estado de São Paulo. Por conta dos constantes embates surgidos entre
vereadores republicanos e monarquistas o Conselho de Intendências foi dissolvido.
Ao analisar essas situações concretas observamos o quão conflituoso foi o processo de constituição dos
órgãos administrativos do município. É preciso desconstruir a premissa de que as instituições representam
somente consensos de ideias e práticas daqueles grupos que as constituem, pensando-as enquanto lugar de
conflitos, tensões, disputas de projetos e muitas vezes, de acomodações. Esses mesmos grupos que se
constituem dentro do executivo público municipal o fazem na relação com outros grupos dentro de
determinadas correlações de força.
Nesse sentido, a ideia — extraída da obra de E. P. Thompson — do "se fazer" da classe pensado enquanto
um processo histórico vivido e experienciado por grupos que se constituem e se reconhecem nos embates e
lutas travados com os seus antagonistas, traz muitas pistas de como lidar com os sujeitos históricos e a
rede de relações em que estão envolvidos. Mais adiante, voltaremos a esse ponto de discussão.
Em 24 de julho de 1891 foi promulgada a Constituição Estadual de São Paulo. Por determinação dessa a
administração municipal foi dividida entre quatro Intendências executivas: Intendência de Justiça e Polícia,
Higiene e Saúde Pública, Obras Municipais e Finanças. Ao intendente de Hygiene e Saúde Pública
foram atribuídos os assuntos referentes à “alimentação, socorros, hospitais, recolhimentos, matadouros, mercados ou
feiras, limpeza e asseio, lavanderia, chafarizes, abastecimento de águas e esgotos, jardins, imigração e alojamentos,
cemitérios, etc.”.
Dois anos depois, em 1894, as atribuições referentes aos serviços de higiene foram transmitidas ao intendente
de Justiça e Polícia, vindo em 1896 a serem designadas a um intendente de Polícia e Higiene.
Foi este, o vereador José Roberto Leite Penteado.
Em seu relatório de gestão apresentado à CMSP no início de 1897, Leite Penteado nos mostra a organização
interna do serviço de fiscalização da cidade: São Paulo foi dividida em 30 distritos, os quais eram
fiscalizados por 30 guardas fiscais. A cada qual cabia a verificação das normas estipuladas pelo
código de posturas municipais sendo o seu descumprimento materializado em intimações, multas e termos
de embargo de obras. Além desses funcionários, a Intendência era composta por dois fiscais sanitários
de distrito (médicos), um veterinário (para o Matadouro Municipal), um engenheiro, um fiscal de viação,
um fiscal de rios, um inspetor e três fiscais de veículos.
Ao nos fornecer esse quadro, Leite Penteado nos aproxima da configuração interior de sua intendência,
a partir da qual lança mão de questões que julga serem importantes para se pensar o descompasso
existente entre o projeto de cidade que se buscava constituir na capital e a realidade flagrada do ponto de
vista institucional da administração pública. Quando se refere ao crescimento “assustador” dos cortiços
na capital, o intendente deixa transparecer sua crítica:
O crescimento da cidade, cuja população aumenta excedendo as previsões, e a corrente imigratória que
cada dia mais se avoluma, e as dificuldades da vida pela carestia de gêneros e preços dos aluguéis dos
prédios, têm influído para que nesta capital se tenham desenvolvido de modo assustador os cortiços,
habitações ocupadas em geral pela classe proletária. Apesar de haver a Câmara em 1886, adotado um padrão
para a construção de cortiços, casas de operários e cubículos, embora deficiente, pode-se dizer que, em geral,
não foi posta em execução, porque quase todas as construções do gênero não satisfazem as exigências do poder municipal
.
O intendente reconhecia no grande aumento populacional ocorrido na cidade — oriundo dos surtos imigratórios —
e nas dificuldades econômicas encontradas pela população com os altos preços dos gêneros alimentícios e dos aluguéis
o motivo pelo qual os cortiços se disseminavam de forma tão rápida na capital paulista. Em sua fala, este define
os habitantes dos cortiços enquanto indivíduos oriundos da classe proletária.
Leite Penteado continua sua exposição destacando a inoperância da Câmara Municipal para fiscalizar o
cumprimento das normas de construção adotadas pelo código de posturas da cidade, afinal, se a Câmara agisse
de acordo com o que diz o texto legal São Paulo não estaria cheia de cortiços. Como solução para o problema
de moradia da população proletária, o intendente aponta que a CMSP deveria se espelhar nas ações da Câmara
do Rio de Janeiro e conceder favores para a construção de vilas operárias. Estas, deveriam ser construídas em
terrenos municipais localizados nos subúrbios das cidades. Através das linhas de bondes esses indivíduos
"facilmente" se locomoveriam para o centro da cidade.
Desse modo, José Roberto Leite Penteado apresenta um dos pontos cruciais de seu plano de gestão municipal:
a transposição da população pobre e operária para as regiões suburbanas do perímetro central. Logo, fica
evidente que os projetos de afastamento da população menos abastada do centro urbano da capital não foram
privilégios das administrações recentes da cidade.
Além de privilegiar a burguesia cafeeira e as demais classes mais abastadas no processo de ocupação
e uso do espaço urbano, o intendente exclui de sua fala os negros libertos, mulatos, caipiras e demais nacionais
que constituíam a população de trabalhadores pobres e desempregados da cidade. Era como se a população pobre
se resumisse somente aos operários.
O relatório é encerrado com o apontamento de outro problema: a deficiência de pessoal na sua secretaria.
Todavia, fica bem frisado em seu discurso que esse problema não o impossibilitou de deixar todos os seus
“serviços em dia”, com a ajuda de seu quadro de funcionários.
Em 1898 foi a vez do também vereador João Álvares de Siqueira
Bueno ocupar o cargo de intendente de Polícia e Higiene.
Em seu relatório administrativo, ele endossa a reclamação do intendente anterior acerca da falta de pessoal
para os quadros funcionais da intendência, no entanto, em sua gestão, o número de guardas fiscais foi reduzido
de 30 para apenas 18. Cada guarda teve praticamente o seu trabalho dobrado em virtude da dispensa dos demais
funcionários, não havendo porém reajuste financeiro em seus vencimentos.
Frente a isso, o intendente faz uma crítica contundente a medida adotada: “Não será com um corpo de 18
guardas fiscais mal pagos que se há de exigir um serviço completo de fiscalização nas grandes áreas
da cidade, seus arrabaldes e povoações distantes e populosas, nem será com 2 médicos que se há
de acautelar a vida dos munícipes (...)”.
Siqueira Bueno considerava insuficiente o número de funcionários destinados aos serviços de
fiscalização e manutenção da higiene pública. Não obstante, sua crítica não recaia somente sobre corpo
de guardas fiscais mas também sobre a quantidade — ao seu ver insuficiente — de médicos direcionados
para a elaboração e execução das práticas científicas de promoção da saúde dos munícipes.
Apoiado nas diretrizes sanitárias emanadas pelo código municipal de posturas de 1886, Siqueira Bueno
discorre sobre as atribuições referentes aos serviços de polícia administrativa e polícia sanitária,
frisando a importância de não se confundir a figura do guarda fiscal com o soldado da força policial.
É preciso não confundir a missão dos fiscais com a que é materialmente exercida por soldados de polícia, apenas em
igualdade nas vantagens pecuniárias que têm, pois ao passo que aqueles são necessários, além de alguma instrução
e de critério menos comum, a compreensão e o conhecimento das leis, para a sua ininterrupta aplicação, dos outros quase
nada se exige senão o respeito à disciplina nos quartéis e vigilância nos postos de guarda e observação, para garantia
da vida e da propriedade.
De acordo com as considerações feitas pelo intendente havia determinados critérios que um indivíduo teria
de possuir para poder exercer o cargo de guarda fiscal: ter um grau mínimo de instrução e conhecimento
e compreensão das leis municipais, o que, por sua vez, não era necessário para um soldado de polícia.
Todavia, a ambos estava previsto o exercício da ação policialesca pautada legalmente no monopólio da força
e do poder coercitivo. Ainda que o guarda fiscal não pudesse prender um indivíduo que estivesse em desacordo
com as posturas municipais possuía o poder de intimá-lo, multá-lo e denunciá-lo ao intendente de Polícia
e Higiene. Por fim, para além da autoridade que lhes foi atribuída a má remuneração era o elo mais forte que os unia.
Continua >
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Para citação adote:
MAESTRINI, Karla. São Paulo – das Intendências à Prefeitura:
a constituição dos projetos de cidade pelo viés da saúde e higiene (1890-1911).
INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 8 (34): nov.2013
<http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>
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