Edifício Ramos de Azevedo, 1991: primeiro restauro
CASA DA MEMÓRIA PAULISTANA
O processo de restauro e adaptação do Edifício Ramos está diretamente relacionado à proposta da Casa da Memória, que surge no primeiro
ano da administração Luiza Erundina (1989-1992). Encerra-se assim, retomando o propósito inicial da compra do edifício em 1987, a proposta de
destinação do mesmo edifício para a Pinacoteca Municipal.
A nova orientação terá como produtos concretos o restauro propriamente dito e a criação legal da nova unidade. Em 28 de dezembro de 1992, através
do Decreto Municipal n.º 32.900 (DOM, 29.12.1992), o Executivo dispõe
sobre a oficialização e instituição da 'Casa da Memória Paulistana',
do Departamento do Patrimônio Histórico, da Secretaria Municipal de Cultura, e dá outras providências:
Art.1.º. — Fica instituída a 'Casa da Memória Paulistana', a ser instalada no Edifício Ramos de Azevedo, que visa reunir num único local os acervos sob a guarda do Departamento do Patrimônio Histórico, propiciando condições técnicas adequadas para o seu armazenamento, manutenção, conservação e utilização.
Parágrafo único – A 'Casa da Memória Paulistana' compreende o Gabinete do Departamento do Patrimônio Histórico, a Divisão de Administração,
a Divisão do Arquivo Histórico Municipal, a Seção do Arquivo de Negativos, a Seção Técnica do Museu Histórico de Imagens Fotográficas da Cidade de São Paulo,
a Seção do Expediente e o Gabinete da Divisão de Iconografia e Museus.
Art.2.º. — Fazem parte também da 'Casa da Memória Paulistana' o 'Centro de Referências da Cidade de São Paulo' e o 'Centro de Conservação e Restauro'.
Art.3.º. — Este decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
O uso do recurso do decreto às vésperas da mudança de administração pode ser interpretado como resultado das dificuldades enfrentadas na
relação entre Executivo e Câmara Municipal para a criação de novas estruturas administrativas, em especial durante o último ano de gestão. Por outro lado,
era evidente a necessidade de garantir o uso e continuidade do que seria o mais ambicioso projeto já proposto sobre os acervos documentais custodiados
pela Prefeitura. O ato legal terá, porém, vida breve, sendo revogado na primeira semana de janeiro seguinte.
Sobre a proposta, entre os documentos localizados durante a pesquisa, o mais antigo data de junho de 1989. Trata-se do texto
Memória paulistana: acervos e pesquisas: elementos para uma redefinição de programas, elaborado pelos arquitetos
Edgard Tadeu Dias do Couto e Eduardo de Oliveira Elias, da equipe da Seção Técnica de Programas de Revitalização (DPH/SMC).
Ao longo de sete blocos a proposta surge já em seu todo, breve mas norteadora:
2. Caracterização:
O conjunto designado 'Casa da Memória' surge da necessidade – que no decorrer dos últimos anos vem se acentuando enormemente –
de uma racionalização da captação, processamento, guarda e veiculação, de modo científico e dinâmico dos 'bens histórico-culturais'
sob a tutela da Municipalidade.
[...] Este 'Conjunto' portanto deve caracterizar-se primordialmente como um centro de polarização e veiculação da informação
histórico-cultural concernente à Cidade de São Paulo. Por 'polarização' entendemos não uma centralização 'física' de informações,
mas uma 'filosofia' de captação e operação dessas informações. Por 'veiculação' entendemos não apenas a divulgação das mesmas mas
a possibilidade de sua apropriação pela comunidade.
Finalmente devemos ressaltar que o 'Conjunto' deve inserir-se na política cultural global do Município, tornando-se um efetivo
prestador de serviços, bem como um núcleo aglutinador da comunidade paulistana em torno da reflexão, debate e preservação de sua memória.
O texto, com 27 folhas, merece ser considerado. Analisa as consequências tanto da reordenação do DPH (Departamento do Patrimônio
Histórico) como de novas necessidades funcionais geradas, e considera tanto as hipóteses de centralização de acervos como a
descentralização. Uma ressalva deve ser feita, tal estudo não discute a destinação do Edifício Ramos de Azevedo para tal uso.
Trata-se, como indicado à folha 2, de um pré-programa pensado com liberdade sem ater-se à estrutura existente ou propor de imediato uma classificação
hierárquica. Estes aspectos parecem qualificar a versão proposta. O tom é cuidadoso, evitando proposições apressadas.
O item 4 - Composição geral - define funções e dimensiona a equipe funcional, áreas e mobiliários especiais. Não existe, porém, um
efetivo dimensionamento dos acervos existentes (em alguns casos, nem seria possível) ou um questionamento em relação a determinados conjuntos documentais,
sobre a conveniência da manutenção ou transferência de acervos.
O conjunto proposto abrange uma coordenadoria e quatro módulos: Administração, Acervos e Pesquisas, Comunicação e Atendimento ao Usuário, e Publicações. A área
estimada chega a 7.830 m
2, o que inspira preocupação se considerarmos que o total do Edifício Ramos não atinge nem metade
dessa metragem quadrada. Em
especial, se for considerada a área de 5.100 m
2 destinada a acervos. Neste aspecto, seria relevante mencionar a abrangência do módulo B - Acervos e pesquisas -
que engloba conjuntos (1) bidimensional (gráfico-textual, imagem e som), (2) tridimensional (escultórico, objetos utilitários, mobiliário,
arte indígena), (3) pictórico e (4) arqueológico.
Infelizmente, a proposta não leva em consideração outras experiências de complexidade e envergadura similar. A menção é referência direta à
implantação do Centro Cultural São Paulo a partir de 1982. Certamente não havia reflexão e distância para identificar desafios e procedimentos
que permitissem alguma contribuição ao debate. Nem mesmo, por exemplo, o módulo C - Comunicação e Atendimento ao usuário - tira proveito de tal experiência.
As indicações sobre espaços expositivos não apresentam detalhamento adequado em itens, como iluminação de áreas expositivas ou
monitoramento ambiental. E, certamente, não podia prever questões introduzidas na década de 1990 com a computação intensiva e a
internet.
Outro documento, intitulado
Projeto A Casa da Memória Paulistana, datado de setembro de 1990, embora menos extenso, detalha a proposta na
forma próxima ao decreto de 1992. De imediato, são apresentadas duas diretrizes departamentais norteadoras da proposta:
- cidadania cultural
[...] diretriz básica da política cultural desta administração – se desdobra em diversas práticas que possibilitaram garantir, em todos os níveis o direito à cultura a toda uma população diferenciada socialmente, diluindo as fronteiras hierarquizadas das experiências culturais da cidade. [...] Envolve também a democratização da produção cultural, seja do ponto de vista de guarnecer os trabalhadores e a população da cidade em geral de instrumentos capazes de possibilitar sua produção cultural autônoma, tanto quanto sua formação e informação culturais.
(PROJETO, 1990, f.3)
- integração departamental: rompimento do isolamento das divisões
As propostas e projetos de ação cultural do Departamento do Patrimônio Histórico para esta gestão visam, no plano das especificidades de suas funções e atribuições, traduzir estes objetivos norteadores da política cultural desta administração. Ao mesmo, pretende-se integrar os diferentes setores do Departamento em atividades comuns e aglutinadoras, com objetivos claros e explícitos que, quebrando o isolamento das diversas divisões e a paralisia dos últimos anos, façam com que os funcionários se percebam como agentes de um projeto integrado e definido em função dos interesses dos habitantes da cidade.
(PROJETO, 1990, f.4)
O capítulo II, ocupando seis da 23 folhas, é dedicado a:
Uma política geral para os acervos de natureza arquivística da cidade de São
Paulo. Toma como ponto de partida as condições dos acervos como os custodiados pelo Arquivo Histórico Municipal e a Seção de Arquivo de
Negativos (DIM/DPH), ambos sem atualização e sem condições de conservação e acesso adequados. Definem-se então as proposições:
- ampliação e atualização de acervos, e a produção de novos registros da memória paulistana
- criação do Sistema Municipal de Arquivos, que pretende reunir todas as unidades arquivísticas da Administração
Municipal e demais instituições similares da cidade para que, sob bases comuns, seja preservado e organizado seu acervo documental.
Para a construção desse sistema, é fundamental o estabelecimento de canais formais para troca de informações que possibilitem o acesso
público do patrimônio arquivístico municipal, bem como a implantação do Arquivo Intermediário, para os documentos produzidos pela
administração municipal. Foi constituída, em 1.990, a Coordenação Científica, constituída de especialistas nas áreas de arquivologia,
história, administração e direito, e as Comissões setoriais de avaliação de documentos. Estabelecida também em 1.990 algumas pré-tabelas
para avaliação do valor legal, administrativo e fiscal da documentação dos diferentes órgãos da administração municipal – etapa
necessária para que se dê início à identificação da documentação com valor cultural e probatório a ser incorporada ao acervo
arquivístico permanente do Arquivo Histórico Municipal. (PROJETO, 1990, f.6)
- Empreender atividades de registro fotográfico sistemático da cidade de São Paulo, alimentando o acervo permanente neste
suporte. (PROPOSTA, 1990, f.6)
- A produção de novos registros para a memória paulistana através da implantação de projetos de história oral, com
coleta de depoimentos relativos à vida cotidiana da cidade e à memória do trabalho fabril, visa assegurar a participação popular
direta nos registros da memória da cidade de São Paulo. Ela pressupõe a ampliação da própria noção de patrimônio histórico,
para incorporar aos seus registros a versão dos cidadãos em sua multiplicidade, e não apenas a documentação resultante dos atos
governamentais. (PROPOSTA, 1990, f.7)
- [...] dotar estes acervos das condições técnicas necessárias a esta ampliação, configurada na proposta de implantação da
'Casa da Memória Paulistana (grifo nosso)'.” (PROPOSTA, 1990, ff.5-6)
Seguem-se três desdobramentos -
sub-projetos programados:
- A sede
Restauro e adaptação do Edifício Ramos de Azevedo, futura sede da 'Casa da Memória', apresentado com
maior extensão às folhas 10 a 16, enfatizando porém a análise arquitetônica da edificação.
O item é apresentado como absoluta prioridade para a atual gestão (f.16) como forma de viabilizar a ampliação e reorganização dos
acervos arquivísticos.
- Centro de Conservação e Restauro
O Centro de Conservação e Restauro do Município que englobará os laboratórios de pesquisa e de restauro de papéis, fotografias,
edificações, funcionará naquele Edifício, em área que lhe será reservada, como órgão de assessoria, como centro de pesquisa e
treinamento, como eixo dinâmico de divulgação das causas de deterioração e de técnicas de conservação e restauração do
patrimônio documental em seus vários suportes e como prestador de serviços técnicos [em] nível nacional [...] (f.17)
- Centro de Referências da Cidade
À reunião destes acervos e das condições técnicas para sua preservação deve-se somar, necessariamente, a organização de um
centro de referências da documentação e do patrimônio histórico, artístico e cultural da cidade de São Paulo.
[...]
Impõe-se, portanto, a fixação de etapas necessárias à sistematização de informações, sobre a origem da documentação,
localização, estado de conservação e de seu conteúdo e sobre as instituições públicas e particulares, de ensino e pesquisa,
instituições essas geradoras de documentos e informações sobre a cidade de São Paulo. (f.18)
[...]
Como primeiro passo, identificação e cadastramento das instituições e órgãos que mantêm sob sua custódia acervos significativos
a partir do DPH e levantamento e cadastramento dos orgãos das administrações municipal, estadual e federal
sediados na Capital, bem como instituições acadêmicas, instituições particulares e acervos significativos
à recuperação da memória da cidade de São Paulo, instituições nacionais e estrangeiras.
A proposta de constituição da Casa da Memória não terá continuidade na administração Paulo Maluf (1993-1996). Atrasos na implementação
do restauro e reforma do Edifício Ramos acabarão retardando a finalização até 1996 quando passa a ser ocupado parcial e lentamente por
unidades do DPH (ver Histórico).
Ainda assim, elementos centrais da proposta permanecem enquanto questões a serem respondidas, como a de gerenciamento dos acervos ou a
de reordenação estrutural das ações patrimoniais. O processo desenvolvido ajudou a garantir áreas mais adequadas para uso por parte do Arquivo
Histórico, seja pela instalação do laboratório de papel, seja pela expansão da área de guarda, que receberá a partir de 1999 um expressivo
volume com a transferência da documentação até o ano limite de 1921.
É evidente que a proposta não apresentava uma reflexão equitativa sobre os três eixos norteadores. Certamente, os laboratórios, atendendo
às especificações de então, tiveram maior detalhamento; porém, o Centro de Referência não apresentava, como indica a documentação
consultada, detalhes mais aprofundados.
O projeto poderia ter contado nesse sentido com a experiência desenvolvida pela FUNARTE, como fora o caso em outros aspectos,
em especial
após o esfacelamento da entidade pelo governo Collor, quando vários técnicos tiveram papel significativo como assessoria das equipes;
ou, ainda com colaboradores mais próximos através de eventual consulta ao IDART - antigo departamento de documentação artística, absorvido pelo CCSP em 1982.
A ausência de um projeto específico estaria evidente no programa de ocupação do Edifício Ramos, ficando reduzido a
uma bancada de terminais de informática no salão central.