Hospitais paulistanos: do século XVI ao XIX
Eudes Campos
Pesquisador da
Seção Técnica de Estudos e Pesquisas
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Assistência à saúde e medicina em São Paulo - Período Colonial
São escassas na cidade de São Paulo as informações sobre construções destinadas a enfermarias e hospitais durante o período colonial.
A fundação da Santa Casa de Misericórdia paulistana, irmandade de caráter assistencial, remonta ao que tudo indica a fins do XVI
(c. 1599, segundo a historiadora Laima Mesgravis), mas na época somente a igreja da instituição foi erguida, não havendo
nenhuma menção nos documentos à existência de hospital.
Aparentemente, o templo esteve desde o início situado no atual
Largo da Misericórdia, ponto que muito provavelmente, naquela época, se achava fora dos muros defensivos de
Piratininga, os quais ainda subsistiam naqueles últimos anos do quinhentismo.
Durante o século XVII a Santa Casa não teve condições de erguer seu nosocômio. A ação assistencial na área da saúde
que a irmandade desenvolvia limitava-se talvez à distribuição de esmolas aos doentes pobres, que teriam de recorrer à
botica dos jesuítas, mantida no colégio, caso quisessem encontrar os remédios que necessitavam, tanto os de origem
europeia quanto os de origem indígena.
Supomos que na inexistência da instituição hospitalar de caridade a cargo da
Santa Casa, tenham os jesuítas procurado suprir essa ausência, assumindo durante largo tempo a responsabilidade pela
assistência aos índios aculturados e aos paulistanos sem recursos.
O hospital da Santa Casa paulistana só entraria em funcionamento no século XVIII. Após uma existência efêmera,
entre 1717 e 1728, abriu finalmente as portas em 1749, instalado em quatro casas adquiridas cinco anos antes
para essa finalidade.
Como tudo em São Paulo naquela época, devia estar alojado em construções diminutas e precárias,
de taipa de pilão. Teve, porém, breve duração, porque o local acabou requisitado pelo governo da Capitania para servir
de sede à Legião de Voluntários Reais, entre 1774 e 1801, não recebendo a irmandade
nenhuma paga por isso.
Na época colonial os enfermos eram tratados em casa. As enfermarias paulistanas tinham, em geral,
caráter improvisado e temporário, sendo montadas com o objetivo de segregar, de modo compulsório,
social e espacialmente, os doentes atacados de doenças infectocontagiosas – entre elas, as famigeradas bexigas
(varíola). Para isso se adaptavam quase sempre edificações preexistentes, situadas em pontos então considerados
distantes da zona urbana. O historiador Nuto Santana (1889-1975), que pesquisava sistematicamente os velhos
papéis camarários durante os anos que ocupou a diretoria do Arquivo Municipal, cita algumas localidades
para onde eram desterrados os infectados de São Paulo: as proximidades do mosteiro de São Bento,
a Tabatinguera, o Pacaembu e até a Luz.
A mesma medida era adotada com relação aos leprosos, sempre
mantidos afastados das regiões habitadas. Mas as referências ao mal de São Lázaro apenas se tornaram
constantes em São Paulo a partir do século XVIII.
A medicina no período aqui considerado era também muito precária, sendo poucos os profissionais da
saúde existentes em São Paulo. As Atas da Câmara citam em geral cirurgiões e barbeiros. Os primeiros, encarregados
de realizar operações, pensar feridas, reduzir fraturas, mas não podendo diagnosticar doenças nem receitar remédios;
os últimos, aptos apenas para arrancar dentes, deitar bichas (sanguessugas), aplicar ventosas ou fazer sangrias.
Médicos, de verdade, então chamados físicos, que tinham o título de doutor e a condição de profissionais
liberais, parecem ter sido raros. Charlatães e curandeiros, porém, havia muitos.
Trabalhavam clandestinamente, sem a necessária licença da Câmara, e praticavam a medicina popular,
num suposto misto de tradições portuguesas, indígenas e africanas, feito à base de rezas, benzeduras,
passes, esconjuros, mezinhas, elixires e simpatias. De qualquer forma, a Medicina erudita da época não
era muito mais eficaz que as tradições médicas populares. Firmada em falsas premissas, estava ela também
eivada de crendices e superstições. Acreditava-se, por exemplo, que os fenômenos cósmicos, atmosféricos, ou
até mesmo astrológicos, tais como, raios, cometas e determinadas conformações astrais (sobretudo envolvendo os
planetas Saturno, Júpiter e Marte) eram capazes de desencadear surtos
infecciosos. Os maus ares podiam causar
vários tipos de febres, entre elas, evidentemente, a malária, doença cujo nome tem origem etimológica diretamente
ligada ao seu suposto agente patogênico. E também, segundo as concepções daquele tempo, a luz da lua cheia provocava
alienação mental, além de causar a deterioração dos alimentos.
Nos tempos da Colônia, durante surtos de varíola e outras doenças contagiosas, as medidas tomadas pelas autoridades
tinham natureza eminentemente segregativa. Os atingidos deviam ser afastados da área urbana e os forasteiros vindos
de lugares castigados por epidemias, impedidos de entrar na povoação (cordão sanitário). Os escravos africanos
recém-chegados também inspiravam receio, porque se intuía que podiam trazer doenças, entre elas, a temível varíola.
Para superar esse problema, a solução adotada era a quarentena,
cumprida nos arredores de São Paulo.
Dada a generalizada ineficácia da arte terapêutica da época, podemos supor que os doentes raramente saiam vivos
das enfermarias em que eram internados. O máximo que se conseguia era evitar o alastramento descontrolado das
doenças contagiosas. Para auxiliar na cura de tão terríveis moléstias não restava aos paulistanos desamparados senão
recorrer à intercessão divina. Solicitavam então à Igreja a trasladação de uma imagem de Nossa Senhora, tida
como miraculosa, entronada no distante bairro da Penha, e com ela realizavam concorridas procissões e promoviam fervorosas preces.
Nesse tempo ainda persistia o hábito medieval de enterrar os mortos nas igrejas; durante os surtos epidêmicos
tomavam-se certas medidas profiláticas, como a desinfecção por meio da cal viva, lançada às pazadas sobre os
cadáveres no momento da inumação. Enquanto durassem as epidemias, os que tinham condições abandonavam a cidade.
Até mesmo os vereadores, responsáveis pela administração municipal, não hesitavam em tomar essa atitude. Nas
Atas da Câmara há assentamentos deixados pelos inconformados contra aqueles que não assumiam seus
deveres em tempo de crise.
Ainda conforme as teorias médicas em voga, o mau cheiro em si também dava origem a enfermidades, por
isso combatiam-no com queimas de perfumes. Esse tipo de profilaxia continuou a ser adotado em pleno
século XIX. Os aromas não eram encarados apenas como medida paliativa para atenuar odores nauseabundos;
os perfumes, compostos de ervas aromáticas, temperos e substâncias balsâmicas, eram reconhecidos por sua
atividade decididamente preventiva. No Brasil, no combate aos ambientes carregados de mau odor recorria-se
habitualmente a fumigações de alfazema, resina, enxofre ou breu, este último mais eficaz aos
olhos dos contemporâneos.
Como veremos mais adiante, havia porém quem condenasse a queima de perfumes no interior das enfermarias de hospitais,
por serem considerados ineficazes, e recomendasse o emprego de vapores mais ativos, como os dos ácídos acético,
muriático ou nítrico! Sabe-se ainda que em caso de epidemias, eram acesas fogueiras nas esquinas para a queima de perfumes;
e, no século XVIII, um dos capitães-generais da Capitania de São Paulo cita em sua correspondência a prática de passar cabeças
de gado pela cidade na tentativa de atrair para os animais os malefícios de uma epidemia então reinante.
A teoria dos quatro humores (sangue; pituita, fleuma ou muco; bile amarela e bile negra ou atrabile, sendo
esta um humor fictício), nascida na Antiguidade Clássica (Hipócrates, 460-377 a.C., e Galeno, 129-199 d.C.),
sobreviveu com sucesso na Medicina luso-brasileira até meados do século XIX.
Um seguidor e divulgador dessa doutrina em Portugal era o famoso médico João Curvo Semedo (1635-1719),
médico da Casa Real e Familiar do Santo Oficio (fig.1). Em que pese o fato de ter sido um dos
introdutores do uso de medicamentos químicos na medicina de seu país, manteve a teoria dos humores como
explicação básica para um sem número de doenças. Segundo essa teoria, as moléstias eram o produto do desequilíbrio
humoral ocorrido no interior do corpo do paciente. Os tratamentos então ministrados procuravam restabelecer a
harmonia original, eliminando o excesso de um dos humores ou corrigindo sua deficiência por meio de sangrias,
escalda-pés ou pedilúvios, vomitórios, purgantes, emplastros, sudoríferos e enemas.
Fig.1 - Retrato do médico João Curvo Semedo (1635-1719),
publicado em seu Polyanthea Medicinal.
Noticias galenicas, e chimicas, repartidas
em tres Tratados; [...]. Lisboa, s.n., 1697.
Na verdade, a sangria foi durante muito tempo tida como uma prática
curativa de valor universal,
embora João Curvo Semedo, autor da Polianteia Medicinal (1697), demonstrasse ser grande adepto dos vomitórios à base
de estíbio ou antimônio e fosse muito afamado pelas mezinhas que preparava e vendia por elevado preço. As
formulações da época, muitas vezes influenciadas pela magia, admitiam ingredientes que hoje seriam considerados
repulsivos, senão perigosos ou ridículos. As poções das bruxas dos atuais contos infantis decerto ecoam
a tradição das mezinhas do século XVII e XVIII: era comum entrarem nas composições bezoares (concreções
encontradas em intestinos de determinados ruminantes, tidas como muito eficientes contra venenos), raspas
de dente de narval (considerado como o verdadeiro chifre do unicórnio, antídoto contra veneno ainda mais
eficaz que o bezoar), teias de aranha, óleo de minhocas, excrementos de boi, cavalo, ratos e até mesmo
fezes humanas. A clientela da época acreditava, decerto, que quanto mais secreta e cara fosse a composição
do remédio, mais positivo seria seu efeito.
O facultativo Semedo, porém, conforme reconheceu aos 80 anos, nunca ousou tomar as poções que elaborava
e não se constrangia ao atribuir sua longevidade a essa atitude cautelosa... Em sua defesa, contudo,
deve-se admitir a sua condição de ter sido um dos primeiros médicos europeus a adotar a eficaz quina
provinda da América do Sul no tratamento da malária. A casca tanífera rica em quinino foi levada para
Europa por padres jesuítas, que aprenderam a usá-la com os indígenas peruanos.
O projeto do Hospital Militar, 1797
Em São Paulo, de todo esse período, que vai do século XVI aos primeiros anos do XIX, só restou uma
planta arquitetônica a nos dar pálida ideia de como se organizavam os antigos hospitais construídos dentro
da tradição cultural portuguesa. Trata-se, em realidade, de um projeto não executado,
datado de 1797,
de autoria do engenheiro militar João da Costa Ferreira (1750-1822), destinado a um terreno junto ao futuro
Jardim da Luz, onde depois seria erguido o prédio da atual Pinacoteca
do Estado.
O citado engenheiro português chegou à cidade de São Paulo em 1788 trazido pelo governador Bernardo
José Maria de Lorena (1756-1818) – este, antigo desafeto do terrível Marquês de Pombal (1699-1782),
e de quem diziam ser meio-irmão da rainha D. Maria I (1734 -1816), já que filho de D. José I (1714-1777)
e sua amante, a infeliz 4.ª Marquesa de Távora (1723-1790).
Costa Ferreira radicou-se em São Paulo e durante certo tempo foi considerado o único engenheiro militar
a quem se podia confiar obras de vulto, pois sua competência e talento eram plenamente reconhecidos pelas
autoridades portuguesas locais.
Durante o governo do Capitão-General Antônio Manuel de Castro e Mendonça
(1797-1802), projetou o Hospital Militar, cuja traça se acha hoje depositada no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (fig.2).
Fig.2 - Projeto do Hospital Militar de São Paulo, autoria do
engenheiro militar João da Costa Ferreira (1750-1822), 1797.
Acervo Arquivo Ultramarino de Lisboa.
Por estar localizada a Capitania de São Paulo em área contígua às fronteiras das colônias hispano-americanas
meridionais, e por Portugal e Espanha manterem acirradas disputas territoriais nessa região, achou
Castro e Mendonça conveniente fundar um hospital militar para as tropas estacionadas na cidade de São Paulo.
O extenso edifício hospitalar chegou a ser iniciado, mas a obra foi logo abandonada, possivelmente em
razão do alto custo não só de sua execução, como da manutenção que exigiria o hospital quando estivesse
em funcionamento. Obviamente divergia sob determinados aspectos dos outros hospitais, mais antigos,
erguidos em território do império português. Por já datar do período iluminista, fatores de racionalização
decerto atuaram em seu plano, tornando a distribuição interna do hospital mais lógica, funcional e prática.
Engenheiro formado na Real Academia Militar, Costa Ferreira iniciara sua carreira após o terremoto de Lisboa de
1755, na reconstrução da Baixa Pombalina, sob as ordens do engenheiro Joaquim Monteiro de Carvalho (17?-1780).
Depois trabalhou com um engenheiro militar inglês, o Tenente-Coronel William Elsden (ativo entre 1762-1779),
que em Portugal tivera destaque ao idealizar e construir obras arquitetônicas de tendências ecléticas,
palladianas e até neogóticas (como era o caso do Palacete de Monserrate I, em Sintra). No edifício do
Gabinete de História Natural de Coimbra (1779), hoje Departamento de Zoologia da Universidade dessa cidade
e Museu Zoológico, Elsden concebeu um prédio de estilo fundamentalmente palladiano, de nítida influência inglesa,
mas com toques da arquitetura portuguesa do século XVII.
Construção cujas características formais ecoariam
no frontispício do Quartel dos Voluntários Reais de São Paulo, datado de 1790, de acordo com o projeto de Costa
Ferreira hoje conservado no Arquivo Histórico do Exército, do Rio de Janeiro.
No Brasil, Costa Ferreira tem sido visto como introdutor da arquitetura pombalina em São Paulo, ou
até mesmo do Neoclassicismo na cidade, mas essas opiniões devem ser revistas hoje à luz do que nos
ensinam historiadores portugueses mais recentes.
Em fins do século XVIII, ainda não existia propriamente
arquitetura neoclássica em Portugal. Havia, sim, um clima eclético, em que várias tendências arquitetônicas
europeias setecentistas se entrecruzavam, materializando-se em projetos híbridos, em que se mesclavam
elementos tardorrenascentistas, barrocos e classicistas de várias procedências (portuguesa, inglesa,
italiana e francesa, entre outras).
Quanto ao estilo pombalino, a historiografia especializada
restringe hoje o uso dessa denominação ao tipo muito específico de arquitetura empregada pelos
engenheiros militares portugueses na reconstrução de Lisboa após o terremoto de 1755, da qual a rigor
nunca existiram exemplares em São Paulo. Na verdade, Costa Ferreira, como todo bom engenheiro militar
português, formara-se, do ponto de vista arquitetural, no pragmatismo e funcionalismo típico da escola
tradicional dos engenheiros militares lusitanos. Profissionais que, nos derradeiros anos do século XVIII,
de maneira eclética e empírica, a um tardorrenascentismo fundamental, aprendido na Real Academia Militar,
mesclavam sóbrios barroquismos ou elementos de tendência classicista, experiências outrora apressadamente
interpretadas por críticos de arte e arquitetura brasileira ora como precoces manifestações locais do Neoclassicismo,
ora como nítidos testemunhos do estilo pombalino.
No caso do hospital proposto por Costa Ferreira em 1797, a fachada principal não passava de um longo piso único
com 28 aberturas de extensão. (Os degraus que conduziam à porta de entrada demonstram que a construção dispunha
de porão, cuja serventia seria manter o assoalho afastado do solo úmido e insalubre.) A composição arquitetônica
da fachada traía uma concepção estilisticamente ambígua. Nas extremidades, viam-se dois corpos ressaltados com
três janelas quadrangulares em cada um deles e na parte central se destacava um corpo em forma de edícula,
coroado com um seco frontão triangular. A essa estrutura, que à primeira vista poderia ser tida como
neoclássica, se contrapunham, porém, três aberturas centrais, providas de arcos abatidos. A porta central
chegava mesmo a apresentar no lintel um detalhe decorativo (algo como um recorte em forma de meia-lua)
que aludia à tradição dos frontões curvos interrompidos, pormenores – tanto os arcos abatidos quanto o
frontão interrompido – como se sabe, típicos da arquitetura barroca.
Planejado como um amplo edifício em quadra – a ser construído decerto de taipa de pilão, como era
então usual na região paulista –, a planta apresentava uma bem definida organização interna, procurando
reunir atividades afins em cada ala, de acordo com a orientação solar mais favorável. Muito embora a
clima da cidade de São Paulo no século XVIII fosse muito distinto do atual, com dias bem mais frios e
úmidos, salta à vista que a distribuição funcional do hospital obedecia de maneira geral ao critério da orientação solar.
Correspondente ao frontispício, a ala voltada para leste, por ser beneficiada pela osculação solar
atinal, era sem dúvida julgada como a face mais saudável. Tinha acesso centralizado, dando para um
“Salão de Entrada”. À esquerda desse vestíbulo (em relação ao observador), desenvolviam-se a “Enfermaria
dos presos”, a “Enfermaria dos inferiores, e particulares”, a “Enfermaria dos feridos”, terminando no canto
com a área destinada à “Convalescência”. À direita, concentravam-se os compartimentos ocupados pela
“Sala de Cirurgia”, pelo aposento do oficial de dia e pelos alojamentos dos funcionários residentes,
o ajudante de enfermeiro-mor e o enfermeiro-mor, este último então considerado como o chefe da instituição
hospitalar. Os citados alojamentos compunham-se de dois apartamentos de tamanhos desiguais, mas com as
mesmas divisões: sala, “camerim”, “Camera” e cozinha. Viam-se ainda em sequência: a “casa da fazenda”,
que interpretamos como sendo o setor administrativo do hospital; a “saleta da livraria”, correspondente
à biblioteca especializada, e a “botica”, onde seriam preparadas as fórmulas farmacêuticas, depois ministradas aos doentes.
Na ala voltada para o sul, desprovida de osculação solar direta, em continuação com a sala dos
convalescentes (ala leste), mas sem nenhuma comunicação com este compartimento, localizavam-se
duas enfermarias separadas. A menor, dedicada ao tratamento dos atacados de sífilis (“Enfermaria do Gálico”),
seguramente um dos grandes males da época, e a maior, destinada ao cuidado dos acometidos de febres
(“Enfermaria das Febres”), onde seriam acomodadas as vítimas das doenças infectocontagiosas mais comuns
do mundo colonial. Havia aliás uma razão médica precisa para que esses pacientes fossem acolhidos na
parte que não recebia irradiação solar direta; afinal, é sabido que ambientes frescos contribuem para
que as hipertermias não atinjam temperaturas muito elevadas. O médico João Curvo Semedo, já citado,
“aquela glória puríssima da medicina lusitana setecentista”, no dizer irônico do historiador Afonso
d’Escragnolle Taunay (1876-1958), recomendava em seu Polianteia Medicinal (1697), algo que hoje soaria quase como um truísmo:
A ala voltada para o norte, mais ensolarada e seca durante o inverno, ocupava a metade da extensão desse lado da quadra.
Aí se abrigavam o “Armazém das Drogas”, depósito das substâncias medicamentosas que seriam manipuladas na botica,
a “Aula”, decerto uma sala de conferências médicas e reuniões, e o “Laboratório químico”. O armazém e o laboratório
certamente muito se beneficiariam com sua localização na parte norte do edifício, pois assim os fármacos empregados
na composição das receitas ficavam menos sujeitos à deterioração causada pela umidade. Ainda nessa mesma ala,
mas na face voltada para o sul, existiriam outras dependências, entre as quais uma sala de jantar e uma cozinha,
decerto destinadas ao pessoal mais qualificado do hospital. Depois do laboratório, abria-se uma área reservada
aos escravos da botica e a outros escravos, que trabalhavam em setor distinto. Nota-se aí a presença de uma bateria de
“comuas”, ou seja, latrinas, identificadas pelos típicos orifícios circulares abertos em laje de pedra, separadas
duas a duas e reservadas, provavelmente, a escravos que serviam em divisões diferentes da instituição.
Por fim, a ala orientada para o oeste, desconfortável sobretudo durante o verão pela exposição ao sol forte
da tarde, era destinada à parte de serviços. Tratava-se de uma ala também de pouca extensão, cujo
comprimento era praticamente igual à metade do lado maior da quadra. Estava separada do corpo das enfermarias,
ao sul, por um estreito corredor externo. Na extremidade oeste da ala sul, haveria um espaço destinado a galinheiro,
necessário ao fornecimento das carnes brancas usadas no preparo das dietas à base de caldos e canjas em geral prescritas
aos doentes em estado grave. Para esse corredor externo dava a “comua dos doentes”. Pegada a ela, com porta voltada para
a parte posterior (face oeste), via-se o depósito da madeira usada como combustível nas diferentes cozinhas existentes
no hospital (“Casa da Lenha”). Contígua à latrina dos doentes, estava a “Casa dos mortos”, ou necrotério, com porta
voltada para leste; depois, vinham a “Casa de Banhos”, com entradas para ambas as extremidades, leste e oeste, e a
ampla “Cozinha” com um fogão de alvenaria central. Em continuação, via-se a “Enfermaria dos Escravos”, cujos pacientes
ficavam aparentemente relegados a um canto bastante desconfortável do edifício. Mas nesse compartimento só a entrada
daria para o lado oeste; as duas janelas gradeadas voltavam-se de modo providencial para leste, acolhendo a amena
insolação das manhãs. Depois se seguiam a despensa, com janelas abrindo para leste, para que não se estragassem
os mantimentos com facilidade; a “Casa dos escravos serventes”, com aberturas voltadas para oeste (estes aqui
bem prejudicados, ao menos que se considere que os negros saudáveis, por sua constituição física, apresentem
maior tolerância ao calor); a “Casa de Anatomia”, onde eram feitas dissecações, com vãos prudentemente virados
para leste, tal como os do necrotério, com o propósito de retardar a decomposição dos cadáveres que tivessem
de ser examinados; e, finalmente, as “Comuas dos particulares”, cuja entrada deitava para o norte, com uma
pequena abertura voltada para oeste. A orientação prevista para essa última dependência parece-nos muito
inconveniente, pois, supomos que, sendo as latrinas do hospital providas de fossas negras, as localizadas
a oeste deveriam com o calor do verão tresandar fartamente, em razão da fermentação dos dejetos acumulados no fundo das fossas.
Com relação às enfermarias, vemos que se tratava de grandes aposentos de forma oblonga, onde em geral estavam
dispostas repartições menores, feitas certamente de material leve, pau a pique, por exemplo. Em hospitais
portugueses medievais, essas repartições se chamavam “câmaras abertas”, porque, desprovidas de portas,
eram destinadas a um ou dois doentes ao mesmo tempo.
No caso aqui examinado, nas enfermarias dos presos
e dos escravos não se via esse gênero de cubículos certamente por uma questão de segurança, ficando os presos
e os escravos, ao que parece, em leitos dispostos no espaço comum de suas respectivas enfermarias.
Como na planta identificamos 58 repartições, isso nos faz supor que a capacidade de atendimento do hospital
em relação a pacientes militares estivesse limitada entre esse número e o seu dobro, ou seja, o
estabelecimento oferecesse aos militares até 116 leitos. Não devemos deixar ainda de notar que as
faces externas de três das alas do edifício (leste, sul e oeste), voltadas para o pátio interno,
eram protegidas por varandas, por meio das quais era feita a circulação entre os diversos recintos do hospital.
Esses elementos de circulação externa tinham também a função de garantir o conforto térmico das peças
dispostas ao longo das alas por eles servidos.
Hospital Militar, no Acu (1802)
Como já comentamos antes, o hospital concebido por Costa Ferreira não foi executado provavelmente por ter
sido considerado muito ambicioso para a época. O que se construiu para substituí-lo consistia num sobrado
bastante acanhado, com apenas dez leitos,
implantado em terreno localizado no Acu (atual Rua do Seminário),
no início da estrada da Luz; numa das saídas da cidade portanto (fig.3). Funcionou como hospital militar a partir de 1802.
Por um relatório oitocentista redigido pelo engenheiro militar José Jacques da Costa Ourique sabemos
que era provido de água a partir do encanamento proveniente do Tanque Reiuno.
Por instigação do governador Franca e Horta, que administrou a Capitania entre 1802 e 1811, o Hospital Militar, durante
certo tempo, recebeu e tratou dos pobres da cidade, já que a vida útil do hospital da Misericórdia fora breve,
resumindo-se a um intervalo de poucas décadas durante o século XVIII.
Fig.3 - Hospital Militar de São Paulo, construído no Acu e inaugurado em 1802.
Pormenor de aquarela de autoria de Debret, 1827.
Acervo Coleção João Moreira Garcez, São Paulo, Brasil.
No centro da ilustração vemos a construção grosseira do hospital, composta de dois corpos em ângulo obtuso,
acompanhando o alinhamento irregular da estrada. A fenestração diferente em cada corpo
indica que o edifício foi provavelmente erguido em duas etapas.
Fonte: Lago, Pedro Correa do. Iconografia paulistana no
século XIX. São Paulo: Metalivros, 1998.
Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), famoso botânico francês, fez sumária descrição desse edifício, que conheceu em 1819:
Por ocasião de minha viagem, o hospital militar ficava situado nas vizinhanças de Santa Efigênia [sic].
Uma escadaria dava acesso a ele, havendo no centro do prédio um pátio quadrado. Na farmácia, cuja porta dava
para a rua, vendiam-se remédios ao público, em benefício do hospital. A farmácia era grande, muito limpa e
bem organizada, encontrando-se nela um sortimento completo de medicamentos.
O historiador Afonso Taunay analisou dois regulamentos elaborados para o hospital do Acu
(datados de 1805 e de 1814) e outros documentos relativos a essa instituição. Suas considerações são de
grande valia para nós, porque nos dão conta do que se passava naquele estabelecimento
hospitalar.
De acordo com o primeiro regulamento, de autoria do Dr. Mariano José do Amaral, o pessoal superior do hospital
seria composto de um inspetor, seu ajudante, um escrivão, além dos necessários enfermeiros, serventes e cozinheiros.
Duas seriam as enfermarias, a de medicina e a de cirurgia, onde os pacientes só poderiam ser visitados mediante
ordem expressa do físico-mor. Três tipos de dietas estariam à disposição dos pacientes, sendo distribuídas conforme
o estado de saúde de cada um dos enfermos ( lembremo-nos de que as dietas nesse tempo não eram consideradas
apenas um regime alimentar adequado, mas tinham lugar fundamental no tratamento dos doentes, pois a cura muitas
vezes deveria vir da administração de certos alimentos específicos, vistos como tão eficazes quanto qualquer
medicamento). Os estudantes de cirurgia seriam obrigados a percorrer a enfermaria de medicina. (Até então
havia total separação profissional entre cirurgiões e médicos. Os primeiros eram considerados simples
oficiais mecânicos, enquanto os segundos, profissionais liberais. Até muito depois da reforma da
Universidade de Coimbra, ordenada em 1772 pelo Marquês de Pombal, os médicos continuaram pouco ou nada
entendendo de cirurgia e anatomia. Por seu turno, os cirurgiões, formados na prática, desconheciam os
princípios teóricos da ciência médica. No Brasil, a primeira escola de cirurgia foi estabelecida em 1801 em
Vila Rica, a segunda em 1803 no Hospital Militar de São Paulo, e no Rio de Janeiro foi criado um curso
semelhante por D. João em 1808, no mesmo ano em que foi fundada uma escola médica em Salvador). Deviam
os estudantes de cirurgia ser internos do hospital e fiscalizar sobretudo a alimentação e o asseio dos
pacientes. Deveriam prestar toda a atenção às operações de cirurgia, partos (nos casos de atendimento a
grávidas indigentes encaminhadas pela Misericórdia, decerto), extração de dentes e sangrias.
Ao darem entrada no hospital, teriam os doentes de lavar pelo menos os pés e vestir roupa limpa, antes de se
deitarem nas camas, arrumadas com lençóis lavados. A varrição das enfermarias seria diária. E na cabeceira
de cada leito estaria pregada uma papeleta onde estariam assentadas a data de entrada do enfermo, a
dieta e a medicação receitada.
Em 1811, longo relatório foi enviado pelo físico-mor Dr. João Álvares Fragoso ao Conde de Linhares (1755-1812),
denunciando o estado lastimável do Hospital Militar de São Paulo. Sérias deficiências foram apontadas na ocasião.
Não havia camisolas para os pacientes, quase sempre trazendo uma só e muito suja. Quando era necessário lavar
tal peça ficavam os enfermos nus estendidos sobre os enxergões. Os banhos eram administrados em gamelas.
E não havia púcaros para a água, escarradeiras e urinóis de vidro (os existentes, de barro, absorviam a urina,
conferindo uma atmosfera insuportável às enfermarias). Também não havia apisteiros (pequenos vasos dotados de
bico por onde bebiam os doentes graves), nem comadres, nem seringas para clisteres. Não era feita nenhuma
separação ou isolamento entre os doentes. A assistência religiosa era também deficientíssima, pois não havia capelão fixo.
Só dois médicos trabalhavam no hospital: o físico-mor e o cirurgião-mor da Capitania. O instrumental
cirúrgico era praticamente nulo: três bisturis, uma ou outra lanceta, pente (?), agulha, faca e
torniquete. Apenas as operações que podiam ser executadas com esses instrumentos elementares eram realizadas,
as demais ficavam por ser feitas. O estado da farmácia hospitalar em tudo combinava com o resto; de fato,
estava completamente desaparelhada.
O verdadeiro superintendente do hospital era o almoxarife (pessoa protegida do governador). E esse funcionário
não se preocupava minimamente em mandar proceder à limpeza das enfermarias. Nem vidros existiam nas janelas
do edifício, o que, deduzimos, favorecia as correntes de ar, tão nocivas aos pacientes do hospital no entender da época.
Em resumo, era impossível pior situação que a do Hospital Real Militar de São Paulo, onde inexistiam enfermarias
especiais para os doentes de gálico, sarna e de febres. Ninguém cuidava das roupas dos doentes, nem se preocupava
tampouco em desinfetá-las por meio de perfumes.
Tentou o governador Franca e Horta rebater ponto por ponto as acusações do físico-mor. Entre as alegações
apresentadas, afirmou, acerca da falta de vidros nas janelas do edifício, que não existiam vidros planos
à venda no comércio da cidade. Tivera de mandar buscar placas de malacacheta em Goiás, mas o oficial enviado
falecera em viagem. Quanto ao número de leitos oferecidos no hospital, não era absolutamente verdade que havia
apenas dez; de fato, eram cem as camas e catres que se achavam à disposição da instituição.
A crise desencadeada pelas denúncias do físico-mor foram superadas graças ao fato de o caso haver sido entregue às
mãos do físico-mor do exército de Portugal, que em 11 de outubro de 1811 enviou seu parecer “dirimidor da áspera
contenda”. O governador, no entanto, logo a seguir passou o cargo ao sucessor, enquanto o Dr. Fragoso, denunciante,
continuou no exercício de suas funções médicas.
Em 1814, confeccionou o Dr. Fragoso o regulamento para os hospitais militares da Capitania de São Paulo. Da leitura
do longo e extremamente detalhado documento, Taunay concluiu que o autor “era homem de inteligência aberta aos
progressos e conquistas da ciência e da higiene”.
O regulamento então elaborado enunciava as exigências de farta roupa branca de corpo e de cama, vasilhame
considerável para as refeições, a bebida e as dejeções dos pacientes. Só urinóis de vidro poderiam ser empregados
no hospital e as seringas de clisteres deveriam ser fabricadas de estanho ou borracha (isto é, feitas de couro
costurado como os odres bojudos desse nome). Todas as enfermarias teriam candeeiros cobertos com um capitel
terminando por tubo particular ou comum com o objetivo de conduzir o fumo preto produzido pela combustão do
óleo de iluminação para o exterior do prédio. Um requinte que zelava pela pureza da atmosfera das enfermarias,
mas provavelmente nunca adotado pelos hospitais paulistas. Disporia também o hospital de relógio, barômetro
e termômetro para que os facultativos fizessem as observações médicas necessárias. As enfermarias de febres
seriam separadas das demais para evitar o contágio entre os doentes de outras moléstias. As enfermarias de
doenças cutâneas e venéreas estariam permanentemente isoladas. Nas dos febrentos seria observada uma distância
de 1m32 (quatro pés) entre os leitos. Entre as camas dos impossibilitados de ir às latrinas, localizadas talvez
a grande distância, existiriam caixas de retrete hermeticamente fechadas e sempre no mais rigoroso asseio.
Todas as enfermarias e as privadas seriam caiadas duas vezes por ano com cal virgem e água. Os pavimentos,
lavados com água de cal (suspensão alcalina tida então como um desinfetante universal). As tinas de banho
seriam mantidas em carretas perfeitamente limpas. As de uma enfermaria não poderiam ser usadas em outra,
sob pena de punição dos empregados. A água servida dos banhos seria despejada nas latrinas. Era proibido
perfumar as enfermarias com alfazema ou qualquer outra substância, pois estes desodorantes só serviam para
tornar o ar das enfermarias menos puro. Em lugar de perfumes, deveriam ser usados vapores de ácidos acético,
muriático e nítrico, considerados mais eficazes. A roupa dos pacientes infectados tinham de ser tratadas com
vapores de enxofre e de ácidos minerais, para se obter a correspondente desinfecção.
As enfermarias seriam arejadas antes e depois das visitas médicas e os curativos, sendo varridas duas vezes por
dia. A das febres e a das sarnas seriam varridas antes mesmo da chegada dos médicos. Quanto ao trem de cozinha,
Dr. Fragoso estabeleceu que poderiam ser de ferro ou de barro, mas nunca de cobre, pois esse metal, além de
dispendioso, podia ser prejudicial e até fatal à vida de doentes e dos empregados do hospital (em razão
da eventual presença do azinhavre, resultante da oxidação do metal).
Concordamos plenamente com Taunay: os dispositivos aqui transcritos do Regulamento de 1814 são suficientes
para demonstrar o empenho do físico-mor “em dotar os hospitais da capitania de legislação capaz de competir
com a dos centros mais adiantados do Universo.” Só restaria saber se foram realmente acatadas, e por quanto
tempo observadas as suas prescrições pelas instituições hospitalares paulistas. De nossa parte, suspeitamos
que não tenham sido cumpridas por muito tempo. No entanto, não deixa de ser uma prova circunstancial a
favor do bom funcionamento do estabelecimento a ordem e o asseio que Saint-Hilaire encontrou na farmácia
do hospital em 1819. Até essa data, pelo menos, é possível que o nosocômio tenha funcionado efetivamente
com a mais perfeita regularidade, tal como estipulado pelo criterioso Dr. Fragoso.
Mais tarde, o edifício do Hospital Militar foi ocupado pelo quartel do 7.º Batalhão de Caçadores, e, em 1833,
pelo Seminário das Educandas da Glória.
Sua construção, nada atraente, sobreviveu até inicio do século XX,
quando foi erigido no local o atual prédio do Palácio dos Correios e Telégrafos (1920-1922).
Continua >
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Para citação adote:
CAMPOS, Eudes. Hospitais paulistanos: do século XVI ao XIX.
INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 6 (29): abr/jun.2011.
<http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>
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