Hospitais paulistanos: do século XVI ao XIX
Eudes Campos
Pesquisador da
Seção Técnica de Estudos e Pesquisas
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Segunda metade do século XIX - Primeira República
O alvorecer do período asséptico
O hospital da Misericórdia construído no Arouche distinguia-se dos demais hospitais paulistanos até então construídos,
não só por sua arquitetura, de inédito estilo gótico e baseada em princípios higienistas, mas pelos novos cuidados
médicos que passaram a ser aplicados em suas dependências. Pelo programa de necessidades, vemos que já havia um
médico residente no hospital a se dedicar integralmente aos pacientes, ao contrário do que acontecia antes,
com os médicos fazendo apenas rápidas visitas aos doentes, entregues durante o resto do dia nas mãos de
funcionários pouco competentes. Na Misericórdia, desde 1872, o tratamento dos enfermos estava a cargo das irmãs
de São José de Chambéry, irmãs de caridade pertencentes a uma congregação de origem francesa. E a partir dessa
data os melhores facultativos de São Paulo estariam frequentando as enfermarias da Santa Casa como membros do
corpo médico hospitalar.
Em 1890, Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho (1867-1920) foi nomeado médico do hospital. Logo alcançaria o cargo de Diretor
Clínico, no qual se manteria até sua morte em 1920. Considerado o maior cirurgião paulista de seu tempo, sua
admissão na Misericórdia coincidiu com as primeiras cirurgias antisséticas realizadas na cidade. Essas operações
usavam o clorofórmio como anestésico e, conforme o testemunho de época, eram realizadas sob uma chuva de vapores
fenicados, lançada por vaporizadores de Lister. Médicos e doentes ficavam banhados em soluções fenicadas e boricadas,
em razão do zelo antissético que vigorava então. Zelo só mais tarde atenuado, com o melhor conhecimento dos micróbios e
do organismo humano.
De acordo com o historiador Nikolaus Pevsner (1902-1983),
respeitáveis obras europeias dedicadas à arquitetura hospitalar
persistiriam na defesa do sistema pavilhonar ainda na passagem para o século XX. Ou seja, esse tipo de partido continuou
legítimo, mesmo após a aceitação generalizada pela classe médica da teoria microbiana de transmissão de doenças. Muito
embora os últimos 30 anos do século XIX tivessem sido cruciais para a consolidação da teoria germinal das doenças
infecciosas – cujas pesquisas avançaram ao longo do século XIX, mas só se tornaram incontestáveis a partir das
descobertas de Louis Pasteur (1822-1895) e Robert Koch (1843-1910) –, os partidos hospitalares inventados nos tempos
das teorias neo-hipocráticas continuaram válidos por décadas. As necessidades de constante ventilação e renovação de
ar tanto no interior, quanto no exterior das instalações hospitalares, não foram alteradas imediatamente com as novas
descobertas científicas, mesmo porque os resultados da profilaxia então adotada eram realmente positivos.
Persistência dos hospitais de partido higienista
Hospital Militar (1895-1899)
Exemplo disso foi o projeto e construção do Hospital Militar (1895-1899), erguido no bairro da Luz em seguimento ao
Quartel dos Permanentes (1887-1892), ambas as construções de autoria do engenheiro e arquiteto Francisco de Paula
Ramos de Azevedo (1851-1928). Este arquiteto, por exemplo, insistiu na organização pavilhonar do espaço hospitalar
da Luz, o mesmo acontecendo com o hospício do Juqueri (1895-1898), também de sua autoria. Em ambos os casos, as
enfermarias abrigavam-se em pavilhões independentes, dispostos paralelamente, separados por amplos jardins e
interligados por meio de frágeis galerias, apenas cobertas, sustentadas por delicadas estruturas metálicas.
A única alteração feita no partido pavilhonar tradicional era que, com a proclamação da república brasileira,
de caráter laico, havia sido suprimida a presença das capelas nos hospitais diretamente submetidos à
administração governamental (fig. 22 a 25).
Fig.22 - Planta do Hospital Militar. Projeto do engenheiro e arquiteto
Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1928), datado de 1895.
Fonte: CARVALHO, Maria Cristina Wolff de. Ramos de Azevedo.
São Paulo: EDUSP, 2000.
Fig.22 - Aspectos externos do Hospital Militar.
Fotografias de autor desconhecido, c. 1899.
Fonte: CARVALHO, Maria Cristina Wolff de. Ramos de Azevedo.
São Paulo: EDUSP, 2000.
Fig.25 - Aspectos internos do Hospital Militar (1895-1899), de autoria de Ramos de Azevedo (1851-1928),
segundo ilustrações publicadas na Revista Médica de S. Paulo.
Notar a enfermaria com a abóbada ogival preconizada por Casimir Tollet.
Acervo Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP.
Na Revista Medica de S. Paulo, datada de agosto de 1899, lê-se o memorial descritivo do Hospital Militar
preparado por Ramos de Azevedo. É longo e bastante minucioso, e o que chama a atenção nesse documento é
que a meticulosidade revelada pelo autor na luta contra a contaminação do espaço hospitalar tem fundamento
nas superadas teorias neo-hipocráticas de contágio, enquanto a prática médica da época já se baseava na teoria
microbiana. Apesar de extenso, é muito proveitosa sua leitura integral:
O serviço hospitalar para abrigada policial do Estado vae em breve ser estabelecido em edifícios proprios,
construidos nas immediações do quartel da Luz, sobre a collina delimitada pelas ruas João Theodoro e Jorge
Miranda, praça de manobras e asylo de morpheticos (terrenos).
A situação é levada e secca; o sólo, de constituição arenosa, afferece suave declividade para os flancos e fundo,
facultando facil enxugo á area do recinto e aos seus arredores.
Nenhum estabelecimento insalubre, nem pantano, ou elemento de viciamento da atmosphera, prejudica-lhe a collocação.
A exposição da localidade e a natureza de occupação dos vastos terrenos que a circundam, asseguram-lhe ventilação
efficaz, sem que a sua acção possa contaminar bairros povoados da cidade. A superficie comprehendida em o recinto geral,
com 26.450 metros quadrados, permitte a creação de uma zona sanitaria e isoladora para as habitações mais proximas,
em caso algum inferior a 40m.
A grande praça sobre que se abre o principal ingresso do estabelecimento e as largas ruas, sem accidentes, que para
ellas conduzem, proporcionam accesso corrente e commodo a todo o serviço que lhe possa interessar. As maiores
distancias aos casernamentos da brigada não excedem de 300 metros de distancia.
O hospital deverá offerecer capacidade para tratamento de 200 doentes, em condições ordinarias, quando
forem completadas todas as suas secções. Os edificios formam tantos blocos separados, quantos os serviços diversos.
O conjuncto das construcções accasiona um grupo de 13 pavilhões, dos quais 9 dispostos em torno de grande área central
de serviço, a saber:
1.º Administração com as salas de consulta, de operações cirúrgicas, de rouparia, de vestiario e de habitação
para o interno e o enfermeiro.
2.º Economia com as lavanderias, salas de repassagem de linho, deposito de viveres.
3.º Hydrotherapia com o gerador de vapor para aquecimento, banhos simples e medicinaes, sala de registros da canalisação, etc.
4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º e 9.º Enfermarias para soldados e inferiores, e seus annexos; sala de convalescentes, etc.
Destacam-se em situações isoladas.
10.º Enfermaria de observação e suas dependências.
11.º Sala de autopsias e necroterio, com o arsenal cirurgico, etc.
12.º Corpo da guarda, com as camaras para o commandante e praças.
13.º Habitação do porteiro.
As duas ultimas construções flanqueiam o portão de ingresso geral.
As enfermarias, constituindo a parte essencial do estabelecimento, deram assumpto para detido estudo, no
intuito de assegurar aos doentes as condições de hygiene e conforto mais favoraveis ao restabelecimento.
Em typo uniforme são ellas providas dos recursos necessarios ao seu funccionamento independente.
As grandes salas de tratamento, de forma rectangular, tem os seus longos lados desembaraçados á luz e á ventilação.
As diversas peças, ou camaras de serviço, foram grupadas nas duas extremidades em secções baixas, de modo a não
impedirem a abertura de grandes frestas nas topas [sic, por topos] das enfermarias.
Cada pavilhão comporta dous pavimentos superpostos que offerecem a capacidade total de 33 leitos, sendo:
No 1.º pavimento, 6 leitos para convalescentes; no 2.º pavimento, 20 leitos na sala geral, 6 leitos na sala de
inferiores, 1 leito em camara isolada.
O pavimento inferior, estabelecido sobre abobadas de alvenaria, tem 0m,80 de elevação do solo e deste se acha
isolado por meio de materiaes impermeaveis.
O seu pé direito é de 3m, 60 em muros largamente vasados para o exterior.
No intuito de não sotopôr camaras de habitação ou de serviço á grande sala de tratamento, toda a secção correspondente
á sua projecção, de 150 metros é consagrada a passeio abrigado dos convalescentes, cujos
dormitorios e dependencias são installladas nos topos dos pavilhões.
O pavimento alto assenta ainda em abobadilhas de tijolo sobre armadura metallica, a 4m, 40 acima do sólo.
A grande sala é coberta por um berço ogival com altura de 1m, 50 sob a chave.
Aos flancos reinam galerias altas, para onde se faz a communicação por cinco grandes janellas de cada lado,
constituindo ellas o prolongamento da enfermaria para tratamento ao ar livre, em periodo de calma.
O assoalho é estabelecido sobre camada de asphalto permitindo rigorosa antisepsia em toda a superfície. Os muros
são revestidos e pintados a cal em todas as secções dos edifícios, guarnecendo a parte inferior uma barra de 2m, de altura
em pintura de esmalte.
A ventilação se acha largamente provida, directamente por janellas com a superfície total de 480 metros quadrados,
guarnecidas de persianas e de caixilhos moveis.
Ao alto da abobada de coroamento reina uma bateria de ventiladores em correspondencia com orificios na base das janellas,
que asseguram uma secção de aspiração de 0.0016 a cada sala. Entre a abobada e o telhado a tiragem é determinada pelo aquecimento solar, e esta acção annula em absoluto a influencia de seu gerador sobre a temperatura interior.
As salas têm de comprimento 20 metros sobre 7m,5 de largura, ou a área de 150 metros quadrados.
A cada leito é, pois, attribuida a superfície de 7,5 metros quadrados, não contando o supplemento de 5m correspondente
aos balcões das galerias exteriores.
A secção transversal é de 48 metros quadrados, que em 20m. proporciona a capacidade de 960 metros cubicos ou 48 metros
cubicos a cada leito. A superfície vidrada se compõe de 10 janellas com 4m2 80 cada uma e de 2 oculos com 1m2 76,
ou de 51m2 50 na totalidade, ou cerca de 1/3 da superfície da sala. Em appendice, a uma das extremidades de cada pavilhão,
acha-se reservada uma camara para tratamento de officiaes e inferiores, com capacidade para seis leitos.
A ambas estas peças são attribuidas, independentemente, apparelhos de hygiene, providas dos recursos das modernas installações.
Completam as dependencias das enfermarias, camaras especiaes para o preparo de tisanas, para pernoite do enfermeiro de serviço
e para a permanencia dos doentes graves.
A esta ultima são adaptados apparelhos mecanicos de descenção para cadaveres.
D’esta arte são poupados aos doentes os incidentes da agonia dos que succumbem e o apparato do serviço mortuario e de
remoção de despojos de companheiros da vespera.
As enfermarias, orientadas a N. S. offerecem successivamente as suas longas faces ao aquecimento solar. O intervallo
de duas enfermarias (26,m de eixo a eixo) é assaz grande para que a sombra de uma possa attingir a base da outra, de 8
horas da manhã até 4 da tarde.
Os annexos de serviço, com saliência sobre os alinhamentos de flanco das grandes salas, protegem efficazmente
os seus topos contra os ventos reinantes de S. E. e N. O.
A superfície dos muros em contacto com o ar confinado é de 618 m.2 e a de contacto com o ar exterior, de 558 metros quadrados.
A relação entre a área de absorpção e a de saneamento é, pois de 9 para 10, condição raras vezes attingida pelas melhores salas
de tratamento nos modernos hospitaes.
A rede de esgotos, correspondente aos serviços de cada enfermaria é dotada de apparelhos especiaes e independentes,
de ventilação corrente, de camaras de visita e de desinfecção e de syphões obturadores em todos os orifícios de junção e de carga.
A illuminação será mininstrada por baterias de lampadas electricas incandescentes, cuja energia se alimentará na grande usina do Estado,
installada nos terrenos do quartel da Luz; de tal sorte serão evitados os inconvenientes graves, de viciamento do ar pelos combustores
proprios a outras especies de luz.
A casa da Administração occupa toda a face anterior do patio de serviço e, em dous pavimentos superpostos, offerece
amplas accomodações aos trabalhos de direcção e ás dependências do serviço medico.
Assim é que, gabinete cirurgico, laboratorio attinente, etc., ahi foram estabelecidos em tres salas do pavimento terreo,
em direta communicação com as galerias que conduzem ás enfermarias geraes.
As salas de vestiario e de rouparia são dispostas em contiguidade com aquellas, de modo a facilmente satisfazerem ao serviço dos doentes.
A administração, os gabinetes dos internos e enfermeiro-chefe, etc., são installados no pavimento alto, correspondendo ás
galerias que conduzem directamente ás salas de enfermaria.
A casa destinada á Economia comporta no plano terreno os serviços de lavagem de linho, o armazem de provisão e uma sala
de guarda. No pavimento superior, a cosinha, sala de distribuição de rações, camara de guardas, etc.
As rações serão distribuidas nas infermarias [sic] e nos refeitorios geraes, em caixas apropriadas sobre carros silenciosos,
que percorrerão todas as dependencias do estabelecimento. Os apparelhos destinados aos diversos serviços da secção
foram proporcionados á lotação maxima do estabelecimento, e responderão amplamente ás respectivas exigencias.
A secção hydroterapica (não concluida), deverá ser provida dos elementos para uma boa sala de duchas, para camaras de
banhos simples e medicinaes, para banhos de vapor, e para uma pequena piscina.
O aquecimento geral será promovido por gerador de vapor, alojado no sub-solo, attingindo aos banheiros diversos das enfermarias.
A enfermaria de observação (não iniciada) deverá ter espaço para dous leitos e disporá dos accessorios indispensaveis á inspecção
rigorosa; apenas comportará um pavimento com uma pequena elevação acima do solo. A sua situação será de accesso mais difficultoso,
em condições de afastamento dos demais edificios.
O necroterio terá uma camara de exposição, em contiguidade com a sala de autopsias. A capacidade desta é para duas
mezas de operação, independentes. Completam o pavilhão uma camara para o arsenal de cirurgia e uma dita para o medico.
O serviço mortuario dispõe de ingresso especial, fora das vistas das enfermarias e de suas dependencias.
A portaria é flanqueiada de dois pavilhões baixos destinados: um a habitação do porteiro; e outro, ao corpo dos guardas do edificio.
A grande área de ajardinamento, reservada em torno dos edifícios, virá complementar, pela sua benefica acção,
as condições de hygiene e de conforto, que se procurou realisar neste
Instituto.
Vemos assim que o projeto do hospital procurava atender precipuamente as necessidades de ar e luz, com garantias de generosa
ventilação contínua, tal com preconizado pela medicina higienista. Convém, por outro lado, notar que o estilo arquitetônico
do complexo hospitalar era medievalizante, tal como acontecia com o quartel da Luz. Torres e merlões serviam de signos
arquitetônicos para a fácil identificação do prédio com a função militar. Quanto às enfermarias, possuíam, como visto,
abobadas ogivais e grandes olhos de boi no alto dos arcos apontados, numa solução funcional ignorada por Pucci no
Hospital da Misericórdia, mas estudada e recomendada pelo engenheiro francês Casimir Tollet desde 1872.
Na verdade, Ramos de Azevedo neste projeto se inspirou fortemente na solução proposta pelo notável engenheiro francês
acima aludido (que, de fato, tinha formação de simples mestre de obras). A solução encontrada por Tollet foi
considerada tão eficiente que seu autor chegou a patenteá-la. A partir da Exposição Universal de 1878, em Paris,
a Sociedade Tollet foi contratada para a construção de uma dúzia de hospitais desse sistema em diferentes lugares da
Europa.
São muitos os pontos em comum entre o projeto do Hospital Militar de Ramos de Azevedo e a proposta padronizada de Tollet:
a adoção da organização pavilhonar para o estabelecimento hospitalar; a construção de enfermarias assentadas sobre
pavimento inferior e providas de falsas abóbadas ogivais; a presença de extensas varandas para distração e
recuperação dos doentes ao longo das fachadas laterais das enfermarias e o emprego de sistemas de circulação de ar
para o arejamento tanto do espaço interno da enfermaria, quanto do desvão entre a abóbada e o telhado.
A proposta higienista do engenheiro francês para enfermarias era tão eficaz que, segundo se afirmava, conseguira
reduzir a taxa de mortalidade hospitalar em 25 %.
O Hospital Militar de Ramos de Azevedo manteve sua função original até o final dos anos 1970, quando se mudou
para as atuais instalações da Avenida Cantareira, Invernada do Barro Branco, no bairro do Tucuruvi. Os antigos
edifícios do hospital foram então destinados a outras atividades, mas no inicio da década de 1980 decidiu-se,
irresponsavelmente, demolir a parte posterior de suas instalações originais, referentes a refeitório, enfermaria e
lavanderia. Hoje na parte subsistente se acham instalados o Museu Militar e o Centro de Aperfeiçoamento e Estudos
Superiores da Polícia Militar.
O Hospital de Isolamento (1892-1894)
Enquanto os hospitais projetados por Ramos de Azevedo recebiam elogios, a sede do Hospital da Santa Casa paulistana
sofria críticas desde 1885: carecia de um pavilhão isolado para tuberculosos, uma sala especial de operações,
fornos para desinfecção de roupas e uma maternidade que garantisse a saúde e o aumento da prole dos
trabalhadores imigrantes, conforme salientava o jornalista Rangel Pestana (1839-1903). Na ocasião,
o Dr. Barreto, convocado por uma comissão da irmandade, fez questão de frisar que a construção não deveria prosseguir
sem operar-se no plano geral da obra modificações que a colloquem de accordo com os principios
actualmente correntes sobre casas desta natureza.
A verdade era que os conceitos médicos mudavam rapidamente naqueles dias de revolução científica, sendo difícil acompanhá-los,
como também a cidade de São Paulo crescia a olhos vistos, tornando-se difícil planejar centros hospitalares para uma população
trabalhadora cujo número não parava de aumentar. Ramos de Azevedo demonstrou preferência pelo sistema pavilhonar,
longamente maturado no interior da cultura europeia sete e oitocentista, mas outros profissionais aderiam à cultura
hospitalar de mais recente tradição. Em 1902, um médico brasileiro ao descrever o edifício inacabado da Misericórdia
reparava que o melhor sistema hospitalar não era o pavilhonar, mas o que preconizava o total isolamento dos pavilhões,
então conhecido como sistema de barracas. Derivado dos conjuntos de barracas em que funcionavam os hospitais
militares de campanha montados durante a guerra da Criméia (1853-1856) e a Guerra Civil Americana (1861-1865), –
ou seja, quando ainda prevaleciam as teorias neo-hipocráticas –, esse partido passou a ser preferido na
Alemanha e usado especialmente para hospitais
de isolamento, tendo sido o escolhido para a realização do hospital deste gênero erguido no Araçá logo nos primeiros anos
da República.
A descentralização política promovida pelo sistema federativo adotado na república brasileira daria condições
para que o agora próspero Estado de São Paulo organizasse com autonomia o mais complexo aparato de serviço
público de saúde do País. A cafeicultura paulista expandira-se tanto nos últimos anos que o Brasil já controlava praticamente o mercado mundial do produto. Em contrapartida, o fluxo migratório, sempre crescente, destinado ao trabalho nas lavouras, mantinha-se continuamente fustigado por sucessivos surtos epidêmicos, agora sobretudo de febre amarela. Para enfrentar esse dramático problema de saúde pública, que poderia refletir negativamente no desempenho da principal riqueza econômica do País, havia sido formada a rede estadual de saúde paulista, que em 1892 se achava composta pelo Instituto Bacteriológico, pelo Laboratório de Análises Químicas e Bromatológicas, do Instituto Vacinogênico, pelo Laboratório Farmacêutico e pelo Hospital de Isolamento. Depois seriam criados o Desinfetório Central (1893) e o Instituto Soroterápico (1901), atual Butantã.
Anos depois da criação do hospital de autoria do engenheiro fluminense Inácio Wallace da Gama Cochrane,
o engenheiro baiano Teodoro Fernandes Sampaio (1855-1937) seria encarregado de construir novos pavilhões
para a ampliação do estabelecimento hospitalar, agora sob a administração do governo do Estado de São Paulo.
Como dissemos antes, o sistema então adotado foi o chamado sistema de barracas, segundo o qual todos os edifícios
ficariam completamente isolados uns dos outros, sem nenhum tipo de contato, nem sequer a presença de galerias
apenas cobertas que caracterizavam a tipologia pavilhonar. O objetivo era separar de forma radical os portadores
de diferentes tipos de doenças transmissíveis, para evitar o mútuo contágio.
Em 1900 a Revista Medica de S Paulo publicava um artigo sobre o Hospital de Isolamento. O conjunto hospitalar,
inaugurado em 1894, dispunha então de uma área de 50 hectares, dos quais dez ocupados pelos edifícios da administração,
pavilhões de doentes, diversas dependências e jardim.
À entrada, do lado direito, estava a casa do porteiro; à esquerda, o edifício da administração e farmácia.
Seguiam-se o Instituto Bacteriológico, onde eram estudadas as moléstias contagiosas, e os pavilhões para o
tratamento de doenças transmissíveis. Eram em número de cinco esses pavilhões (fig.26 superior).
fig.26
Fig.26 a 31 - Aspectos dos diferentes pavilhões do Hospital de Isolamento,
construídos pelo engenheiro
baiano Teodoro Sampaio (1855-1937), entre 1892 e 1894.
Zincogravuras de autoria de Theodor Wendt, publicadas
na Revista Médica de S. Paulo, em 1900.
Acervo Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP.
O de n. 1 era destinado aos doentes de difteria ou crupe diftérico. Tinha a aparência de chalé e compunha-se dos
seguintes compartimentos: sala do médico, sala e quarto dormitório das enfermeiras, quarto do servente, quatro
pequenas enfermarias com três leitos cada uma, gabinete e quarto de banhos do pessoal do pavilhão, gabinete e quarto
de banhos dos doentes e por último a copa (fig.27 superior).
O de n.2 era um grande pavilhão dividido em duas alas. Uma para o tratamento de febre tifóide e outra para o
tratamento de febre amarela. Cada ala estava composta de duas enfermarias, uma para homens e outra para mulheres,
havendo anexos a cada uma delas, quartos para doentes, que, por suas condições, não deveriam ser tratados em enfermaria
comum e mais um quarto destinado aos agonizantes. (fig.27 inferior).
fig.27
Fig.26 a 31 - Aspectos dos diferentes pavilhões do Hospital de Isolamento,
construídos pelo engenheiro
baiano Teodoro Sampaio (1855-1937), entre 1892 e 1894.
Zincogravuras de autoria de Theodor Wendt, publicadas
na Revista Médica de S. Paulo, em 1900.
Acervo Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP.
Unido a esse pavilhão dos doentes, havia outro abrigando dormitório e sala de refeição do pessoal, compreendendo
a copa, sala de distribuição de dietas, sala de refeição e quartos dormitórios do pessoal.
Em continuação a esse pavilhão, mas completamente independente, estavam a cozinha geral do hospital, o salão de
refeição do pessoal de serviço externo, que não tinham contacto algum com doentes, e os quartos dormitórios
destes mesmos empregados. Estas últimas peças estavam reunidas numa construção anexa acessível por meio de passadiço
coberto, que tinha por tapamento lateral grandes janelas intercaladas com painéis de venezianas, sistema que, ao
conferir ampla e permanente ventilação ao passadiço, evitava a contaminação da área de serviço (fig.31).
fig.31
Fig.26 a 31 - Aspectos dos diferentes pavilhões do Hospital de Isolamento,
construídos pelo engenheiro
baiano Teodoro Sampaio (1855-1937), entre 1892 e 1894.
Zincogravuras de autoria de Theodor Wendt, publicadas
na Revista Médica de S. Paulo, em 1900.
Acervo Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP.
O pavilhão de n. 3 era reservado aos enfermos de escarlatina e sobre ele já falamos ao tratar, páginas atrás,
do antigo Hospital de Variolosos (fig.28 superior).
O de n. 4 era consagrado ao tratamento de doentes de varíola, mas vinha sendo usado para doentes de peste
por não haver, havia tempos, epidemias de varíola, graças ao serviço regular de vacinação tornado eficiente a partir
da República. Compunha-se essa construção de quatro enfermarias e de seis quartos. Como os demais pavilhões, tinha
as mesmas dependências para o serviço em separado (fig.28 inferior).
fig.28
Fig.26 a 31 - Aspectos dos diferentes pavilhões do Hospital de Isolamento,
construídos pelo engenheiro
baiano Teodoro Sampaio (1855-1937), entre 1892 e 1894.
Zincogravuras de autoria de Theodor Wendt, publicadas
na Revista Médica de S. Paulo, em 1900.
Acervo Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP.
E por fim, o último pavilhão, de n.5, chamado de Classe. Era o primeiro a ser construído por esse modelo e
logo outros seriam erguidos, destinados todos eles a doentes de classe, que tinham de ser acompanhados pelas
respectivas famílias. Compunha-se de um vestíbulo e de duas alas completamente independentes, acomodando em
cada uma delas uma família e compostas por sua vez de salão, quarto de doente, dois quartos para família,
sala de jantar, cozinha, gabinete e banheiros, e uma área interna cercada de varanda para convalescentes (fig.29).
fig.29
Fig.26 a 31 - Aspectos dos diferentes pavilhões do Hospital de Isolamento,
construídos pelo engenheiro
baiano Teodoro Sampaio (1855-1937), entre 1892 e 1894.
Zincogravuras de autoria de Theodor Wendt, publicadas
na Revista Médica de S. Paulo, em 1900.
Acervo Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP.
Além dessas construções, o complexo hospital era composto de lavanderia, necrotério e cocheiras (fig.30). Todas as
edificações eram esparsas e devidamente distanciadas no meio de um parque “caprichosamente cuidado”. O solo sobre o qual
se assentavam as construções era completamente estanque e os pavilhões, construídos sobre arcadas, permitiam a entrada
de serventes para as lavagens dos porões.
fig.30
Fig.26 a 31 - Aspectos dos diferentes pavilhões do Hospital de Isolamento,
construídos pelo engenheiro
baiano Teodoro Sampaio (1855-1937), entre 1892 e 1894.
Zincogravuras de autoria de Theodor Wendt, publicadas
na Revista Médica de S. Paulo, em 1900.
Acervo Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP.
As enfermarias eram todas de paredes lisas, descantonadas (para não acumular pó e germes), pintadas a óleo e verniz,
com ventiladores diversos, algumas com assoalho frestado e o pavilhão de difteria com tabuado revestido de linóleo.
As instalações higiênicas eram de sistema “Unitas” e diariamente desinfetadas.
Os leitos dos doentes eram feitos de ferro com estrado de arame. Uma mesinha de cabeceira, de ferro e mármore, existia entre
duas camas de doentes.
Especial atenção era dada a profilaxia do hospital. Cada pavilhão tinha seu pessoal especial, independente, que não podia
ter contato com pessoal de outros pavilhões ou de outras dependências do hospital.
Só os médicos e a enfermeira-chefe tinham acesso a todos os pavilhões, munindo-se, porém, ao entrar, de competente avental,
e cercando-se de cuidados que garantissem a não infecção do vestuário comum. Todos os pavilhões achavam-se ligados à
administração e entre si por aparelhos telefônicos, único meio de comunicação do pessoal.
O artigo ressaltava ainda que o asseio e limpeza eram da maior preocupação e escrúpulo, fato que observaram e testaram
diversas pessoas “de tratamento” que haviam sido levadas ao hospital e nele demorado alguns dias. Tudo era deslumbrante:
a situação e a vista do hospital; as edificações e suas dependências; o conforto e o carinho
dispensados aos enfermos.
Dos pavilhões então erguidos, hoje só se conservam três, um dos quais originalmente destinado ao tratamento das doenças
mais temidas: peste bubônica, febre tifóide, difteria e meningite. A construção mantém as características
arquitetônicas iniciais. Apresenta planta oblonga, com paredes de tijolos erguidas sobre porão aberto
em arcada, rodeado de varandas suportadas por estruturas de ferro, sendo o todo coberto por telhado de quatro
águas, com telhas planas de modelo francês. Além desse, outros dois pavilhões também se acham preservados na
área do atual Hospital Emilio Ribas, dando abrigo a seções administrativas e à biblioteca da unidade.
Outros estabelecimentos de saúde construídos
a partir dos anos 1890
A partir dos últimos anos do século XIX, várias outras instituições de saúde entrariam em atividade na cidade de
São Paulo, tendo por objetivo oferecer assistência a uma população urbana em processo de crescimento acelerado:
a Sociedade Hospital Samaritano (1892), a Associação Beneficente e Protetora das Mulheres Desamparadas (1894),
o Hospital Alemão, atual Oswaldo Cruz (1897), o Hospital Umberto Primo, da Societá Italiana di Beneficenza (1904),
o Sanatório Santa Catarina (1906) e o Instituto Paulista (1909), entre tantas outras. Em observância aos ditames
higienistas ainda vigentes, as sedes dos novos estabelecimentos continuaram a ser instaladas em pontos elevados e
ventilados da cidade, afastados da área urbana e providos de densa arborização.
O hospital Samaritano (1892), por exemplo, seria erguido numa das encostas do Morro do Caaguaçu (na atual Rua Conselheiro Brotero,
n.1486), em local próximo ao loteamento do futuro bairro de Higienópolis (1895), afamado naquele tempo por sua excelente
condição de salubridade. A maternidade da Associação Beneficente e Protetora das Mulheres Desamparada, por sua vez,
seria construída nas vizinhanças da Avenida Paulista (atual Rua Frei Caneca, n. 1245), tal como o pavilhão do
Hospital Umberto I, da colônia italiana, inaugurado em 1904 em terreno não distante dessa mesma avenida (Alameda Rio
Claro, n. 190), instituição transferida do bairro da Bela Vista, onde esteve localizada na esquina das Ruas Major
Diogo e São Domingos, entre 1892 e 1899.
16:50 07/06/2011Inaugurada em 1891, a Avenida Paulista vinha sendo ocupada desde então
por ricas moradias apalacetadas, mas em razão de suas características físicas especiais – situada em alto espigão
e em região originalmente recoberta de densas matas –, alguns equipamentos de saúde conseguiram estabelecer-se
tanto nessa via pública quanto em suas circunvizinhanças, tais como, o Hospital Santa Catarina (1906), o
Instituto Paulista (1909) e o Hospital Alemão (1922), sem falar no Instituto Pasteur, um instituição antirrábica,
datada de fins do século XIX, dedicada à pesquisa, diagnóstico e atendimento ambulatorial.
Do ponto de vista estilístico todas essas construções, tal como as demais estruturas hospitalares executadas
até a década de 1930, seguiam as convenções do Ecletismo. Em geral, adotavam vocabulários ornamentais de inspiração
historicista ou regionalista que estivesse mais em moda no momento. No Hospital Samaritano, por exemplo, adotou-se,
excepcionalmente, uma linguagem arquitetônica de inspiração norte-americana, com tijolos aparentes e molduras
brancas contornando portas e janelas (projeto atribuído a Jorge Krug, 1860-1919, com curso de proficiência de dois anos
em Arquitetura na Universidade de Cornell, EUA, concluído em 1888). O Hospital Umberto I, projetado pelo arquiteto
italiano Júlio Micheli (1862-1919), apresentava características influenciadas pelo estilo toscano, então em voga
na Itália. Enquanto o Sanatório Santa Catarina, idealizado pelo engenheiro alemão Maximilian Hehl (1861-1916),
filiava-se ao consagrado estilo neogótico.
De início, a maioria dessas edificações hospitalares não passavam de pequenas e modestas construções. Em geral,
constavam de um corpo com um pavimento sobre porão, acompanhado lateralmente de duas enfermarias em forma de alas,
situadas em posição oposta, segundo o sistema linear (pavilhões iniciais da Maternidade São Paulo), ou de acordo com
uma variação desse partido, como era o caso do primeiro pavilhão do Hospital Umberto I, em que as alas, paralelas,
partiam da face posterior do corpo principal, formando uma planta em forma de U. Também o hospital do Sanatório
de Santa Catarina seguia o partido linear, com um corpo central com dois pavimentos sobre porão habitável, e duas
pequenas alas laterais, de apenas um pavimento, onde provavelmente se alojavam quartos particulares de várias categorias.
A respeito desse último estabelecimento, aliás, cumpre assinalar que é considerado o primeiro hospital particular de
São Paulo, tendo sido destinado desde o inicio a receber doentes pagantes, exclusivamente.
Conclusão
Já nas primeiras décadas do século XX, o partido de pavilhões demonstrava estar com os dias contados. Atingira o máximo
de seu desenvolvimento e começava a ser abandonado, sobretudo nos
EUA. Enquanto isso, o partido hospitalar com
enfermarias totalmente separadas (o chamado partido de barracas) continuava ainda a ser bem aceito. Mas depois
do nascimento da Bacterologia e do tratamento antisséptico adotado por Joseph Lister (1827-1912), que mudaram radicalmente
a prática da Medicina, a estrutura hospitalar não poderia mais continuar a ser a mesma do período pré-antissético.
As instalações hospitalares com partido de pavilhões – quer interligados, quer totalmente independentes – provaram ser
de construção e manutenção muito onerosas e o reconhecimento de que muitas das prescrições profiláticas até então
observadas eram exageradas, ou mesmo desnecessárias, conduziram a uma nova tendência, que de fato demoraria décadas para
se consolidar, o hospital em bloco compacto, composto de vários pavimentos. O primeiro desse tipo, com cinco pisos,
foi construído nos EUA em 1877, por G. B. Post, o hospital de Nova York, protótipo de uma fórmula que iria se mostrar
completamente vitoriosa no século seguinte (fig.32).
Fig.32 - Hospital de Nova York, construído em 1877 por G. B. Post,
segundo o partido de bloco compacto, com vários pavimentos,
que predominará a partir do século XX.
Fonte: MIGNOT, Claude. L’architecture au XIXe siècle.
Fribourg: Office du Livre, 1983.
Do ponto de vista terapêutico, desde o final dos Oitocentos, os hospitais vinham-se revelando cada vez mais eficientes,
proporcionando a seus enfermos reais chances de recuperação. As recentes conquistas da ciência médica e biomédica,
o desenvolvimento da indústria farmacêutica, o aprimoramento dos profissionais ligados à área da saúde, e mais
recentemente os avanços da tecnologia médica etc., tudo contribuiu para transformar o hospital em local seguro, com
alta taxa de recuperação e baixo índice de mortalidade. Como resultado dessas transformações, esses estabelecimentos,
antigos redutos filantrópicos pouco eficazes, inteiramente dedicados ao acolhimento do doente pobre, passaram a ser
freqüentados por uma clientela pagante, que se tornava ciente de que as instituições hospitalares se constituíam agora
num espaço cômodo, onde as esperanças de cura eram bem maiores que as oferecidas em seu próprio lar.
Paralelamente a isso, de temíveis geradores de miasmas, que deveriam ser implantados em áreas desocupadas distantes da zona
urbana, os hospitais transformaram-se com o tempo em eficientes fatores de desenvolvimento urbano, com grandes proprietários
de terrenos em São Paulo tentando, argutamente, atrair os estabelecimentos hospitalares, na certeza de que a presença desses
equipamentos de saúde favorecia a rápida ocupação urbana nas proximidades de seus empreendimentos imobiliários.
Continua >
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Para citação adote:
CAMPOS, Eudes. Hospitais paulistanos: do século XVI ao XIX.
INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 6 (29): abr/jun.2011.
<http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>
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