PMSP/SMC/DPH
São Paulo, abril/junho de 2011
Ano 6 N.29 

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  • ESTUDOS & PESQUISAS
  • Hospitais paulistanos: do século XVI ao XIX


    Eudes Campos
    Pesquisador da
    Seção Técnica de Estudos e Pesquisas



    | Período Colonial | Primeiro Reinado | Segundo Reinado | Primeira República | Notas | Fontes |


    Segunda metade do século XIX - Primeira República


    O alvorecer do período asséptico

    O hospital da Misericórdia construído no Arouche distinguia-se dos demais hospitais paulistanos até então construídos, não só por sua arquitetura, de inédito estilo gótico e baseada em princípios higienistas, mas pelos novos cuidados médicos que passaram a ser aplicados em suas dependências. Pelo programa de necessidades, vemos que já havia um médico residente no hospital a se dedicar integralmente aos pacientes, ao contrário do que acontecia antes, com os médicos fazendo apenas rápidas visitas aos doentes, entregues durante o resto do dia nas mãos de funcionários pouco competentes. Na Misericórdia, desde 1872, o tratamento dos enfermos estava a cargo das irmãs de São José de Chambéry, irmãs de caridade pertencentes a uma congregação de origem francesa. E a partir dessa data os melhores facultativos de São Paulo estariam frequentando as enfermarias da Santa Casa como membros do corpo médico hospitalar.

    Em 1890, Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho (1867-1920) foi nomeado médico do hospital. Logo alcançaria o cargo de Diretor Clínico, no qual se manteria até sua morte em 1920. Considerado o maior cirurgião paulista de seu tempo, sua admissão na Misericórdia coincidiu com as primeiras cirurgias antisséticas realizadas na cidade. Essas operações usavam o clorofórmio como anestésico e, conforme o testemunho de época, eram realizadas sob uma chuva de vapores fenicados, lançada por vaporizadores de Lister. Médicos e doentes ficavam banhados em soluções fenicadas e boricadas, em razão do zelo antissético que vigorava então. Zelo só mais tarde atenuado, com o melhor conhecimento dos micróbios e do organismo humano105.

    De acordo com o historiador Nikolaus Pevsner (1902-1983)106, respeitáveis obras europeias dedicadas à arquitetura hospitalar persistiriam na defesa do sistema pavilhonar ainda na passagem para o século XX. Ou seja, esse tipo de partido continuou legítimo, mesmo após a aceitação generalizada pela classe médica da teoria microbiana de transmissão de doenças. Muito embora os últimos 30 anos do século XIX tivessem sido cruciais para a consolidação da teoria germinal das doenças infecciosas – cujas pesquisas avançaram ao longo do século XIX, mas só se tornaram incontestáveis a partir das descobertas de Louis Pasteur (1822-1895) e Robert Koch (1843-1910) –, os partidos hospitalares inventados nos tempos das teorias neo-hipocráticas continuaram válidos por décadas. As necessidades de constante ventilação e renovação de ar tanto no interior, quanto no exterior das instalações hospitalares, não foram alteradas imediatamente com as novas descobertas científicas, mesmo porque os resultados da profilaxia então adotada eram realmente positivos.



    Persistência dos hospitais de partido higienista

    Hospital Militar (1895-1899)

    Exemplo disso foi o projeto e construção do Hospital Militar (1895-1899), erguido no bairro da Luz em seguimento ao Quartel dos Permanentes (1887-1892), ambas as construções de autoria do engenheiro e arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1928). Este arquiteto, por exemplo, insistiu na organização pavilhonar do espaço hospitalar da Luz, o mesmo acontecendo com o hospício do Juqueri (1895-1898), também de sua autoria. Em ambos os casos, as enfermarias abrigavam-se em pavilhões independentes, dispostos paralelamente, separados por amplos jardins e interligados por meio de frágeis galerias, apenas cobertas, sustentadas por delicadas estruturas metálicas. A única alteração feita no partido pavilhonar tradicional era que, com a proclamação da república brasileira, de caráter laico, havia sido suprimida a presença das capelas nos hospitais diretamente submetidos à administração governamental (fig. 22 a 25).

    Planta do Hospital Militar, 1895

    Fig.22 - Planta do Hospital Militar. Projeto do engenheiro e arquiteto
    Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1928), datado de 1895.


    Fonte: CARVALHO, Maria Cristina Wolff de. Ramos de Azevedo.
    São Paulo: EDUSP, 2000.

    Hospital Militar, c.1899

    Hospital Militar, c.1899
    Fig.22 - Aspectos externos do Hospital Militar.
    Fotografias de autor desconhecido, c. 1899.


    Fonte: CARVALHO, Maria Cristina Wolff de. Ramos de Azevedo.
    São Paulo: EDUSP, 2000.

    Hospital Militar
    Fig.25 - Aspectos internos do Hospital Militar (1895-1899), de autoria de Ramos de Azevedo (1851-1928), segundo ilustrações publicadas na Revista Médica de S. Paulo.

    Notar a enfermaria com a abóbada ogival preconizada por Casimir Tollet.

    Acervo Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP.

    Na Revista Medica de S. Paulo, datada de agosto de 1899, lê-se o memorial descritivo do Hospital Militar preparado por Ramos de Azevedo. É longo e bastante minucioso, e o que chama a atenção nesse documento é que a meticulosidade revelada pelo autor na luta contra a contaminação do espaço hospitalar tem fundamento nas superadas teorias neo-hipocráticas de contágio, enquanto a prática médica da época já se baseava na teoria microbiana. Apesar de extenso, é muito proveitosa sua leitura integral:
    Vemos assim que o projeto do hospital procurava atender precipuamente as necessidades de ar e luz, com garantias de generosa ventilação contínua, tal com preconizado pela medicina higienista. Convém, por outro lado, notar que o estilo arquitetônico do complexo hospitalar era medievalizante, tal como acontecia com o quartel da Luz. Torres e merlões serviam de signos arquitetônicos para a fácil identificação do prédio com a função militar. Quanto às enfermarias, possuíam, como visto, abobadas ogivais e grandes olhos de boi no alto dos arcos apontados, numa solução funcional ignorada por Pucci no Hospital da Misericórdia, mas estudada e recomendada pelo engenheiro francês Casimir Tollet desde 1872.

    Na verdade, Ramos de Azevedo neste projeto se inspirou fortemente na solução proposta pelo notável engenheiro francês acima aludido (que, de fato, tinha formação de simples mestre de obras). A solução encontrada por Tollet foi considerada tão eficiente que seu autor chegou a patenteá-la. A partir da Exposição Universal de 1878, em Paris, a Sociedade Tollet foi contratada para a construção de uma dúzia de hospitais desse sistema em diferentes lugares da Europa108.

    São muitos os pontos em comum entre o projeto do Hospital Militar de Ramos de Azevedo e a proposta padronizada de Tollet: a adoção da organização pavilhonar para o estabelecimento hospitalar; a construção de enfermarias assentadas sobre pavimento inferior e providas de falsas abóbadas ogivais; a presença de extensas varandas para distração e recuperação dos doentes ao longo das fachadas laterais das enfermarias e o emprego de sistemas de circulação de ar para o arejamento tanto do espaço interno da enfermaria, quanto do desvão entre a abóbada e o telhado. A proposta higienista do engenheiro francês para enfermarias era tão eficaz que, segundo se afirmava, conseguira reduzir a taxa de mortalidade hospitalar em 25 %.

    O Hospital Militar de Ramos de Azevedo manteve sua função original até o final dos anos 1970, quando se mudou para as atuais instalações da Avenida Cantareira, Invernada do Barro Branco, no bairro do Tucuruvi. Os antigos edifícios do hospital foram então destinados a outras atividades, mas no inicio da década de 1980 decidiu-se, irresponsavelmente, demolir a parte posterior de suas instalações originais, referentes a refeitório, enfermaria e lavanderia. Hoje na parte subsistente se acham instalados o Museu Militar e o Centro de Aperfeiçoamento e Estudos Superiores da Polícia Militar.

    O Hospital de Isolamento (1892-1894)

    Enquanto os hospitais projetados por Ramos de Azevedo recebiam elogios, a sede do Hospital da Santa Casa paulistana sofria críticas desde 1885: carecia de um pavilhão isolado para tuberculosos, uma sala especial de operações, fornos para desinfecção de roupas e uma maternidade que garantisse a saúde e o aumento da prole dos trabalhadores imigrantes, conforme salientava o jornalista Rangel Pestana (1839-1903). Na ocasião, o Dr. Barreto, convocado por uma comissão da irmandade, fez questão de frisar que a construção não deveria prosseguir
    A verdade era que os conceitos médicos mudavam rapidamente naqueles dias de revolução científica, sendo difícil acompanhá-los, como também a cidade de São Paulo crescia a olhos vistos, tornando-se difícil planejar centros hospitalares para uma população trabalhadora cujo número não parava de aumentar. Ramos de Azevedo demonstrou preferência pelo sistema pavilhonar, longamente maturado no interior da cultura europeia sete e oitocentista, mas outros profissionais aderiam à cultura hospitalar de mais recente tradição. Em 1902, um médico brasileiro ao descrever o edifício inacabado da Misericórdia reparava que o melhor sistema hospitalar não era o pavilhonar, mas o que preconizava o total isolamento dos pavilhões, então conhecido como sistema de barracas110. Derivado dos conjuntos de barracas em que funcionavam os hospitais militares de campanha montados durante a guerra da Criméia (1853-1856) e a Guerra Civil Americana (1861-1865), – ou seja, quando ainda prevaleciam as teorias neo-hipocráticas –, esse partido passou a ser preferido na Alemanha111 e usado especialmente para hospitais de isolamento, tendo sido o escolhido para a realização do hospital deste gênero erguido no Araçá logo nos primeiros anos da República.

    A descentralização política promovida pelo sistema federativo adotado na república brasileira daria condições para que o agora próspero Estado de São Paulo organizasse com autonomia o mais complexo aparato de serviço público de saúde do País. A cafeicultura paulista expandira-se tanto nos últimos anos que o Brasil já controlava praticamente o mercado mundial do produto. Em contrapartida, o fluxo migratório, sempre crescente, destinado ao trabalho nas lavouras, mantinha-se continuamente fustigado por sucessivos surtos epidêmicos, agora sobretudo de febre amarela. Para enfrentar esse dramático problema de saúde pública, que poderia refletir negativamente no desempenho da principal riqueza econômica do País, havia sido formada a rede estadual de saúde paulista, que em 1892 se achava composta pelo Instituto Bacteriológico, pelo Laboratório de Análises Químicas e Bromatológicas, do Instituto Vacinogênico, pelo Laboratório Farmacêutico e pelo Hospital de Isolamento. Depois seriam criados o Desinfetório Central (1893) e o Instituto Soroterápico (1901), atual Butantã.

    Anos depois da criação do hospital de autoria do engenheiro fluminense Inácio Wallace da Gama Cochrane, o engenheiro baiano Teodoro Fernandes Sampaio (1855-1937) seria encarregado de construir novos pavilhões para a ampliação do estabelecimento hospitalar, agora sob a administração do governo do Estado de São Paulo. Como dissemos antes, o sistema então adotado foi o chamado sistema de barracas, segundo o qual todos os edifícios ficariam completamente isolados uns dos outros, sem nenhum tipo de contato, nem sequer a presença de galerias apenas cobertas que caracterizavam a tipologia pavilhonar. O objetivo era separar de forma radical os portadores de diferentes tipos de doenças transmissíveis, para evitar o mútuo contágio.

    Em 1900 a Revista Medica de S Paulo publicava um artigo sobre o Hospital de Isolamento. O conjunto hospitalar, inaugurado em 1894, dispunha então de uma área de 50 hectares, dos quais dez ocupados pelos edifícios da administração, pavilhões de doentes, diversas dependências e jardim.

    À entrada, do lado direito, estava a casa do porteiro; à esquerda, o edifício da administração e farmácia. Seguiam-se o Instituto Bacteriológico, onde eram estudadas as moléstias contagiosas, e os pavilhões para o tratamento de doenças transmissíveis. Eram em número de cinco esses pavilhões (fig.26 superior).

    Hospital de Isolamento, 1900
    fig.26

    Fig.26 a 31 - Aspectos dos diferentes pavilhões do Hospital de Isolamento,
    construídos pelo engenheiro baiano Teodoro Sampaio (1855-1937), entre 1892 e 1894.
    Zincogravuras de autoria de Theodor Wendt, publicadas
    na Revista Médica de S. Paulo, em 1900.


    Acervo Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP.

    O de n. 1 era destinado aos doentes de difteria ou crupe diftérico. Tinha a aparência de chalé e compunha-se dos seguintes compartimentos: sala do médico, sala e quarto dormitório das enfermeiras, quarto do servente, quatro pequenas enfermarias com três leitos cada uma, gabinete e quarto de banhos do pessoal do pavilhão, gabinete e quarto de banhos dos doentes e por último a copa (fig.27 superior).

    O de n.2 era um grande pavilhão dividido em duas alas. Uma para o tratamento de febre tifóide e outra para o tratamento de febre amarela. Cada ala estava composta de duas enfermarias, uma para homens e outra para mulheres, havendo anexos a cada uma delas, quartos para doentes, que, por suas condições, não deveriam ser tratados em enfermaria comum e mais um quarto destinado aos agonizantes. (fig.27 inferior).

    Hospital de Isolamento, 1900
    fig.27

    Fig.26 a 31 - Aspectos dos diferentes pavilhões do Hospital de Isolamento,
    construídos pelo engenheiro baiano Teodoro Sampaio (1855-1937), entre 1892 e 1894.
    Zincogravuras de autoria de Theodor Wendt, publicadas
    na Revista Médica de S. Paulo, em 1900.


    Acervo Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP.

    Unido a esse pavilhão dos doentes, havia outro abrigando dormitório e sala de refeição do pessoal, compreendendo a copa, sala de distribuição de dietas, sala de refeição e quartos dormitórios do pessoal.

    Em continuação a esse pavilhão, mas completamente independente, estavam a cozinha geral do hospital, o salão de refeição do pessoal de serviço externo, que não tinham contacto algum com doentes, e os quartos dormitórios destes mesmos empregados. Estas últimas peças estavam reunidas numa construção anexa acessível por meio de passadiço coberto, que tinha por tapamento lateral grandes janelas intercaladas com painéis de venezianas, sistema que, ao conferir ampla e permanente ventilação ao passadiço, evitava a contaminação da área de serviço (fig.31).

    Hospital de Isolamento, 1900
    fig.31

    Fig.26 a 31 - Aspectos dos diferentes pavilhões do Hospital de Isolamento,
    construídos pelo engenheiro baiano Teodoro Sampaio (1855-1937), entre 1892 e 1894.
    Zincogravuras de autoria de Theodor Wendt, publicadas
    na Revista Médica de S. Paulo, em 1900.


    Acervo Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP.

    O pavilhão de n. 3 era reservado aos enfermos de escarlatina e sobre ele já falamos ao tratar, páginas atrás, do antigo Hospital de Variolosos (fig.28 superior).

    O de n. 4 era consagrado ao tratamento de doentes de varíola, mas vinha sendo usado para doentes de peste por não haver, havia tempos, epidemias de varíola, graças ao serviço regular de vacinação tornado eficiente a partir da República. Compunha-se essa construção de quatro enfermarias e de seis quartos. Como os demais pavilhões, tinha as mesmas dependências para o serviço em separado (fig.28 inferior).

    Hospital de Isolamento, 1900
    fig.28

    Fig.26 a 31 - Aspectos dos diferentes pavilhões do Hospital de Isolamento,
    construídos pelo engenheiro baiano Teodoro Sampaio (1855-1937), entre 1892 e 1894.
    Zincogravuras de autoria de Theodor Wendt, publicadas
    na Revista Médica de S. Paulo, em 1900.


    Acervo Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP.

    E por fim, o último pavilhão, de n.5, chamado de Classe. Era o primeiro a ser construído por esse modelo e logo outros seriam erguidos, destinados todos eles a doentes de classe, que tinham de ser acompanhados pelas respectivas famílias. Compunha-se de um vestíbulo e de duas alas completamente independentes, acomodando em cada uma delas uma família e compostas por sua vez de salão, quarto de doente, dois quartos para família, sala de jantar, cozinha, gabinete e banheiros, e uma área interna cercada de varanda para convalescentes (fig.29).

    Hospital de Isolamento, 1900
    fig.29

    Fig.26 a 31 - Aspectos dos diferentes pavilhões do Hospital de Isolamento,
    construídos pelo engenheiro baiano Teodoro Sampaio (1855-1937), entre 1892 e 1894.
    Zincogravuras de autoria de Theodor Wendt, publicadas
    na Revista Médica de S. Paulo, em 1900.


    Acervo Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP.

    Além dessas construções, o complexo hospital era composto de lavanderia, necrotério e cocheiras (fig.30). Todas as edificações eram esparsas e devidamente distanciadas no meio de um parque “caprichosamente cuidado”. O solo sobre o qual se assentavam as construções era completamente estanque e os pavilhões, construídos sobre arcadas, permitiam a entrada de serventes para as lavagens dos porões.

    Hospital de Isolamento, 1900
    fig.30

    Fig.26 a 31 - Aspectos dos diferentes pavilhões do Hospital de Isolamento,
    construídos pelo engenheiro baiano Teodoro Sampaio (1855-1937), entre 1892 e 1894.
    Zincogravuras de autoria de Theodor Wendt, publicadas
    na Revista Médica de S. Paulo, em 1900.


    Acervo Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP.

    As enfermarias eram todas de paredes lisas, descantonadas (para não acumular pó e germes), pintadas a óleo e verniz, com ventiladores diversos, algumas com assoalho frestado e o pavilhão de difteria com tabuado revestido de linóleo. As instalações higiênicas eram de sistema “Unitas” e diariamente desinfetadas.

    Os leitos dos doentes eram feitos de ferro com estrado de arame. Uma mesinha de cabeceira, de ferro e mármore, existia entre duas camas de doentes.

    Especial atenção era dada a profilaxia do hospital. Cada pavilhão tinha seu pessoal especial, independente, que não podia ter contato com pessoal de outros pavilhões ou de outras dependências do hospital.

    Só os médicos e a enfermeira-chefe tinham acesso a todos os pavilhões, munindo-se, porém, ao entrar, de competente avental, e cercando-se de cuidados que garantissem a não infecção do vestuário comum. Todos os pavilhões achavam-se ligados à administração e entre si por aparelhos telefônicos, único meio de comunicação do pessoal.

    O artigo ressaltava ainda que o asseio e limpeza eram da maior preocupação e escrúpulo, fato que observaram e testaram diversas pessoas “de tratamento” que haviam sido levadas ao hospital e nele demorado alguns dias. Tudo era deslumbrante: a situação e a vista do hospital; as edificações e suas dependências; o conforto e o carinho dispensados aos enfermos112.

    Dos pavilhões então erguidos, hoje só se conservam três, um dos quais originalmente destinado ao tratamento das doenças mais temidas: peste bubônica, febre tifóide, difteria e meningite. A construção mantém as características arquitetônicas iniciais. Apresenta planta oblonga, com paredes de tijolos erguidas sobre porão aberto em arcada, rodeado de varandas suportadas por estruturas de ferro, sendo o todo coberto por telhado de quatro águas, com telhas planas de modelo francês. Além desse, outros dois pavilhões também se acham preservados na área do atual Hospital Emilio Ribas, dando abrigo a seções administrativas e à biblioteca da unidade113.


    Outros estabelecimentos de saúde construídos
    a partir dos anos 1890


    A partir dos últimos anos do século XIX, várias outras instituições de saúde entrariam em atividade na cidade de São Paulo, tendo por objetivo oferecer assistência a uma população urbana em processo de crescimento acelerado: a Sociedade Hospital Samaritano (1892), a Associação Beneficente e Protetora das Mulheres Desamparadas (1894), o Hospital Alemão, atual Oswaldo Cruz (1897), o Hospital Umberto Primo, da Societá Italiana di Beneficenza (1904), o Sanatório Santa Catarina (1906) e o Instituto Paulista (1909), entre tantas outras. Em observância aos ditames higienistas ainda vigentes, as sedes dos novos estabelecimentos continuaram a ser instaladas em pontos elevados e ventilados da cidade, afastados da área urbana e providos de densa arborização.

    O hospital Samaritano (1892), por exemplo, seria erguido numa das encostas do Morro do Caaguaçu (na atual Rua Conselheiro Brotero, n.1486), em local próximo ao loteamento do futuro bairro de Higienópolis (1895), afamado naquele tempo por sua excelente condição de salubridade. A maternidade da Associação Beneficente e Protetora das Mulheres Desamparada, por sua vez, seria construída nas vizinhanças da Avenida Paulista (atual Rua Frei Caneca, n. 1245), tal como o pavilhão do Hospital Umberto I, da colônia italiana, inaugurado em 1904 em terreno não distante dessa mesma avenida (Alameda Rio Claro, n. 190), instituição transferida do bairro da Bela Vista, onde esteve localizada na esquina das Ruas Major Diogo e São Domingos, entre 1892 e 1899114. 16:50 07/06/2011Inaugurada em 1891, a Avenida Paulista vinha sendo ocupada desde então por ricas moradias apalacetadas, mas em razão de suas características físicas especiais – situada em alto espigão e em região originalmente recoberta de densas matas –, alguns equipamentos de saúde conseguiram estabelecer-se tanto nessa via pública quanto em suas circunvizinhanças, tais como, o Hospital Santa Catarina (1906), o Instituto Paulista (1909) e o Hospital Alemão (1922), sem falar no Instituto Pasteur, um instituição antirrábica, datada de fins do século XIX, dedicada à pesquisa, diagnóstico e atendimento ambulatorial.

    Do ponto de vista estilístico todas essas construções, tal como as demais estruturas hospitalares executadas até a década de 1930, seguiam as convenções do Ecletismo. Em geral, adotavam vocabulários ornamentais de inspiração historicista ou regionalista que estivesse mais em moda no momento. No Hospital Samaritano, por exemplo, adotou-se, excepcionalmente, uma linguagem arquitetônica de inspiração norte-americana, com tijolos aparentes e molduras brancas contornando portas e janelas (projeto atribuído a Jorge Krug, 1860-1919, com curso de proficiência de dois anos em Arquitetura na Universidade de Cornell, EUA, concluído em 1888). O Hospital Umberto I, projetado pelo arquiteto italiano Júlio Micheli (1862-1919), apresentava características influenciadas pelo estilo toscano, então em voga na Itália. Enquanto o Sanatório Santa Catarina, idealizado pelo engenheiro alemão Maximilian Hehl (1861-1916), filiava-se ao consagrado estilo neogótico.

    De início, a maioria dessas edificações hospitalares não passavam de pequenas e modestas construções. Em geral, constavam de um corpo com um pavimento sobre porão, acompanhado lateralmente de duas enfermarias em forma de alas, situadas em posição oposta, segundo o sistema linear (pavilhões iniciais da Maternidade São Paulo), ou de acordo com uma variação desse partido, como era o caso do primeiro pavilhão do Hospital Umberto I, em que as alas, paralelas, partiam da face posterior do corpo principal, formando uma planta em forma de U. Também o hospital do Sanatório de Santa Catarina seguia o partido linear, com um corpo central com dois pavimentos sobre porão habitável, e duas pequenas alas laterais, de apenas um pavimento, onde provavelmente se alojavam quartos particulares de várias categorias. A respeito desse último estabelecimento, aliás, cumpre assinalar que é considerado o primeiro hospital particular de São Paulo, tendo sido destinado desde o inicio a receber doentes pagantes, exclusivamente.


    Conclusão

    Já nas primeiras décadas do século XX, o partido de pavilhões demonstrava estar com os dias contados. Atingira o máximo de seu desenvolvimento e começava a ser abandonado, sobretudo nos EUA
    115. Enquanto isso, o partido hospitalar com enfermarias totalmente separadas (o chamado partido de barracas) continuava ainda a ser bem aceito. Mas depois do nascimento da Bacterologia e do tratamento antisséptico adotado por Joseph Lister (1827-1912), que mudaram radicalmente a prática da Medicina, a estrutura hospitalar não poderia mais continuar a ser a mesma do período pré-antissético.

    As instalações hospitalares com partido de pavilhões – quer interligados, quer totalmente independentes – provaram ser de construção e manutenção muito onerosas e o reconhecimento de que muitas das prescrições profiláticas até então observadas eram exageradas, ou mesmo desnecessárias, conduziram a uma nova tendência, que de fato demoraria décadas para se consolidar, o hospital em bloco compacto, composto de vários pavimentos. O primeiro desse tipo, com cinco pisos, foi construído nos EUA em 1877, por G. B. Post, o hospital de Nova York, protótipo de uma fórmula que iria se mostrar completamente vitoriosa no século seguinte116 (fig.32).

    Hospital de Nova York, construído em 1877
    Fig.32 - Hospital de Nova York, construído em 1877 por G. B. Post,
    segundo o partido de bloco compacto, com vários pavimentos,
    que predominará a partir do século XX.


    Fonte: MIGNOT, Claude. L’architecture au XIXe siècle.
    Fribourg: Office du Livre, 1983.

    Do ponto de vista terapêutico, desde o final dos Oitocentos, os hospitais vinham-se revelando cada vez mais eficientes, proporcionando a seus enfermos reais chances de recuperação. As recentes conquistas da ciência médica e biomédica, o desenvolvimento da indústria farmacêutica, o aprimoramento dos profissionais ligados à área da saúde, e mais recentemente os avanços da tecnologia médica etc., tudo contribuiu para transformar o hospital em local seguro, com alta taxa de recuperação e baixo índice de mortalidade. Como resultado dessas transformações, esses estabelecimentos, antigos redutos filantrópicos pouco eficazes, inteiramente dedicados ao acolhimento do doente pobre, passaram a ser freqüentados por uma clientela pagante, que se tornava ciente de que as instituições hospitalares se constituíam agora num espaço cômodo, onde as esperanças de cura eram bem maiores que as oferecidas em seu próprio lar.

    Paralelamente a isso, de temíveis geradores de miasmas, que deveriam ser implantados em áreas desocupadas distantes da zona urbana, os hospitais transformaram-se com o tempo em eficientes fatores de desenvolvimento urbano, com grandes proprietários de terrenos em São Paulo tentando, argutamente, atrair os estabelecimentos hospitalares, na certeza de que a presença desses equipamentos de saúde favorecia a rápida ocupação urbana nas proximidades de seus empreendimentos imobiliários.


    Continua > Notas




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    Para citação adote:

    CAMPOS, Eudes. Hospitais paulistanos: do século XVI ao XIX.
    INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 6 (29): abr/jun.2011. <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>

     
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