Hospitais paulistanos: do século XVI ao XIX
Eudes Campos
Pesquisador da
Seção Técnica de Estudos e Pesquisas
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Segunda metade do século XIX – Segundo Reinado
Primeiros indícios de higienismo em São Paulo
A partir dos anos 1850, o estado de coisas começa a mudar na cidade de São Paulo. Desde 1849, a Câmara
passa a aplicar recursos provinciais nas obras públicas sob a sua responsabilidade. Tudo então era ainda
muito incipiente, mas aos poucos os trabalhos públicos irão transformar a vida e a aparência da cidadezinha
provinciana. A maior mudança verificada nessa etapa será no tipo de calçamento adotado nas ruas mais
importantes da Capital, com a adoção do abaulamento do leito viário, apedregulhamento ou macadamização,
construção de passeios e sarjetas laterais e, a partir de 1861, construção de um sistema subterrâneo
de drenagem das águas pluviais. Essas obras públicas tinham fundamento higiênico, na medida em que o
revestimento das vias públicas as isolava do solo produtor de miasmas, e serão em geral bem visíveis,
por exemplo, em fotografias de autoria de Militão Augusto de Azevedo (1837-1905), tomadas entre 1862 e
1863. As constantes reivindicações de melhoramentos materiaes publicadas na imprensa diária paulistana
em cartas abertas enviadas pela população, reproduzia, portanto, uma nova postura frente à
realidade urbana, que vinha desde algum tempo, sendo observável
na própria capital do Império.
Esses reflexos estavam diretamente ligados à revolução higiênica desencadeada no Velho Continente a
partir dos meados dos Setecentos, fruto do Iluminismo e baseada em princípios neo-hipocráticos. Essa
revolução, contemporânea da ascensão burguesa na Europa, e fundamentada em teorias médicas
pré-microbianas que apontavam ser o meio ambiente fator fundamental para explicar muitas das
doenças epidêmicas e endêmicas então conhecidas, manifestou-se na vida das pessoas de múltiplas formas,
tanto no nível privado quanto no público: na valorização da cura pela águas minerais; na retomada do
uso da água para o asseio corporal; na privatização das acomodações familiares no interior das residências;
na introdução de espaço, ar e luz nas construções públicas e privadas; no isolamento dos edifícios em relação
às divisas dos lotes, na concepção de novos partidos arquitetônicos para edifícios públicos (hospitais, asilos,
prisões, quartéis, escolas etc.) e na racionalização do espaço público (calçamento de vias, arborização de
logradouros, remoção regular do lixo, afastamento de atividades nocivas e incômodas dos centros das aglomerações
urbanas, criação de cemitérios apartados das igrejas etc.). Como dissemos acima, as consequências de tudo isso
só começariam a se fazer sentir no Brasil a partir do Segundo Reinado.
Na década de 1850, a situação econômica da Província intensificava-se com os primeiros sinais de prosperidade
demonstrados pela lavoura de café no Oeste paulista. A construção da ferrovia de Santos a Jundiaí (1860-1867)
não foi apenas o resultado desse paulatino processo de enriquecimento, mas sobretudo a consequência da antevisão,
por parte de capitalistas ingleses, dos grandes lucros que poderiam ser auferidos a partir da posterior
expansão da produção cafeeira paulista, propiciada pelo novo tipo de meio de transporte: rápido, seguro e eficiente.
A adoção da alvenaria autoportante de tijolos
Definitivamente, o primeiro grande passo para a modernização das estruturas hospitalares na cidade de São Paulo
foi a adoção de um novo método de construir. Não há dúvida de que a alvenaria autoportante de tijolos foi crucial
para a melhoria geral do padrão das edificações da cidade. Em 1850, uma enchente ocorrida no início de janeiro
deixara os paulistanos deveras assustados, pois em contato com a água da inundação várias casas de taipa de pilão haviam
simplesmente desabado, tal como aconteceu recentemente com o desastre que se abateu sobre o centro histórico de
São Luis de Paraitinga (2010). Um engenheiro polonês de nome Cristino Wyzewski enviou então um oficio à
Câmara paulistana, exortando-a a dissuadir a população da cidade de continuar construindo com terra
socada. O processo de substituição do sistema construtivo nos edifícios comuns da cidade desde então
desencadeado deu-se de modo dificilmente perceptível, mas no final dos anos 1850 já se viam
algumas importantes construções oficiais executadas de acordo com a nova técnica de construção:
a segunda ponte do Acu (1852); a segunda ala da Penitenciária, iniciada em 1854; a caixa d’água
municipal da Rua da Cruz Preta (1857); o teatro de São José (1858-1864) e a ala mais recente do
Seminário da Luz (1858-1860). Na década de 1860, destacaram-se ainda as obras de reconstrução da
ala situada na parte posterior do Palácio do Governo, a ala presidencial (1862-1864), o complexo
ferroviário da San Paulo Railway, constituído de muros de arrimo, galpões e estações ferroviárias,
executados entre 1860 e 1867, e o mercado municipal (1865-1867), erguido junto da várzea do Rio
Tamanduateí. A partir de então podemos considerar a taipa de pilão definitivamente abandonada na Capital,
sobrevivendo apenas no erguimento de ocasionais muros divisores de lotes ou na
execução de eventuais muros de arrimo.
Em 1855, o médico Dr. Ernesto Benedito Ottoni, participante de uma comissão composta pelo Dr. Antônio
Ribeiro de Almeida e Major Luís José Monteiro, num relatório apresentado ao governo provincial,
fazia recomendações para a futura sede do Hospital de Morféticos a ser construída em São Paulo: deveria
ser uma casa assobradada (isto é, provida de porão), com alicerces de pedra até o nível do pavimento e
paredes de tijolos (com exposição este-oeste, para benefício da insolação do edifício). As janelas seriam
rasgadas até acima para evitar que os miasmas se acumulassem na parte superior interna da edificação.
Enquanto no nível do pavimento, haveria respiradouros que pudessem ser fechados ou abertos, à vontade,
a fim de renovar o ar da parte inferior da construção.
A recomendação de que o edifício do hospício fosse construído de tijolos sobre alicerces de pedra
era semelhante àquela que havia sido feita para todas edificações paulistanas pelo engenheiro Wyzewski,
cinco anos antes. E isso vem corroborar que à época a alvenaria autoportante de tijolos, assentada sobre
fundações de pedra, estava intimamente associada a ideias de solidez, impermeabilidade, conforto ambiental e
salubridade; de modernidade, enfim.
Princípios higienistas influem na concepção arquitetônica de hospitais paulistanos
Já havíamos reparado em nossa tese de doutorado que nos escassos equipamentos públicos erguidos durante a
primeira metade dos Oitocentos não chegaram, seguramente, a se incorporar nenhum dos princípios básicos de
salubridade desenvolvidos pela medicina higienista, então em seus primórdios no Brasil. O Hospital Militar,
inaugurado no Acu em 1802, o Hospital da Misericórdia (tanto a casa de chácara adaptada em 1825, quanto a nova
sede especialmente construída entre 1832 e 1840), o primeiro raio da Penitenciária em forma de panóptico, de
realização tão arrastada quanto acidentada (erguido entre 1839 e 1851), e o matadouro municipal (1849-1853), de
autoria do engenheiro alemão Carlos Abraão Bresser (1804-1856), formavam um conjunto de grosseiras edificações de
taipa de pilão que décadas mais tarde estariam sendo condenadas por sua má construção e inadequação às funções
a que se destinavam.
A única medida comum a esses edifícios na qual poderíamos reconhecer uma preocupação de natureza preventiva
era a segregação de todos eles em relação ao núcleo urbano. Medida nem sempre eficaz, pois as construções
situadas ao sul eram constantemente varridas por ventos úmidos provindos da Serra do Mar que sopravam sobre a
cidade, para a qual eles acabavam trazendo os ares contaminados pelos temíveis miasmas, conforme as teorias
médicas da época. O matadouro apresentava ainda o agravante de lançar seus dejetos no Ribeirão Anhangabaú,
cujas águas impuras vinham depois banhar o sopé da colina onde se
levantava a Capital.
É evidente que os princípios higiênicos resultantes das teorias médicas neo-hipocráticas ainda prevalecentes na
segunda metade do século XIX contrastavam com os vigorantes em épocas anteriores. Antes, com a concepção de que
as enfermidades eram produzidas pelos fenômenos atmosféricos ou cósmicos, tais como, maus ares,
relâmpagos ou luz da lua e das estrelas, as pessoas tinham tendência a se recolher no interior das casas,
mantendo-as hermeticamente fechadas, sobretudo à noite, com o fito de se subtraírem aos efeitos negativos
do mundo exterior. Daí, supomos, o hábito luso-brasileiro tradicional de dormir em ambientes recônditos,
nas alcovas, compartimentos desprovidos de aberturas
externas. Agora, com a teoria segundo a qual os
pretensos “vapores”, emanados da terra, da água, da matéria putrescente ou dos corpos doentes, eram tidos
como os principais agentes patogênicos, desenvolveu-se a concepção de que o combate às doenças deveria ser
feito por meio da ventilação abundante e da continuada osculação solar. Ar e luz tornaram-se, portanto, as
novas e imprescindíveis necessidades. Antes, até as árvores podiam constituir ameaças com suas sombras vistas
às vezes como perniciosas, provocadoras de moléstias, sendo pouco desejável a presença delas em locais próximos
dos espaços habitados. Agora, ao contrário, a presença das árvores era fundamental, porque proporcionavam oxigenação
dos ambientes externos, em torno das construções. Também as flores eram bem-vindas, pois seus aromas agradáveis
neutralizavam os agentes patógenos, constituídos de fétidos eflúvios.
Essa mudança radical de atitude com relação à profilaxia é que levou à adoção de um novo tipo de hospital na
França em fins do século XVIII, no qual uma ventilação contínua em todo o edifício deveria ser alcançada para
evitar que o ar parado, saturado de miasmas, tivesse a chance de infectar os doentes em tratamento e as demais
pessoas presentes no local. No relatório do Dr. Caetano de Campos sobre o velho hospital da Misericórdia de 1875,
transparecem esses novos conceitos, quando o médico afirma que após a reforma e limpeza empreendida na velha
construção havia sido acrescentado como novo benefício – além da rouparia, do depósito de cadáveres, de uma sala
de operações e dos encanamentos de água e de gás – o ajardinamento dos terrenos adjacentes, o que não só veio
aformosear o edifício, como transformar suas condições higiênicas. Em outro ponto, reivindicava ele melhor
ventilação da construção, com a abertura de óculos nos tetos das enfermarias e nas portas das salas. “Peço ar
para meus doentes. É tão pouco...”, rogava, porque sabia que nos novos hospitais de partido higienista a ventilação
contínua era a chave do segredo para a queda vertiginosa da mortalidade observada entre os enfermos.
Hospital da Sociedade Portuguesa de Beneficência (1873-1876)
Embora de forma discreta, é possível que as novas concepções higienistas já comparecessem no Hospital da Sociedade
Portuguesa de Beneficência (1873-1876), cujas instalações foram tão apreciadas pela imprensa ao tempo de sua
inauguração. O noticiário da época, porém, não esmiuçou os aspectos técnicos para nós tão relevantes,
limitando-se a afiançar que era excelente a situação sanitária do hospital. Tal fato é digno de lástima porquanto
seria valioso poder conhecer em detalhes as condições de ventilação, iluminação e insolação, o esquema de circulação,
o sistema de abastecimento de água e o de remoção de dejetos, existentes no edifício. Mas a constatação de que nada
disso mereceu a atenção da imprensa na ocasião, parece indicar claramente que esses aspectos ainda não eram tidos
como de máxima importância para o bom funcionamento de um estabelecimento hospitalar.
Na época, um jornalista do Correio Paulistano assim o descreveu:
[...]
Conquanto ainda não esteja inaugurado, tivemos occasião de vêl-o interiormente em um dos ultimos dias e
sentimos a mais agradavel sorpresa.
Na entrada ha duas grandes salas, preparadas com admiravel elegancia quanto ao tecto e paredes as quaes
são forradas de custoso papel azul com ramagens doiradas. Por emquanto ainda não estão com as competentes mobilas.
Alem d’aquellas, ha a sala destinada a capella, da qual acha-se quasi concluido a [sic] altar, notando-se
o cuidado e bom gosto que igualmente presidiram ao plano da obra. Está forrada com vistoso papel azul
adornado de estrellas doiradas proprio para o brilhante effeito da capella.
Aos lados, ha dois vastos corredores com doze grandes quartos, sendo que cada um delles acommoda facilmente
quatro leitos, de maneira que só n’esse espaço apresenta capacidade para receber quarenta e oito doentes.
A sala do refeitorio, ao fundo, é ampla e vistosa, e alem della ha outros compartimentos como dispensa,
quarto de roupa, outros quartos, cosinha e etc., tudo acabado de maneira a tornar o hospital da beneficencia
da sociedade portugueza um dos melhores do imperio.
Alem dos commodos da casa ha uma grande área ou quintal, e em redor do edificio espaço sufficiente para um jardim.
A sociedade portugueza de beneficencia de S. Paulo póde orgulhar-se de possuir um hospital digno de seus creditos,
destinado a desempenhar, como em outras cidades do Brazil, importantissimas e filantropicas funcções.
Sem dúvida nenhuma, o edifício paulistano de estilo neoclássico mais bem realizado, ao menos no que se refere
a sua aparência externa, foi o Hospital da Sociedade Portuguesa de Beneficência, cujo projeto, datado de 1866, era de autoria
do português Manuel Gonçalves da Silva Cantarino. Embora o estabelecimento só tenha sido levantado anos mais tarde
(1873-1876), no início da fase de transição para o Ecletismo, do ponto de vista estilístico pertencia ainda à
linguagem arquitetônica neoclássica, admitida em São Paulo no decorrer dos anos de 1850 e 1860. Felizmente,
sua fisionomia original sobrevive em fotografia (fig.12 e 13).
Fig.12 - Vista externa do edifício da Sociedade Portuguesa de Beneficência,
na Rua Brigadeiro Tobias. Projeto do arquiteto português
Manuel Gonçalves da Silva Cantarino, datado de 1866-1873.
Acervo Museu da Cidade de São Paulo, DPH, SMC,
Prefeitura da Cidade de São Paulo.
Fig.13 - Reconstituição aproximada da fachada do
Hospital da Sociedade Portuguesa de Beneficência, 1873-1876.
Desenho executado com técnica digital.
Autoria arq. Eudes Campos, 2010.
A vistosa frontaria assobradada, de 26 m de extensão, estava voltada para a Rua Alegre (atual Brigadeiro
Tobias). Composta de nove vãos em arco pleno no primeiro andar, dispunha de antecorpo central, compreendendo
três aberturas e encimado de frontão. A parte inferior, pouco visível na foto por estar encoberta pelas plantas
do jardim, foi tratada como embasamento ou porão, tendo paramento de cantaria fingida nas superfícies externas
das paredes, perfuradas por grandes respiradouros de formato semi-circular; no piso superior, a que se
tinha acesso diretamente do jardim por meio de um lanço externo de escada, os panos de parede ritmavam-se
pela seqüência alternada de janelas rasgadas e pilastras jônicas. Acima do entablamento, desenvolvia-se uma
platibanda azulejada, intercalada de pedestais nas prumadas das pilastras, sobre os quais repousavam belas crateras
de faiança. E no tímpano do coroamento central, num medalhão de estuque, em relevo, via-se representada a tradicional
alegoria da Caridade – Nossa Senhora da Misericórdia estendendo o manto sobre os necessitados. Recuado dos limites do
lote, o hospital abria espaço para um estreito jardim fronteiro, que estava separado da via pública (antiga Rua Alegre,
atual Brigadeiro Tobias) por um gradeamento metálico engastado em pilares vistosamente enfeitados com
graúdas peças de remate.
Baseando-nos nas informações contidas no trecho de jornal acima reproduzido e em plantas de reforma apresentadas
à Prefeitura em agosto de 1915, hoje depositadas no Arquivo Histórico de São
Paulo, ousamos reconstituir em
linhas gerais a primitiva disposição interna do hospital (fig.14).
Fig.14 - Reconstituição aproximada da planta baixa original do
hospital da Sociedade Beneficência Portuguesa,
construído entre 1873 e 1876.
Desenho executado com técnica digital a partir
de planta existente no AHSP datada de 1915.
Autoria arq. Eudes Campos, 2010.
Galgando um estreito lance de escada que partia do jardim fronteiro e terminava num pequeno patamar,
ascendia-se ao pavimento principal, onde a porta de ingresso dava passagem a um amplo vestíbulo. Uma vez no
interior do estabelecimento, o visitante ou podia dirigir-se a uma das duas salas posicionadas à direita e à
esquerda do saguão (sala de visitas e sala da administração, talvez), ou então seguir em frente rumo à capela,
cujas janelas deitavam para uma área central descoberta. (Tanto a forma da escada externa, como a posição da
capela resultaram de uma modificação introduzida no projeto original pela mesa diretora do hospital em 1873,
antes do início das obras, havendo sido feitas essas alterações com consentimento e aprovação do autor, o
arquiteto Cantarino, conforme atestam as atas das seções de
diretoria). De cada lado da capela e projetando-se
para a parte posterior do edifício, desenvolviam-se duas alas com seis grandes quartos cada uma. Nesses quartos
eram acomodados os doentes em pequenos grupos, certamente separados segundo a moléstia que os acometia e o sexo
a que pertenciam. No fundo, disposto no sentido transversal, unindo as duas alas longitudinais, estava agenciado
amplo refeitório, mais tarde transformado em enfermaria. Algumas das aberturas do refeitório comunicavam-se
diretamente com uma varanda situada na parte traseira da edificação. Protegida por uma cobertura apoiada em
colunas de ferro, essa varanda, por meio de uma escada, estabelecia a ligação externa do primeiro andar com o
rés-do-chão. Nos prolongamentos das alas que ultrapassavam o refeitório e delimitavam lateralmente um pátio
existente atrás, distribuíam-se vários compartimentos de serviço, essenciais ao funcionamento do hospital.
Supomos que por essa época já estivesse o porão ocupado por dependências de caráter secundário.
O partido adotado, com alas formando um grande retângulo em cujo interior se abria uma área de iluminação e
ventilação, revelava extrema simplicidade na divisão dos cômodos – para não dizer certo simplismo. Com o
tempo, foram crescendo as exigências do programa de necessidades a ser atendido pela instituição,
tornando-se indispensáveis o aumento, a repartição ou a unificação das peças, a adição de anexos e a
abertura de novas janelas. Na mais importante dessas intervenções, datada do final do século XIX, promovida
pelo benemérito de origem açoriana José Coelho Pamplona (1843-1906), a fachada foi ampliada para 42 m de
largura, sendo revestida com uma pesada decoração externa de gosto eclético, na qual se incluíam nichos com
relevantes figuras da história lusitana, ocasião em que foi, sem dúvida, acrescido um anexo ao flanco
direito do hospital, reservado à sala de operações. O térreo, com tratamento arquitetônico de porão,
já estava todo ocupado nessa época, com cozinha, despensa, sala de refeitório para convalescentes,
quartos de banho de chuva, vestiários, sala hidroterápica, e toilletes. Em 1915, procurava-se
sobretudo aproveitar melhor a área do pavimento inferior, tendo sido necessário rebaixar o piso
para aumentar o pé-direito dessa parte da construção.
O projeto original do edifício hospitalar (1866) era, como visto, de autoria do arquiteto Cantarino.
Aparentemente este profissional, proveniente do Vale do Parnaíba, ficou pouco tempo na Capital (se é
que aqui esteve de fato), pois já no ano seguinte surgia em Campinas reconstruindo ou reformando o Teatro
São Carlos, numa bela versão luso-brasileira do estilo Império, e riscando o frontispício da matriz local,
que, segundo informações contemporâneas, era de estilo “romano”, o que neste caso deve ser interpretado
como de estilo neoclássico, e não neo-renascentista como seria entendido
depois. Em 9 de fevereiro de 1867,
o administrador de obras da matriz nova daquela cidade, Antônio Carlos Sampaio Peixoto, comunicava que havia
ajustado à sua custa
para riscar e dirigir todos os trabalhos da fachada da mesma [matriz] o mui habil architecto Manoel Goncalves [sic] da Silva
Cantarino, bem conhecido nas Provincias do rio [sic] de Janeiro e S. Paulo [...]
Em nossa opinião deve-se ver em Cantarino um daqueles talentosos mestres de obras portugueses que se especializaram em
projetos arquitetônicos, atribuindo por isso a si mesmos o título de
arquiteto. Provavelmente trabalhara na
Corte antes de, hipoteticamente, se transferir para o Vale do Paraíba. Depois teria seguido a rota do ouro
verde até Campinas, então florescente com a economia do café e do algodão.
Como é lógico, dificilmente um pretenso mestre de obras português estaria à altura de um encargo de tamanha
responsabilidade, quanto era o projeto de um grande hospital. A esse respeito manifestou-se o engenheiro-arquiteto
alemão Luís Schreiner (1838-1892) em 1880, ao constatar a insalubridade da maioria dos hospitais brasileiros de sua
época. Indagando por que não eram corretamente adotadas as prescrições sanitárias tão pertinentes e já tão antigas –
pois remontavam a um plano especial criado na França em fins do século XVIII que permanecia plenamente válido –
ele próprio respondia da seguinte maneira:
Não obstante estar eivado de evidentes interesses corporativos sempre em choque com os profissionais não diplomados,
esse trecho não se afasta da verdade ao afirmar que eram os engenheiros os profissionais mais aptos, por
sua formação científica, a enfrentar a crescente complexidade que o ato de projetar estruturas hospitalares
vinha apresentando ultimamente, embora seja forçoso admitir que ser engenheiro não era condição suficiente,
à vista do que dizia o engenheiro e higienista francês Casimir Tollet (1828-1899) a propósito da construção de hospitais:
Hospitais vistos como fatores de desenvolvimento urbano
Ainda relativamente ao hospital de que vimos tratando, temos notícia de um caso que não deixa de ser curioso. Na época
em que se pretendia iniciar as obras de construção, a localização do edifício chegou a ser objeto de controvérsia,
tendo o médico da Câmara Francisco Honorato de Moura dado um parecer contrário à realização do projeto num
terreno para isso adquirido pela Sociedade Portuguesa de Beneficência, terreno esse situado na Rua Alegre, esquina
com a posteriormente chamada Rua da Beneficência.
Em fins de 1872, a sociedade se mostrava interessada em dois lotes situados na Rua Alegre, pois resolvera não
levar adiante a ideia de construir o hospital no imóvel que possuía na Rua São João. Na primeira tentativa de compra,
a instituição filantrópica decidiu-se por um terreno pertencente à antiga chácara do falecido Brigadeiro Tobias (1795-1857),
então nas mãos de seu filho Antônio Francisco de Aguiar e Castro (18??-1905), mas essa transação não prosperou. A seguir,
a instituição recebeu uma proposta muito favorável do Comendador Antônio de Aguiar Barros (1823-1889), futuro Marquês de
Itu, dono do lote em que seria finalmente erguido o hospital. Não há dúvida de que o vendedor, ao fazer uma proposta
irrecusável, tinha por objetivo atrair a construção do hospital para promover a valorização de suas
propriedades.
Ao ser consultado a respeito da conveniência de se levantar o hospital da Beneficência na Rua Alegre, o médico de
partido emitiu um parecer decididamente desfavorável. Na visão dele, que era a prevalecente na época, o novo
local escolhido pela Beneficência estaria em breve totalmente ocupado por edificações residenciais e isso, além de
configurar uma ameaça à salubridade do hospital que pretendiam construir, ensejaria que os futuros vizinhos se dessem
mais tarde por incomodados com a presença do nosocômio e censurassem a imprevidência da concessão. Para melhor fundamentar
seu parecer, recorreu o funcionário da Câmara à opinião do ilustre médico Ambroise Auguste Tardieu (1818-1879), de quem
citava trecho do Dictionnaire d’hygiène publique et de salubrité (1852-1854). Primeiramente, tal como estava sendo
proposto, e ao contrário do que prescrevia o sábio francês, considerava desnecessário que o hospital se situasse em
lugar alto e ventilado, pois a Capital por sua situação elevada sobre o nível do mar e por sua climatologia especial
permitia que se dispensasse esse cuidado. Concordava, em consequência, com o fato de que preferissem os membros
da sociedade beneficente erguer o estabelecimento em local cortado por água corrente, ou acessível à derivação
do encanamento existente (o que nos faz supor fosse a instituição suprida pelo canal que vinha do Tanque Reiuno,
situado atrás da igreja da Consolação, e que levava água ao Jardim Público, passando pelas imediações);
insistia muito porém na condição expressa por Tardieu – e que seria desconsiderada pela futura construção –,
relativa ao posicionamento do hospital em sítio pouco povoado, onde houvesse ar puro e espaço, sem a agitação
e o ruído da cidade. Apesar da coerência dos conceitos emitidos, conforme os critérios baseados em teorias
neo-hipocráticas então vigentes, a Câmara, a quem era dirigido o parecer, pressionada sem dúvida pelos
importantes personagens envolvidos na transação comercial, manteve-se insensível à argumentação científica e,
em votação, acabou por deferir por unanimidade o requerimento apresentado pela
instituição interessada.
Esse episódio nos leva a cogitar que, já naquele tempo, maiores que o temor da contaminação dos ares inspirado
pela presença inoportuna de um hospital construído muito próximo da área urbana eram as vantagens econômicas
que essa presença trazia, sob a forma de valorização das propriedades imobiliárias estabelecidas em seu derredor.
Afinal, um estabelecimento deste tipo acabava, cedo ou tarde, atuando como verdadeiro fator de desenvolvimento
urbano da região em que se encontrava localizado. Tanto isso era verdade que, dois anos mais tarde, o Coronel
Rafael Tobias de Barros (1830-1898), futuro segundo Barão de Piracicaba, primo de Antônio de Aguiar de Barros,
erguia, sem nenhum constrangimento, o seu vistoso palacete na vizinhança imediata do hospital, numa clara
indicação de ao se tratar de questões fundiárias as recomendações médicas começavam a perder a importância
perante puras considerações de natureza econômica.
Aliás, não foi essa a única vez que especuladores atraíram um hospital para terras que pretendiam valorizar e
parcelar. Em 1878, o rico português Antônio José Leite Braga, proprietário da antiga Chácara do Bexiga, então em
processo de loteamento, também ofereceu terreno nessa localidade para que a Santa Casa de Misericórdia construísse
o seu novo hospital. E pouco depois (1880), membros da importante família Pais de Barros, cujos membros estavam aos
poucos se transferindo de Itu para a Capital, com explícitos interesses fundiários nas terras no Arouche – entre eles
o mesmo Antônio de Aguiar Barros, futuro Marquês de Itu, que estivera envolvido anos antes no caso da Beneficência –,
forçavam a transferência do futuro hospital da Misericórdia, que ia ser erguido na Bela Vista, para o lado
sudoeste da cidade, na certeza de que a presença daquela instituição de saúde estimularia a ocupação urbana das
áreas circunvizinhas; o que de fato, mais uma vez, acabou
ocorrendo. O processo de urbanização em torno do
hospital foi tão rápido que, em 1900, Alfredo Moreira Pinto fazia restrições à localização da instituição, em
razão de estar ela inserida em região já muito povoada.
A cidade de São Paulo atinge novo patamar de desenvolvimento
Sem sombra de dúvida, foi a partir dos últimos anos da década de 1870 que teve início uma nova etapa na
construção de edifícios públicos em São Paulo, em especial de edifícios hospitalares. O relativo descaso com
que era enfrentada a questão da saúde pública durante o Império, conseqüência entre outros fatores do liberalismo
predominante na Constituição de 1824, foi aos poucos sendo substituída por uma atitude mais responsável por
parte das autoridades governamentais, que, durante a República, não hesitariam em lançar mão de um enérgico
autoritarismo para conseguir alcançar seus objetivos salubristas. E a razão disso era que o interesse pela
intensificação da corrente migratória para servir de mão de obra nas florescentes lavouras de café do Oeste
paulista poderia sofrer sérios riscos caso não fossem tomadas urgentes providências de natureza sanitária.
A melhoria das condições da assistência hospitalar, então dedicada ao atendimento das faixas mais pobres
da população, não deixava agora de ser assim outra faceta da política imigrantista. Pois, se, por um lado,
denunciava a inquietação da camada senhorial com sua própria segurança higiênica, por outro revelava o seu mais
vivo interesse pela reprodução da nova força de trabalho que então se constituía e que, dentro em breve, deveria
substituir completamente a agora indesejável mão de obra escrava.
Não era à toa que nos últimos tempos membros pertencentes à mais alta camada da sociedade paulistana passaram a
participar ativamente da administração de entidades assistenciais. O caso da Santa Casa de Misericórdia é,
sob esse aspecto, paradigmático. No século XVIII, os governadores portugueses da Capitania de São Paulo
foram obrigados a ocupar a provedoria da irmandade como forma de favorecer o desenvolvimento da instituição.
No século XIX, os primeiros presidentes da Província mantiveram essa tradição, para prestigiar uma confraria que
de outra forma corria o risco de entrar em decadência. Mas a partir dos meados dos Oitocentos, elementos da
elite social da cidade passaram a fazer questão de participar da composição da Mesa da Santa Casa, rivalizando-se
entre si em obras de desinteressada benemerência. Antônio da Silva Prado (1778-1875), Barão de Iguape, por exemplo,
banqueiro e empresário muito rico, ocupou o cargo de provedor de 1847 a 1875. Sua filha ilustre, D. Veridiana (1825-1910),
destacou-se nesse período por ter custeado a reforma do hospital da Glória, entre 1872 e 1875. E cinco anos mais tarde,
40 membros ligados à família rival dos Prado, os Pais de Barros, conseguiram entrar na Santa Casa como irmãos.
Alguns deles fariam grandes doações durante a construção do hospital no Arouche, alcançando com esse gesto cobiçados
títulos nobiliárquicos do Império, enquanto três membros dessa prestigiosa família ocupariam a provedoria da
Misericórdia entre 1886 e 1900, sem contar que mais um membro seria alçado ao cargo de provedor no ano compromissal
de 1902-1903 e entre os anos de 1905 e 1917.
A partir dos anos 1870, a cidade de São Paulo atingia novo estágio de desenvolvimento. É comum na historiografia ser
assinalado como novo marco da vida urbana da Capital o governo do Presidente João Teodoro (1872-1875). De fato, desde o
tempo do Presidente Fernandes Torres (1857-1860), não se executavam tantas obras públicas em São Paulo. No entanto,
as obras de iniciativa municipal custeadas pelo governo da Província no tempo de João Teodoro têm merecido um destaque
um tanto exagerado e acrítico por parte dos historiadores. Em estudo recente, tentamos demonstrar que a maioria das obras
então encetadas mantinham ainda um ranço de improvisação e incompetência técnica, incompatível com a mentalidade burguesa
que aos poucos se constituía. Embora o governo provincial tenha custeado a abertura de ruas, a pavimentação de vias públicas
com paralelepípedos, a construção de pontes, a arborização de logradouros, etc., quase tudo foi mal executado, sem planejamento
e com muito abuso por parte dos empreiteiros de obras públicas. Situação que só melhoraria na administração de seu sucessor,
Dr. Sebastião José Pereira (1875-1878).
Depois de uma fase de crescimento tumultuado experimentada por São Paulo entre os anos de 1880 e 1900, em razão
das sucessivas ondas migratórias que acabavam trazendo trabalhadores urbanos que se fixavam na Capital –
época em que o industrialismo começou a deixar impressas as primeiras marcas indeléveis na cidade –,
grandes intervenções urbanas remodeladoras seriam encetadas a partir das décadas seguintes,
período em que foi concebido e parcialmente aplicado o famoso Plano Bouvard (1911). As obras públicas então
realizadas, pertencentes ao período das administrações municipais dos primeiros prefeitos paulistanos,
Antônio Prado (1898-1911), Raimundo Duprat (1911-1914) e Washington Luís (1914-1919),
prolongar-se-iam em alguns casos até 1930. Atuantes no princípio do século XX, esses administradores
não se distanciaram do espírito do higienismo, ao promoverem alargamentos e retificações viárias,
demolições de cortiços e arborização de logradouros. Recorrendo a métodos coercitivos e autoritários, tinham por
objetivo não apenas sanear a área central da cidade, mas aprimorá-la do ponto de vista viário e estético,
propiciando a decorrente valorização social e fundiária da região atingida pelos trabalhos de reurbanização.
Hospitais paulistanos de partido higienista
Hospital dos Variolosos (1878-1880)
Uma das primeiras iniciativas da nova fase da cidade de São Paulo, mais tarde representada no âmbito da saúde pública pela
criação da Inspetoria de Higiene Provincial (1886) e do serviço de higiene (1888), foi a construção do Hospital de Variolosos
(1879-1880), de iniciativa municipal.
Previsto desde 1875, foi erguido no Araçá (atual Avenida Dr. Arnaldo),
numa bifurcação do caminho dos Pinheiros (Avenida Rebouças), pouco adiante dos limites do rossio paulistano, tal
como prescreviam as normas sanitárias pré-assépticas estabelecidas para hospitais de doenças infecciosas. O seu
plano foi feito desinteressadamente por um engenheiro de renome, Inácio Wallace da Gama Cochrane (1836-1912),
médico nascido em Valença (RJ), formado na Corte, e desde alguns anos estabelecido na cidade de São Paulo.
Conforme constava do relatório do Conselheiro Antônio Prado (1840-1929), presidente da Câmara Municipal,
lido perante os novos vereadores em 1881, o hospital fora “construido com todas as condições exigidas e
collocado em excellente local”, o que significava dizer, em local retirado, alto e bastante ventilado, com
ventos predominantes que levavam o ar infectado pelos miasmas gerados no hospital para longe da cidade.
Deste hospital conhecemos a representação que dele fez o litógrafo francês Jules Martin (1832-1906) na época da
construção do estabelecimento (fig.15) e a zincogravura de autoria de Theodor Wendt, publicada na Revista Medica
de S. Paulo nos anos iniciais da República (fig.16).
O programa original do hospital pode ser reconstituído hoje
a partir de informações veiculadas na impressa especializada por ocasião da conversão do pavilhão, conhecido desde
então como o de n. 3, ao tratamento de doentes de escarlatina. O texto então publicado dizia:
Pavilhão n. 3 – Escarlatina
Compõe-se de um corpo central e duas alas lateraes. Nestas estão as enfermarias (duas de cada lado) para oito
leitos cada uma. No corpo central ha um salão e dez quartos destinados a doentes de classe. Como no pavilhão
n. 2 ha annexas a este [sic, por oeste] as mesmas dependencias destinadas á copa, sala de distribuição de dietas,
refeitorio e dormitorios dos empregados do pavilhão.
Fig.15 - Hospital da Câmara, ou de Variolosos.
Desenho de Jules Martin, por volta de 1880.
Acervo Museu da Cidade de São Paulo, DPH, SMC,
da Prefeitura da Cidade de São Paulo.
Fig.16 - Ilustração publicada na Revista Médica de S. Paulo,
mostrando o estado do antigo Hospital de Isolamento, então Pavilhão n. 3.
Zincogravura de autoria de Th.Wendt, c. 1900.
Acervo Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP.
Tratava-se portanto de um edifício comprido, concebido no sistema linear, com duas enfermarias em cada ala lateral,
uma para cada sexo, tendo um corpo central volumoso, ocupado por dez quartos para doentes pagantes e um amplo salão
provido de um grande ventilador na cobertura. A esta construção se acrescia um apêndice de serviços na parte posterior,
acessível a partir do corpo principal por meio de um passadiço. Embora protegido por telhado e paredes, esse passadiço
estaria, sem dúvida, provido de algum dispositivo que permitisse a ventilação contínua de seu interior, pois,
na ótica higienista, só a ininterrupta ventilação dessa passagem iria impedir que a contaminação se alastrasse para
a parte de serviços, onde repousavam os funcionários do hospital. Da mesma forma, a função do grande ventilador
existente no alto da cobertura era assegurar a permanente renovação do ar no interior do prédio principal, por meio
de constante tiragem.
Ainda em 1894 eram consideradas pelo Secretário dos Negócios do Interior Cesário Mota Júnior (1847-1897) plenamente
satisfatórias as condições desse hospital:
uma construcção digna desse nome, vasto edificio em excellente posição, com bastante ar e luz, preenchendo perfeitamente
o seu fim.
Anos mais tarde, porém, esse prédio passaria por uma grande reforma, objetivando sua melhor higienização. O
telhado foi alterado, havendo sido retirado o ventilador original e substituído por uma área aberta, cujo propósito
seria elevar ainda mais o índice de renovação de ar na parte interna do hospital (fig.17). Quanto aos respiradouros do
porão, foram alargados, sendo substituídos por amplas aberturas em arco, que possibilitassem o acesso para a varredura
regular do local, de modo a impedir, segundo a concepção higienista, o acúmulo de material infectado na parte inferior
da edificação. Por fim, o edifício foi derrubado em 1957, depois de ter perdido a ala esquerda com a construção anos
antes do Instituto Adolfo Lutz, localizado nas imediações.
Fig.17 - Pormenor do Mapa SARA Brasil de 1930 (Folha 50/13, escala 1:1000),
mostrando a projeção horizontal do antigo Hospital de Isolamento, depois Pavilhão n. 3.
O mapa mostra a cobertura alterada do pavilhão,
com uma área de aeração e iluminação no lugar do antigo lanternim.
Acervo AHSP.
Hospital da Santa Casa (1881-1884), no Arouche - hoje Vila Buarque
Mas sem dúvida a construção hospitalar mais significativa da cidade, iniciada ainda na época monárquica, foi a nova
sede do Hospital da Santa Casa de Misericórdia, que teve seu projeto selecionado num dos primeiros concursos exclusivos
para engenheiros-arquitetos realizados na Capital (1879) (fig.18 e 19). Luís Pucci (1853- 19??), engenheiro-arquiteto
de naturalidade italiana cuja presença na Província está documentada desde 1876, segundo consta, autor do plano
classificado em primeiro lugar, adotou para esse estabelecimento o sistema tido na ocasião como o melhor, diante dos
resultados positivos que vinha apresentando no combate à mortalidade hospitalar: o sistema de
pavilhões.
Fig.18 - Desenho da proposta original para a fachada do hospital da Santa Casa de Misericórdia
a ser erguido no Arouche, atual bairro de Vila Buarque.
Autoria do engenheiro-arquiteto italiano Luís Pucci (1853-19?), 1879.
Fonte: CARNEIRO, Nelson. O poder da Misericórdia. São Paulo: s.n., 1986. 2v. V1
Fig.19 - Pormenor do mapa SARA de 1930 (Folhas 50/5 e 50/10, escala 1:1000),
mostrando a projeção horizontal do Hospital da Santa Casa de Misericórdia.
Acervo AHSP.
A origem desse sistema remontava ao século anterior, tendo sido recomendado por uma comissão nomeada pela
Academia de Ciências de Paris nos últimos anos do Antigo Regime (1786). Só foi internacionalmente reconhecido
após o sucesso alcançado pelo hospital Lariboisière, antigo Louis-Philippe, de Paris, projetado pelo arquiteto
Martin-Pierre Gauthier (1790-1855) em 1839 e construído entre 1846 e
1854 (fig.20). Florence Nightingale (1820-1910),
ardente defensora da teoria miasmática, conhecia e recomendava esse sistema, considerando-o o que de mais aperfeiçoado
havia para estruturas hospitalares de grande porte (Notes on hospitals,
1859).
Fig.20 - Planta do Hospital Lariboisière, originalmente chamado Louis-Philippe,
em Paris. Projeto do arquiteto Martin-Pierre Gauthier (1790-1855),
datado de 1839 e construído entre 1846 e 1854.
Protótipo oitocentista do partido de pavilhões.
Fonte: MIGNOT, Claude. L’architecture au XIXe siècle.
Fribourg: Office du Livre, 1983.
No sistema pavilhonar, as enfermarias alojavam-se, em geral, em construções independentes de um único pavimento
(no Lariboisière, porém, as enfermarias têm três pisos). Eram postas em comunicação por meio de longas galerias
ou corredores e esses elementos de circulação formavam os lados maiores de um grande pátio central de forma quadrangular.
Na frente desse pátio concentrava-se a administração; no fundo, erguia-se a capela e demais dependências.
Os pavilhões partiam em ângulo reto dos dois corredores, para o lado de fora. Posicionados lado a lado,
eram separados por amplos jardins, que serviam não apenas para passeio dos convalescentes, mas sobretudo
para promover a purificação da atmosfera nos arredores do estabelecimento hospitalar, por meio da permanente circulação de ar.
A proposta de Pucci não introduzia modificações nesse partido criado sob o influxo das teorias neo-hipocráticas,
cuja grande vantagem, de acordo com os critérios profiláticos da época, era que as enfermarias recebiam abundante
iluminação e insolação (no caso paulistano as janelas voltavam-se para leste e para oeste) e que a intensa circulação
não permitia houvesse recantos com ar estagnado. E era isso que, conforme as pesquisas demonstravam, fazia cair
vertiginosamente a taxa de mortalidade entre os doentes.
Pucci, no memorial que fez acompanhar o seu projeto, indicava ainda outros aspectos positivos:
evita-se com esta disposição o ajuntamento demasiado de doentes, formando cada enfermaria um pequeno hospital,
com a vantagem que os commodos de serviço são communs a todos elles. Outra vantagem das salas isoladas e
relativamente pequenas, é que se podem separar os doentes segundo as differentes enfermidades, e até em caso de
doenças contagiosas pode-se segregar completamente uma ou outra enfermaria.
A comissão encarregada da organização do concurso para seleção do projeto do novo hospital, por meio de editais
publicados em fevereiro de 1879 no jornal A Provincia de São Paulo, definiu o programa de necessidades da futura
sede da instituição. Aparentemente, pela primeira vez eram arroladas de modo prévio as acomodações de um hospital
em São Paulo, não deixando ao sabor do acaso ou da concepção do projetista o estabelecimento das bases de funcionamento
de um estabelecimento hospitalar. A comissão estava decidida a alcançar as condições ideais recomendadas
pela higiene e o edifício hospitalar deveria ser planeado conforme “as regras e sistemas mais apropriados a esse gênero de construção”.
Constavam do programa exigido: enfermarias para o número total de 200 a 250 leitos; sala de porteiro e
recepção dos doentes; gabinete médico, sala de conferências médicas, sala de cirurgia e autópsia, cômodos para
médico residente; farmácia; cômodos para dez irmãs de caridade (que já trabalhavam no antigo hospital da Glória
desde 1872), enfermeiros e mais pessoal de serviço; rouparia; refeitório, sala dos convalescentes,
despensa e cozinha; capela, sacristia, necrotério e cômodos para o capelão; salão da Provedoria, arquivo e
dependências; biblioteca; Roda de Expostos, cômodos para criação e educação dos expostos e ingênuos; casa
de banhos e duchas; lavanderia; sala de trabalhos de costura e engomagem.
Iniciado em 1881, o hospital da Santa Casa foi inaugurado inacabado em 1884. O jornal A Provincia de São Paulo,
na edição de 2 de setembro desse ano descreveu o estágio em que se encontravam as obras:
Ante-ontem na capella provisoria do novo hospital do Arouche fez-se a festa da visitação de Nossa Senhora.
Por causa da mudança dos enfermos que estavam no velho hospital da rua da Gloria, a festa deixou de ser
celebrada como tradicionalmente no dia 2 de Julho.
A casa foi franqueada aos visitantes.
Percorremos todos os compartimentos.
O edifício tem de dimensão 142 metros de frente sobre 132 de fundo.
Ha uma parte principal na frente dividida em dous compartimentos, um para a administração do hospital,
o outro para o asylo des expostos.
Parallelamente á parte da frente ha oito raios destinados aos doentes. Pela sua posição satisfazem
plenamente ás condições hygienicas; são arejados por todos os lados.
Apenas quatro destes raios estão promptos; os outros estão com os alicerces levantados.
Entre esses raios, que formam edifícios independentes e o corpo geral da casa ha um grande pateo.
A grande porta da entrada será construída neste pateo e enfrentando á porta levantar-se-á a capella.
A parte do edifício que estende-se por traz da capella já está com todos os commodos de serviço terminados.
Entre cada par de raios construir-se-á um jardim de 16 metros de largura.
Cada raio compõe-se de uma enfermaria para 28 camas; uma sala com 4 camas para convalescentes, 2 quartos
independentes para doentes de certa gravidade, um quarto grande para o enfermeiro, um dito de banho, duas latrinas e um lavatorio.
Um portico geral, que dá para a rua, abre a communicação de todos os raios e dependencias da casa.
A frontaria já está principiada; os alicerces elevam-se a 2 metros.
Estende-se um grande terraço por toda a frente das quatro enfermarias, donde se goza de excellente vista.
O calçamento da frente será feito todo de pedra de cantaria.
O estilo das obras é gothico.
Os corredores são abobadados.
Os tectos não abobadados são forrados de estuque. Nesse trabalho não entrou madeira.
Visitamos a pharmacia, a cosinha onde ha um excellente fogão, dormitorios de empregados, refeitorio, encontrando tudo na maior limpeza.
Alguns doentes, com quem conversamos, disseram que o tratamento é excellente.
Ha nas enfermarias 101 doentes; na casa dos expostos contam-se 36 creanças.
Informaram-nos que approximadamente tem se despendido com as obras 410 contos. É de lamentar que desde já não hajam
meios para concluil-as. [...]
Como vimos acima, o repertório formal e decorativo usado por Pucci para revestir um tipo edificatório hospitalar de
criação setecentista, gerado no seio da cultura arquitetônica do Classicismo francês, foi um estilo arquitetônico de
tradição romântica do século XIX, o neogótico, em versão lombarda. Esse fato nos leva a chamar a atenção para a
dissociação que então se impunha entre a sintaxe compositiva e o vocabulário formal dos edifícios, dissociação praticada
na arquitetura européia desde, ao menos, os ensinamentos do teórico francês J. N. L. Durand (1760-1834), e tida
como um dos traços mais marcantes da arquitetura historicista e eclética então em vigor.
Pretendeu-se ver na escolha desse estilo uma decisão de caráter estritamente religioso, imposta pelo então provedor
da Santa Casa, monsenhor João Jacinto Gonçalves de Andrade
(1825-1898). Mas a verdade é que o revivalismo
medievalizante – que se infiltrava tardiamente nos centros adiantados do País por essa época, mostrando-se
muitas vezes em edifícios de natureza laica ou profana –, estava, como assinalado por
Luciano Patetta,
intimamente ligado às convenções do ecletismo tipológico-estilístico e às concepções de modernidade e civilização,
constituindo por esse motivo uma sedutora tentação em relação aos estilos classicistas então em voga. Ademais, no
caso específico de construções hospitalares, sabe-se que havia, ainda, uma importante razão de cunho
técnico-profilático a justificar o uso de abóbadas ogivais na arquitetura das enfermarias dos hospitais de
partido higienista. Segundo a concepção miasmática, o ar infectado produzido no interior dos hospitais ascendia
num movimento natural até o teto das enfermarias, e, de algum modo, deveria ser expelido para fora do edifício
para não se manter em contato com os doentes e os demais frequentadores do local. No sistema desenvolvido a
partir de 1872 pelo já citado engenheiro francês Casimir Tollet, objetivando garantir a sanidade dos
ambientes hospitalares, a ascensão do ar viciado ficava facilitada pelo perfil ogival do teto das enfermarias.
Uma vez concentrado no alto das abóbadas, o ar interno escapava tanto pelos óculos agenciados na parte superior
das paredes extremas das enfermarias, quanto por chaminés distribuídas ao longo dos pontos mais altos do teto abobadado.
Além disso, existiam nos interior das paredes, dutos, em espaçamentos regulares, que se encarregavam de retirar o
ar junto ao piso desses ambientes (fig.21). A criação de um tal sistema de ventilação levou o historiador francês
Claude Mignot a tecer o seguinte comentário: “significatif écho hygiéniste de l’interprétation rationaliste de
l’architecture gothique”.
Fig.21 - Corte de uma enfermaria segundo o sistema Tollet,
criação de Casimir Tollet (1828-1899).
Fonte: MIGNOT, Claude. L’architecture au XIXe siècle.
Fribourg: Office du Livre, 1983.
No caso paulistano, contudo, é possível que o engenheiro Pucci ignorasse o uso profilático das abóbadas ogivais,
já que as enfermarias por ele projetadas para o hospital da Santa Casa não eram abobadadas, mas sim forradas
com tetos planos estucados.
Continua >
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Para citação adote:
CAMPOS, Eudes. Hospitais paulistanos: do século XVI ao XIX.
INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 6 (29): abr/jun.2011.
<http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>
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