PMSP/SMC
São Paulo, dezembro de 2014
Ano 10 N.37 

Abertura | Acervo Bibliográfico | Ensaio temático | Mosaico 1:1.000 e 1:5.000 | Notícias | Ns.anteriores

  • ENSAIO TEMÁTICO
  • S.A.R.A. Brasil:
    restituindo o Mapa Topográfico do Município de São Paulo


    breve história da aerofotogrametria nas cidades do Rio e São Paulo na década de 1920



    | Anos 10 | Rio de Janeiro | São Paulo | SARA Brasil | Desafios | Anexos | Notas & Fontes |



    Preâmbulo necessário: Rio de Janeiro

    Em 1928, quando Prefeito da cidade de São Paulo José Pires do Rio (1880-1950)57, é promulgada a lei nº 3.203, de 17 de julho, que o autoriza a contratar o “levantamento topográfico do município, pelo processo que julgar mais conveniente e mediante concorrência pública”, conforme ementa. O texto legal é lacônico. Seus quatro artigos pouco informam, além de autorizar a entrar em acordo com o governo estadual para eventual parceria no empreendimento. E, não houvesse registro alternativo, mascararia assim as discussões e proposições por trás dele. Voltemos um pouco mais no tempo, fazendo uso dos anais da Câmara Municipal, aos primeiros dias de março daquele ano.

    A sessão da casa legislativa, em 3 de março, registra a entrada do ofício nº 265, do Senhor Prefeito, em que solicita autorização para contratar a empresa Junkers Flugzeugwerk A. G. para realizar o levantamento aerotopográfico do município. Segue em anexo ao ofício a carta proposta apresentada no dia primeiro58 pelos representantes da companhia sediada em Dessau na Alemanha59. O oficio é encaminhado pelos responsáveis pela sessão para apreciação das comissões de Justiça, Obras e Finanças.

    O parecer das comissões, datado de 22 de março, é apresentado na sessão da Câmara de 14 de abril. Assinado por seis vereadores, entre eles Goffredo Teixeira da Silva Telles (1888-1980)60, o texto chama a atenção pelo debate dos aspectos técnicos da proposta, no qual a participação deste parlamentar parece ser fundamental61.

    Um embate legislativo, tumultuado, ameaça de início tomar conta do debate, provocado pela forma improvisada do Executivo ao justificar a solicitação. Feita a ressalva pelos participantes das comissões, surpresos com o fato, o debate toma outro rumo62.

    O texto, em seu conjunto, surpreende por analisar os detalhes, contestar e propor novos produtos. E, antes de tudo, por justificar, ele mesmo, a necessidade do levantamento topográfico como instrumento de planejamento e controle fiscal, por exemplo, bem como a adoção do processo aerofotogramétrico, que se somam aos adotados nos trabalhos da municipalidade.
      Não há negar o interesse de um rigoroso levantamento topográfico do município.
      Bem o compreenderam sempre os poderes municipais. Para a consecução desse objetivo tendem, há longos anos, os esforços louváveis, mas forçosamente lentos, da Seção de Cadastro e Urbanismo. A planta oficial de São Paulo, fruto de um trabalho consciencioso, vai-se esboçando por partes, já se achando reunidos interessantes elementos de estudo para vários setores centrais da cidade.
      Contudo, não será exagero afirmar que a tarefa... ainda está por principiar.
      Ante o vulto do que resta por fazer, bem pequena, de fato, parece a obra executada. Por desvelados e altamente proficientes que se tenham revelado, em várias ocasiões, os engenheiros daquela repartição técnica, poucos como são eles, e sobrecarregados de um exaustivo expediente burocrático, não lograram até hoje, obstar a que a morosidade seja a principal característica de seus trabalhos topográficos. Morosidade, sobretudo, flagrante, em confronto com os processos de vertiginosa metamorfose por que vai passando a paisagem urbana da capital. Como efeito natural dessa lentidão, o cadastro da Prefeitura tem o vício inicial de nascer velho. Rigoroso, embora, geometricamente exato, mas velho. Enquanto se organizam as plantas trecho por trecho, nos escritórios oficiais, as vias públicas e as construções das áreas levantadas saem de seus alinhamentos primitivos. Quando o trabalho concluido aparece, é tarde. As poucas folhas cadastrais que se acham estampadas já valem como recordação do passado, não registrando mais os aspectos atuais de S. Paulo. E, já hoje, portanto, quando se quisesse cuidar das folhas ainda inéditas, cumpriria também, como trabalho de igual urgência, proceder à revisão das que se davam por feitas.
      Não só a escassez dos nossos quadros técnicos concorre para a lentidão dos serviços cadastrais.
      É inegável que os processos correntes de levantamento topográfico, usados ainda em São Paulo, como o foram, até ontem, em todos os países, não autorizam, pelas dificuldades naturais em que esbarram, a esperança de resultados prontos e, sobretudo, econômicos.
      Comprovam essa asserção as longas testativas (sic) levadas a efeito no Rio de Janeiro, desde quase os primeiros tempos da República, para o levantamento do Distrito Federal, empresa em que se consumiram, sem resultado compensador, quase duas dezenas de milheiros de contos.
      Cingir-se, pois, a administração paulista ao emprego único do teodolito e do taqueômetro, quando já hoje o sistema dos levantamentos aéreos permite decuplicar, com muito menor dispêndio, a rapidez e a eficiência dos processos geodésicos, é protelar sem motivo um serviço de primordial importância que o progresso da capital torna cada vez mais necessário.

      É, de fato, na aerofototopografia que se encontra a solução prática do problema.
      Compreendeu-o, em bora hora o ilustre sr. Prefeito.
      As comissões regimentais da Camara, sem embargo das objeções que vão opor à proposta do eminente chefe do executivo municipal, dirigem-lhe seus aplausos pela iniciativa com que tão oportunamente suscitou a discussão do assunto
      .
      (CMSP, Anais 1928, p.215-216)
    Surpreendente acordo e comunhão de interesses mereceriam discussão prolongada. Dois argumentos podem ser utilizados, por ora, para compreender o ocorrido de forma breve. O primeiro, motivo da parte inicial deste ensaio, é o impacto em si da aviação na sociedade contemporânea, seja pelos avanços técnicos, seja pela função simbólica dentro da experiência urbana moderna. O segundo diz respeito ao campo particular dos estudos de planejamento urbano. Nos anos 10, as estruturas oficiais em seus diversos níveis começam a dar espaço a uma geração de especialistas, que irão pensar serviços e políticas para as próximas décadas. Para ficar num exemplo de fácil compreensão, basta lembrar a figura do engenheiro Francisco Prestes Maia (1896-1965). Atuando de início em setores dedicados à viação e obras públicas nos governos estadual e depois municipal, responde por plano de reestruturação da capital em larga escala, uma das tantas iniciativas que desde meados da década de 1910 ocorrem em diferentes configurações nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo.

    Se há acordo no parecer sobre a necessidade do levantamento e sobre o método adotado, há por outro lado uma longa série de contestações. A primeira dela diz respeito ao controle de qualidade que o projeto deve respeitar: “Um cadastro faz fé ou não existe”63. Prossegue o texto apontando pontos críticos, que esclarecem também aspectos sobre as diferentes etapas do processo, que encontrarão, na forma final da lei ali proposta, detalhamento técnico pertinente64.
      Entre os riscos de ordem técnica, para essa classe de levantamentos, existem, por exemplo, o das derivações que falseiam os planos, motivadas pela falta de perpendicularidade dos aparelhos; o das inobservâncias da altitude prefixada, que determinam erros de escala só aparentemente corrígiveis com ampliações ou reduções dos positivos fotográficos, o da inexatidão das cotas de nível ocasionada pela insuficiência dos trabalhos de ateliê em que se procede à 'restituição' das chapas, ao preparo das provas e à composição das plantas.
      Sabem quantos se ocupam do assunto que as fotografias do operador devem ser obtidas verticalmente, frente ao solo, afim de registrar a imagem deste na mesma posição e forma em que ele deve ser posteriormente representado na planta. Sabem, além disso, que os negativos fotográficos não devem apenas seguir-se uns aos outros, mas sobrepôr-se, recortando-se uns nos outros de modo a que a área abrangida por cada um seja parcial e paralelamente recoberta pela area fixada nos negativos vizinhos.
      Qualquer inobservância desses preceitos elementares, preceitos que não só retardam como encarecem notavelmente as operações, conferiria eiva de suspeição aos resultados obtidos.

      (CMSP, Anais 1928, p.216-217)
    Resta assim à municipalidade garantir a “indiscutível idoneidade técnica” do proponente — a Junkers Flugzeugwerk —, pois não figura no processo qualquer documentação técnica comprobatória. Exigem ainda os avalistas mudanças em vários tópicos.

    Sobre as coordenadas de referência de nível e altitude, por exemplo, necessárias para a etapa de triangulação, que a proponente requer, o parecer recomenda que os dados sejam fornecidos “sem responsabilidade” da municipalidade, frente à “insuficiência dos trabalhos topográficos executados até hoje” (CMSP, Anais 1928, p.218). A preocupação sobre controle de qualidade nas diferentes fases avança em diversos momentos do parecer.
      Parece depreender-se da proposta em apreço que os trabalhos de ateliê (restituição das chapas, retificações de escala, operações com o cartógrafo, acerto ageral, acerto de detalhes, passagem à tinta, redação das plantas, etc.) serão executados em São Paulo sob as vistas dos engenheiros municipais. É, porém, indispensável que figure, no contrato, cláusula mais precisa sobre o assunto. Além do interesse de um controle direto e fácil desses trabalhos, por parte da Prefeitura, é óbvia a conveniência de serem, desde o princípio, zelosamente guardados e mantidos em São Paulo os documentos originais (chapas, folhas de campo, etc) com que se vão organizar as plantas oficiais do município.
      Já é muito que se permita, e isso por falta de oficinas adequadas entre nós, a gravação da planta e a tiragem da edição em país estrangeiro.

      (CMSP, Anais 1928, p.218-219)
    Por fim, exige-se que o levantamento adote os métodos da “fotografia aérea (fotorestituição e estereofotogrametria), combinados com os sistemas da geodésia e topografia comum”65.

    O foco passa agora para a discussão dos produtos finais a serem entregues. Contesta-se da proposta original feita pela Junkers a execução de duas plantas: a primeira na escala de 1:5.000, cobrindo área de cerca de 12.000 hectares (120 km2), relativa à parte central, urbana e suburbana de São Paulo; a segunda, na escala de 1:20.000 abrangendo todo o município. Como alternativa propõe-se, como de maior urgência, a produção de uma “planta de urbanismo em escala grande, compreendendo a cidade e o subúrbio próximo” (CMSP, Anais 1928, p.219).

    A primeira versão da lei para o edital, apresentada no parecer, prevê apenas a produção de um levantamento na escala 1:2.000, cobrindo área aproximada de 12 a 15 mil hectares (120 a 150 km). Assumiria a contratada o compromisso da realização de outros levantamentos em escalas a definir, nas mesmas condições de técnica e preço66.

    Prevê-se ainda que as pranchas do levantamento seriam entregues na forma de fotocartas, com 10 exemplares cada, além do mapa-índice67. A tiragem impressa da transcrição cartográfica corresponderia a 150 exemplares por prancha, além de um versão para “decalque” permitindo assim a obtenção de cópias de trabalho por transparência.

    Toda a memória de trabalho seria entregue à municipalidade, como estabelece o artigo 18 da proposta de lei. Incluem-se aí negativos, provas, fotocartas, folhas e cadernetas de campo, “devidamente numerados, catalogados e acondicionados”, passando a “ser exclusiva propriedade municipal, não sendo permitido à contratante fornecer a terceiro qualquer original ou cópia” (CMSP, Anais 1928, p.222).

    Aspecto chave, o custo da proposta ganha relevância, sem porém ser analisado de forma explícita. Revela, porém, na perspectiva deste ensaio, aspecto surpreendente. A comissão exige que a proponente respeite os preços por hectare — “sensivelmente mais módicos” — apresentados por ela na concorrência pública para o levantamento do Distrito Federal. Ainda assim orienta que o edital não retire a qualquer outra entidade, nacional ou estrangeira a possibilidade de concorrer com melhor oferta mantidas as garantias de idoneidade técnica e financeira.

    Ao final da sessão, o vereador Goffredo Telles pede adiamento da discussão por oito dias. Aproveitaremos aqui essa pausa para recuperar as ações desenvolvidas pelo governo do Distrito Federal para realizar o levantamento cartográfico do seu território com o emprego da aerofotogrametria. É nesse contexto, novo na historiografia sobre o Mapa Topográfico do Município de São Paulo, que será possível conhecer o horizonte da produção cartográfica naquele momento histórico no quadro de usos e fins propostos.


    O Rio de Janeiro: a gestão Antonio da Silva Prado Junior

    Prefeito nomeado, Antonio da Silva Prado Junior (1880-1955) assume a administração do Distrito Federal em novembro de 1926, com o início do mandato presidencial de Washington Luís (1869-1957).

    Engenheiro, de tradicional família paulista ligada à agricultura cafeeira, com grande presença na política, filho do conselheiro Antonio Prado (1840-1929), que fora o primeiro prefeito da capital paulista, Antonio Prado Junior exerce seu mandato na administração do Distrito Federal até outubro de 1930, quando irrompe a Revolução de 1930.

    Reveste-se, com grande expectativa, sua primeira mensagem ao Conselho Municipal em primeiro de junho de 192768. O quadro apresentado nesse discurso é ao mesmo tempo um balanço da situação encontrada e um conjunto de ações para sua gestão. Destas ações, o primeiro segmento traz um extensa relação de obras viárias na cidade, mas são dois itens finais do bloco II – Obras e Viação, que têm relevância aqui.

    O primeiro — Urbanismo — diz respeito ao convite feito ao urbanista francês Alfred Agache (1875-1959) para realizar algumas conferências afim “de desenvolver o interesse público pelos problemas de urbanismo, criando assim, uma atmosfera favorável à execução de melhoramentos na cidade. (...)”. Entre as conferências programadas, embora não mencionada na transcrição nos jornais, incluia-se aquela intitulada A fotografia aérea e as plantas da cidade (PAMPLONA, 2014, p.30).
      O Sr. Alfred Agache, arquiteto laureado, secretário geral da Sociedade Francesa dos Urbanistas, e autor consagrado de várias obras sobre a construção e reconstrução de cidades, aldeias e cidades-jardins, possui, pelos seus trabalhos executados com êxito, a autoridade científica para nos explicar, não só como o problema de urbanismo se apresenta aos técnicos, mas, também, para indicar o modo mais prático de atacar esse problema, passando depois ao estudo do plano regulador e, enfim, como deverá funcionar, no futuro, a direção desse mesmo plano.
      As conferências do Sr. Agache serão feitas: - umas para o público; outras para os técnicos, arquitetos, engenheiros, etc.; e mais outras para as autoridades municipais e funcionários da diretoria de obras e viação.

      (O Paiz, RJ, 3 de junho de 1927, p.1)
    O último item do bloco introduz por fim a proposta daquela que será a primeira cobertura topográfica de grandes centros urbanos brasileiros por meio da aerofotogrametria. Ainda em sua fase inicial, a transcrição integral do tópico permite identificar os produtos programados e agentes envolvidos. A sua gênese, em ação paralela ao convite a Agache, e o contexto do discurso do Prefeito indicam minimamente a ambição das obras propostas e o investimento em instrumentos de apoio.
      Carta Cadastral69Levantamento estereofotogramétrico — No sentido de organizar, de modo rápido e exato, a planta topográfica do Distrito Federal com os precisos detalhes, compreendendo o assinalamento e a localização dos próprios municipais, entrei em conversação preliminar com o Sr. capitão Ronald Mac Nell (sic) a respeito do respectivo levantamento pelo método estereofotogramétrico com o auxílio de aviões.
      O capitão Mac Nell propõe-se a fornecer, dentro de menos de um ano, seis grupos de plantas fotográficas da área urbana e suburbana do Distrito Federal, de mais ou menos 300 quilômetros quadrados nas escalas de 1:2.000 e de 1:5.000, bem como uma planta fotográfica de toda a área do Distrito Federal na escala de 1:50.000.
      Excusado me parece encarecer a necessidade e importância desse serviço e, em tempo oportuno, uma vez examinada a proposta do Sr. Mac. Nell tratarei do assunto em mensagem especial.
    Sobre o capitão Mac Nell — Ronald Frank Rous McNeill70 —, nova referências surgem mais a frente. A presença britânica na aviação é, coincidentemente, foco de artigo na imprensa local. O periódico carioca Wileman's Brazilian Review, em sua edição de 9 de junho, comenta o progresso britânico no setor71. Entre as áreas do setor com crescente interesse comercial destacaram-se em 1926 as voltadas para levantamentos aéreos (“air survey”).

    O articulista cita expressamente o envio previsto para dezembro de 1927 de equipe da Aircraft Operating Company (AOC) ao norte da Rodésia, ex-colônia britânica hoje dividida entre Zimbawe e Zâmbia, para registrar 20.000 milhas quadradas — quase 52 mil km2, o equivalente à área do estado do Rio Grande do Norte — para a Minerals Separation Company, bem como preparar mapas de áreas selecionadas na região de ocorrência de jazidas de cobre, em suas 52 mil milhas quadradas. O artigo menciona ainda as atividades da Aerofilms Company, subsidiária da AOC, com trabalhos de cobertura fotógrafica finalizados em 1927 na Inglaterra e futuros contratos na Malásia.

    Com alguma presteza o Prefeito Antonio Prado Junior envia a mensagem nº 618 ao Conselho Municipal em 31 de agosto de 1927. O texto é breve: solicita crédito especial até o valor de dois mil contos (2.000:000$000). Como justificativa sumária consta a menção à comissão organizada em 1893 pelo Prefeito Cândido Barato Ribeiro (1843-1910), primeiro a ocupar o cargo no Distrito Federal, entre 1892 e 1893. Por sete anos, até sua extinção, a comissão designada organizou “as plantas oras existentes”72. Fica expressa na mensagem a adoção na presente proposta dos métodos “fototopográficos” pela agilidade e custos reduzidos frente aos tradicionais, argumentos que veremos adiante.

    O debate parlamentar foi severo como indicam as notas esparsas na imprensa carioca até janeiro do ano seguinte. Não só pelos gastos no levantamento ou na contratação de Alfred Agache, mas certamente pelo conjunto de obras urbanas propostas. O contexto político imediato, num primeiro ano de mandato, indica problemas a curto prazo.

    Apenas nos primeiros dias de 1928, o orçamento municipal é aprovado. No dia 5 de janeiro, o decreto legislativo nº 3.268 autoriza o crédito solicitado pelo Prefeito73. Com agilidade, o edital é assinado no dia 9, sendo publicado em seguida74.

    Com data-limite para apresentação das propostas até 15 de fevereiro, o edital estabelece os termos para produção do levantamento topográfico da cidade pela “combinação dos métodos foto-aéreo e terrestre, bem como a revisão da rede de nivelamento”. Nota na imprensa descreve os principais objetos do edital: “Dentre outros serviços contam-se: a planta topográfica da cidade, na escala de 1:1.000, em folhas uniformes da parte central da cidade, e outra de 1:2.000 para a zona suburbana e rural; planta geral e completa na escala de 1 por 20.000 e, finalmente, a revisão da rede de nivelamento com referências de nivel e demais detalhes”75.

    Cinco propostas são apresentadas76, sendo outras duas recusadas, no caso a da Compagnie Aérienne Française, em desacordo com edital, e da Companhia Aeronáutica Brasileira, que exibiu comprovante de depósito de caução, mas não conseguiu elaborar a tempo sua proposta77.

    Surpreende o número de empresas considerando a brevidade do prazo. Estavam aptas duas empresas alemãs: Photogrametric Geselschaft M.H.R, de Munique, representada pela Companhia Constructora Nacional, e a Junkers Flugzeugwerk A. G, de Dessau, mediada por Othmar Gamilischeg (sic). E, por fim, a empresa britânica The Aircraft Operating Co. Ltda, de Londres, por Ronald Frank Rous Mac-Neill, representante mencionado no ano anterior na mensagem do Prefeito como seu contato inicial sobre o serviço.

    A notícia chega a São Paulo, sem muito alarde aparente, em registro na imprensa do dia 17 de março, que transcreve telegrama recebido de Londres: “Anuncia-se que uma firma de aviões de Londres, conseguiu o contrato para o levantamento de um plano aéreo, bem minucioso, da cidade do Rio de Janeiro e arredores”78. Dias depois, em 28 de março de 1928, ambas as partes — The Aircraft Operating Co. e o governo do Distrito Federal — assinavam contrato79.

    Oportuno lembrar que a Junkers Flugzeugwerk apresentara à Prefeitura de São Paulo em 1 de março de 1928, proposta de serviço assemelhado. Seria certamente oportuno à empresa a realização concomitante dos serviços, considerando a presença de equipe técnica estrangeira, economia de escala etc.

    É novamente a mensagem anual do Prefeito na instalação do Conselho Municipal, em 1 de junho de 1928, que permitirá conhecer um pouco mais sobre a decisão final. Atendendo à lei orgânica do Distrito Federal, Antonio Prado Junior faz o balanço da administração no ano anterior; comenta as obras de melhoramentos nas áreas do Castelo e no Calabouço, região de expansão do centro urbano, e avança: A mensagem, transcrita pela imprensa local81, avança detalhando não apenas a concorrência em questão, polêmica desde sua apresentação no ano anterior, como relaciona os trabalhos encomendados a Alfred Agache. Esse trecho permite compreender a oportuna ação sincronizada das duas propostas, embora não necessariamente interligadas82. É, porém, o trecho que relata as contestações ao levantamento topográfico o mais relevante83.

    Primeiro aspecto significativo da mensagem é reafirmar o uso corrente até então dos levantamentos cadastrais que datavam da gestão municipal de Cândido Barata Ribeiro (1892-1893).

    Segundo dado, de maior interesse, é permitir identificar o emprego da cartografia resultante dos esforços do Serviço Geográfico em 1921. E, a partir disso, a ocorrência da crítica comum aos editais realizados pelas governos das cidades do Rio e São Paulo em 1928: a eventual contratação do Serviço Geográfico Militar para execução dos levantamentos a custos menores.
      (...) a acusação principal consistiu em afirmar a existência de uma excelente carta cadastral do Distrito, carta utilizada até pela própria Prefeitura por ocasião do último recenseamento escolar.
      Trata-se, evidentemente, do mapa do Distrito Federal, organizado pelo Serviço Geográfico Militar, em escala de 1:10.000, ampliação do original na escala de 1:40.000, no qual figuram arruamentos incompletos e sem denominação, com largura exagerada, em relação à escala. Esse mapa, a que se chamou pomposamente de CARTA CADASTRAL, organizado por diversos processos, inclusive o estereofotogramétrico, é baseado, justamente, na carta cadastral da Prefeitura. Não se podia, outrossim, aproveitar o trabalho na escala de 1:40.000, reduzido para a de 1:50.000, e ampliado para 1:20.000 e 1:10.000, com a representação dos arruamentos.

      (…)
      Insinou-se, também, que se poderia ser contratado o trabalho em questão com o Serviço Geográfico Militar, ignorando-se que, além de outras razões, as funções desse instituto dificilmente permitiriam o arranjo de uma fórmula para tal contrato, sem falar na posição em que ele ficaria, sujeitando-se a uma fiscalização técnica por parte da Prefeitura.
    A mensagem do Prefeito, em contraste com as notas da Prefeitura mencionadas anteriormente, permite obter um quadro mais completo sobre as propostas. Aspecto relevante, não mencionado no momento, diz respeito à autorização dada ao Prefeito para a realização do edital, conforme sua mensagem apresentada em 31 de agosto de 1927, que estabece um limite de despesas de 2 mil contos. Assim ao comparar os valores, fica evidente que todas as propostas parecem extrapolar esse patamar, além de não obedecerem aos parâmetros que exigem preços unitários. Na sua lacônica resposta à eventual manipulação da concorrência o Prefeito acaba deixando em aberto espaço para futuros embates84.

    Em resumo, os valores dos orçamentos apresentados chegam a superar 2.900:000$000. É o caso da proposta da francesa Compagnie Aérienne Française, que foi desconsiderada por não obedecer aos parâmetros do edital. Um pouco menos – 2.800:000$000 foi o valor solicitado pela Enterprises Photo-Aériennes, também desconsiderada por ter sido a proposta apresentada fora do prazo. Apenas a Junkers teria oferecido proposta na faixa de 1.900:000$000, mas a empresa desistiria do projeto durante a fase de análise das propostas.

    Antonio Prado, infelizmente, esquece em sua mensagem, momento tão importante para avaliação de sua gestão perante o conselho municipal, de apresentar dados sobre os demais concorrentes: Photogrammétrie G. M. B. H. e The Aircraft Operating Company Limited. Surge a AOC como única candidata a respeitar a exigência de preços unitários e com salvaguardas “técnicas e morais”. Esse fato cobrará seu preço mais adiante.


    Mãos à obra: no ar e nos jornais

    A empresa vencedora demonstrará agilidade, seguindo os passos legais e técnicos. O contexto político imediato, com contestações aos projetos e à concorrência em questão, e por fim a Revolução de 1930 criarão a seu modo um surpreendente emaranhado de registros na imprensa, permitindo hoje um acompanhamento dos serviços.

    Em contraste com o levantamento realizado em São Paulo pela empresa S.A.R.A. Brasil, é possível recuperar no caso do Distrito Federal relatos extensos que indicam a magnitude de recursos técnicos e humanos envolvidos bem como as etapas usuais de desenvolvimento do levantamento desde a preparação da rede de nivelamento e tomadas de imagem à impressão das cartas.

    Em 13 de março de 1928, a empresa The Aircraft Operating Company, Limited é autorizada a operar no Brasil pelo decreto federal 18.156, assinado pelo Presidente Washington Luís85. Três meses depois, em junho, começam a chegar ao Rio os primeiros membros da equipe e equipamentos.

    No dia 21 de junho desembarca o capitão do corpo de aviação do exército inglês – Sidney Henry Holland86. Acompanha sua chegada o transporte pelo mesmo navio Arandora de duas aeronaves Vendace (Vickers), equipadas com motores de 350 HP construídos especialmente para a missão. Ambos os aviões permitem pouso em terra ou mar, sendo um deles utilizado como avião reserva. Holland chefiaria a seção de aviação.

    Com cronograma de 3 anos de trabalho, a missão seria coordenada pelo o coronel T. T. Behrens, “chefe da empreitada”, membro do corpo de engenharia do exército inglês, tendo como subchefe o tenente da armada britânica Ernest J. Mc. Athy. Ambos tinham desembarque previsto para o dia 7 de julho. Junto viria o aviador, C. A. Elliot, tenente “perito em aerofotogrametria”, que morara por alguns anos no Rio de Janeiro. Completavam a missão mais 12 membros, basicamente agrimensores87.

    GAZETA DE NOTÍCIAS, 11 de novembro de 1928

    A imprensa carioca reproduz imagens distribuídas no evento
    para seus profissionais em novembro de 1928.

    A fotografia aérea vertical da região do Morro do Castelo, parcialmente removido,
    exibe ao alto, subindo em diagonal, a Avenida Rio Branco, que se prolonga da direita
    a partir do Palacete Monroe. À esquerda, destacam-se os pavilhões do mercado.

    Gazeta de Notícias, 11 de novembro de 1928, p.3.

    Acervo Biblioteca Nacional

    Com o escritório instalado à Rua Silveira Martins, no Catete, a empresa abre as instalações para a imprensa em 10 de novembro, com a presença do embaixador da Inglaterra Sir Belby Alston e membros do corpo consular. Mac Neill recebe a todos como representante da empresa no Brasil, acompanhado do diretor, major Harold Hemming, e o gerente, Coronel Behrens. Aos presentes são apresentados exemplos de trabalhos em realização, de caráter didático, numa ação para imprensa que parece indicar uma noção precisa de marketing88.

    Essa noção parece clara se atentarmos a participações em eventos. Dois dias depois, na solenidade comemorativa do décimo aniversário do Armistício, realizada no campo do Botafogo Football Club, um dos aviões da empresa joga ramalhetes de flores naturais sobre a multidão. O vento, infelizmente, levou as flores para fora do campo, sendo apanhadas pela meninada89.

    É na imprensa paulistana que surge de forma mais detalhada o “levantamento aero-photo-topographico” em curso. Longa série de artigos publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, entre novembro e dezembro de 1928, faz um balanço da administração Antonio Prado Junior. Um deles, no dia 16 de novembro, cobre especificamente o tema. Ilustrado com imagem aérea da Cinelândia, comenta o processo aerofotogramético e as etapas: cobertura de voos, operações de triangulação, montagem dos mosaicos... – “um verdadeiro jogo de paciência chinês”. Segundo o engenheiro-chefe é “a primeira vez que no mundo se realiza um levantamento (…) desta magnitude”90.

    A boa relação com a imprensa é certamente conveniente à empresa como também às autoridades do Distrito Federal. Um ano depois, em 18 de maio de 1929, a visita do próprio Presidente da República Washington Luís e do Prefeito Antonio Prado Junior tem por função verificar o andamento dos trabalhos. Acompanham a comitiva, que chega às 9 horas, Alfredo Duarte Ribeiro, diretor de obras e viação, e Alvaro Seixas, fiscal do Serviço Topográfico. Às 11 horas, o escritório é aberto à imprensa91.

    JORNAL DO BRASIL, 19 de maio de 1929


    A edição de 19 de maio de 1929 do Jornal do Brasil
    registra a chegada do Presidente Washington Luís ao escritório da
    Aircraft Operating Company, ao lado do Palácio do Catete,
    sendo recebido pelo diretor Mac Nell.

    Acervo Biblioteca Nacional

    A fase de levantamento aéreo já está terminada, com voos realizados em 3 altitudes – 1.500, 2.100 e 4.000 metros. A equipe envolvida, noticia a imprensa, inclui 20 engenheiros (“empenhados no levantamento terrestre e triangulação”), num total de pouco mais de 100 membros, sendo 65 deles brasileiros. Foram empregados dois aviões, sendo um deles um hidroavião, e obtidas mais de 8 mil imagens: “É de notar que não houve um só acidente em todo o trabalho”92.

    Os diretores mostram ao Presidente os “mapas da zona central, na escala de 1:1.000, que estão quase concluídos para serem entregues ao impressor”. Estão previstos mapas em 4 escalas: 1:1.000 – zona central, 1:2.000 – zona urbana, 1:5.000 – zona suburbana e 1:20.0000 – zona rural.

    Com aparente orgulho, a impressão dos mapas será feita no Rio pela Pimenta de Mello & C, que já importou máquinas especiais. Diretores da empresa expressam “satisfação” em realizar assim todo o trabalho no Brasil. O término programado do projeto é então outubro de 193093.

    A visibilidade dada pelo evento parece estar associada ao interesse em conquistar novos serviços no país. Pouco depois, em julho, o jornal Diário Carioca indica, “por informações colhidas nas melhores fontes”, que o Presidente do Estado de São Paulo resolvera dar à Aircraft (grafada “Air Craft & C.”) a concessão para execução do levantamento topográfico de todo o Estado94.


    A mensagem anual ao Conselho Municipal em primeiro de junho de 1929 faz um balanço geral das atividades. De relevante, destaca-se a fiscalização do contrato, em toda a sua extensão, pela Diretoria de obras, com apoio da 5ª Subdiretoria, encarregada da Carta Cadastral da Prefeitura.

    Os serviços de voos, já encerrados em maio, como informado durante a visita do Presidente da República ao escritório da The Aircraft Operating, haviam cobertos até começo de fevereiro de 1929 cerca de 25.750 hectares da área do Distrito Federal (257 km2). Ao final do primeiro semestre, a Diretoria de Obras já recebera: “31 mosaicos, ou fotocartas, relativos à área territorial a ser representada na escala de 1:1.000; 262 fotografias (prova direta), relativas à área territorial a ser representada na escala acima citada; 6[54] fotografias (prova direta) da área territorial a ser representada na escala de 1:2.000”95.

    OESLNER, 1934, p.323 - foto aérea do Rio de Janeiro


    Foto aérea vertical do levantamento carioca, com marcações de
    pontos de referência de terra para uso na retificação na imagem.

    À direita, marcadores trazem informações como
    número da imagem, derivações de voo, serviço e hora da tomada.
    A imagem consta do importante relato sobre a empreitada
    feito por Carl Oeslner (1934).

    Acervo BMA

    A mensagem é peculiarmente informativa sobre os serviços de terra: a triangulação. Fundamental é a descrição das funções atribuidas à 5ª Subdiretoria de Obras, que dizem respeito centralmente ao serviço de manutenção das plantas do Distrito Federal, “levantadas e desenhadas no período de 1892 a 1900 e aos trabalhos com elas relacionados e executados desde 1902”. Terminado o contrato em andamento, esta unidade passará a constituir repartição especializada na gestão do levantamento, sua manutenção e atualização, e seu emprego como base dos registros cadastrais da municipalidade96. Os escritórios da empresa continuam a ser nos próximos meses pontos de interesse social. No dia 19 de setembro de 1929, representantes da missão econômica oficial do governo britânico para a América do Sul, coordenada pelo Lord D'Abernon, faz às 10 horas a visita programada, sinal claro da importância do empreendimento nas relações comerciais entre os dois países98.

    No ano seguinte, em 29 de abril, chegam ao Rio, vindo da cidade do Cabo, o casal Alan S. Buttler99. Ele, presidente da The Aircraft Operating, chega ao Brasil para inspecionar os trabalhos. O casal realizara a travessia aérea Londres a Cidade do Cabo, na África do Sul. Ambos aviadores reconhecidos, Alan, no entanto, atuou no percurso como segundo piloto, sendo detentor do recorde em altitude utilizando “aviões ligeiros”.

    Durante o “raid” foi testado novo modelo de avião, da The Haviland Aircraft, conhecida pelos modelos Moth, destinado “à aerofototopografia”. Equipado com dois motores, a aeronave pode voar a 6.200 metros. Com um único motor, atinge o patamar de 3 mil metros. Após inspecionar os serviços da The Aircraft Operating, na Rodésia, já mencionados, Butler, que é presidente de ambas as empresas, realiza no Brasil sua visita oficial. No dia 13 de maio, é fotografado na saída do Palácio do Catete, com o major Hemming, diretor-geral no Brasil, e Victor Nothmann, que veremos mais uma vez, após visita a Washington Luís100.

    A intenção das partes é terminar o levantamento carioca até o final da gestão Prado Junior. Menciona-se ainda a ideia de criação de uma empresa anglo-brasileira para levantamentos aerofotogramétricos. Butler segue em um avião da Condor para Porto Alegre, rumo a Buenos Aires. Duas semanas depois, está de volta ao Rio de onde parte para a Inglaterra a bordo do navio Avelona Star101.


    A Revolução de 30

    Os trabalhos continuam em andamento. Em maio de 1930, o Ministro da Fazenda comunica ao Prefeito do Rio haver providenciado o desembaraço ágil do novo avião que se encontra na alfândega destinado ao “levantamento da carta aerofototopográfica da cidade”102. O que restaria fazer, que exigisse outra aeronave, já que essa etapa estava encerrada há tempo, como vimos?

    Em 22 de outubro, dois dias antes da deposição de Washington Luís nesse longo processo revolucionário deflagrado no dia 3, a sede na Rua Silveira Martins recebe uma comissão do Clube de Engenharia para apresentação do relato dos trabalhos desenvolvidos em dois anos. A comitiva inclui Paulo de Frontin, presidente do Clube e os membros do Conselho Diretor: Gastão Bahiana, Valentim Durham, Mario Valladares, Chavantes Junior, Carvalho Araujo e Duarte Ribeiro. São recebidos pelo gerente e técnico Carl Oelsner. Outros convidados como os representantes da Light & Power estão presentes103. Com o novo governo as acusações que acompanharam toda a fase inicial retomam com força, envolvidas no clima tenso geral. Isso dificultará a entrega do serviço, mas acaba por revelar dados sobre os participantes.

    Em novembro, após 26 anos de serviço, é exonerado por Adolpho Bergamini, interventor no governo do Distrito Federal desde 24 de outubro, o engenheiro Alvaro Baptista Seixas, lotado na Diretoria de Obras e Viação como engenheiro-chefe de divisão. Admitido em 1904, já como engenheiro da Repartição de Carta Cadastral, foi o responsável por elaborar em outubro de 1927 o edital da concorrência para o levantamento topográfico em questão. Em abril de 1928, seria designado para fiscalizar a execução do serviço - “primeiro a ser levado a efeito na América do Sul”106.

    Dias depois, em 10 de dezembro, o interventor nomeia comissão para análise do contrato feito com a Aircraft Operating, “estendendo seu estudo aos serviços porventura feitos, estimando-lhes o valor, opinando sobre as medidas a serem tomadas e sugerindo tudo quanto for conveniente.”107

    A imprensa acompanha o caso. Comenta-se que antes de viajar para a Europa, como exilado, Antonio Prado Junior nomeara advogado para defesa frente a várias acusações, como o favorecimento em obras na Escola Normal, a empresário teatral etc, entre elas: O jornal O Globo, em 27 de fevereiro de 1931, transcreve, ao longo de quatro páginas, o relatório completo entregue ao interventor Adolpho Bergamini. Não é necessário ler propriamente o texto para compreender o seu desenvolvimento. O subtítulo é preciso: “O contrato da The Aircraft Operating Company Ltd. resultou de uma concorrência fraudulenta, exorbitou da autorização legislativa, infringiu o próprio despacho de aceitação da proposta e, por isso, é nulo!”109 Em alguns dias o interventor enviaria o relatório ao Tribunal Especial, conforme nota na imprensa no dia seguinte110.


    Os princípes britânicos no Rio

    Alguma normalidade parece rondar o escritório da Aircraft Operating, embora não se saiba o que faltava por fazer111.

    No dia 7 de abril, porém, chega ao Rio o Princípe de Gales – o futuro rei Eduardo VIII (1894-1972), que abdicaria do trono para casar com Wallis Simpson. Se há sincronia planejada, não se sabe, mas a oportunidade não foi desperdiçada.

    No mesmo dia, sua comitiva visita a sede da empresa, na Rua Silveira Martins acompanhado por Lord Edwam e por Mister Irving, adido comercial britânico. O príncípe pôde fazer uma inspeção completa dos trabalhos, sob a supervisão do Major Hemming, diretor geral, examinando plantas e fotografias112.

    Como contraponto é possível traçar um contexto ampliado dos fatos. A baixa do câmbio parece dificultar a economia brasileira. O novo governo sofre as consequências, atribuídas tanto a erros do governo passado como a fatores como “desconfiança dos capitalistas”, ameaças de nacionalização de indústrias siderúrgicas e hidroelétricas, revisões de contratos...

    Entre conflitos localizados registra-se a “hostilidade” da Prefeitura do Rio de Janeiro contra algumas empresas. Essa condição parece ter justificado a busca de soluções com o reconhecimento da dívida pela Prefeitura do Distrito Federal e a constituição de uma comissão de arbitragem dos valores. Notas na imprensa opinam sobre a situação. Não se sabe muito sobre o panorama que se segue a curto prazo. Em maio de 1932, um ano depois, a revista especializada britânica Flight Magazine, apresenta um artigo que registra a finalização dos trabalhos do levantamento do Distrito Federal e do Rio de Janeiro114. Após três anos e meio, um ano a mais que o previsto devido aos conflitos revolucionários, foi possível realizar os serviços. Os trabalhos finais sofreram durante os conflitos, dando cor local ao relato, considerando a proximidade do escritório ao Palácio do Catete, como aponta a revista, o que gerou problemas de acesso e normalidade das operações.

    O artigo enfatiza a peculiar topografia carioca, com variações de altitude do nível do mar a mais de 600 metros, e a extensão territorial para enaltecer o curto prazo dos trabalhos frente aos quinze anos previstos com o emprego de métodos tradicionais. Quatro conjuntos cartográficos, nas escalas de 1:1.000, 1:2.000, 1:5.000 e 1:20.000, compõem os produtos finais. Uma ampliação em escala 1:10.000 estava sendo finalizada, a partir do último produto.

    Com as investigações sobre o contrato empreendidas pelo novo regime, Alan Butler, coordenador da empresa, decidiu levar os trabalhos adiante, mesmo sem pagamentos e com custos crescentes. Ainda assim, segundo a mesma fonte, alguns trabalhos estavam pendentes como a impressão de parte dos conjuntos. A empresa espera ainda o reconhecimento da dívida pelo governo para finalização dos serviços.

    Até o conflito revolucionário, informa a revista, foram pagos 40 mil libras esterlinas, com a entrega dos trabalhos de igual montante. Agora o valor reivindicado atinge um total de 180 mil libras. Aguardavam-se para breve as deliberações iniciais da comissão de arbitragem nomeada pelas partes.

    Embora o contrato tivesse sido ameaçado de cancelamento no início da contestação, o reconhecimento da importância das obras realizadas havia contribuído para o andamento da negociação. Contudo, frente à coincidência entre a crise econômica mundial e o impacto sobre a posição financeira do empresário Alan Butler, este decidiu suspender as atividades da companhia, mantendo em operação apenas a subsidiária sul-africana.

    A deflagração de novo conflito revolucionário em meados de 1932, certamente, contribuiu para retardar a solução do caso. Apenas em fevereiro de 1933 notas na imprensa local noticiam a entrega, no dia 22, do relatório da comissão de árbitros, assinado por Deraldo Filgueiras e Raymundo Pereira da Silva, ao interventor federal Lourival Fontes115. Semanas depois, no dia 16, a Prefeitura concorda com o parecer e reconhece a dívida de 63.897 libras116.

    Constestações devem ter estendido, contudo, o processo. Em setembro de 1933, nota em tom oficial do gabinete do interventor procura responder a artigos na imprensa carioca sobre a resolução em liquidar a dívida com a empresa. A história irá se estender. Em fevereiro de 1934, Carl Alexander Oelsner, engenheiro-chefe da empresa entre 1928 e 1931, comentava em artigo que infelizmente até aquele momento a Diretoria de Obras, o Cadastro Fiscal e o público “estão privados das nossas plantas as quais foram feitas com tanta dedicação e suor” (OELSNER, 1934, p.328).

    Nova comissão arbitral parece ter sido formada, entregando em 15 de maio seu relatório. Os árbitros Josino Medeiros, procurador-adjunto dos Feitos da Fazenda, e o general Christovão Barcellos, pela empresa, não chegaram a um acordo, apresentando laudos em separado. Pedro Ernesto, o interventor, nomeou imediatamente como juiz o desembargador Renato Tavares, da Corte de Apelação118.

    O processo ainda que tortuoso119 consegue chegar a seu término. Consta enfim a liquidação do débito, até o final de junho de 1934, com dois pagamentos: 3.180:022$00 e mais 2.574:524$000, em apólices120. A contenda passaria ainda por outro entrave, agora restrito ao grupo dos agentes de intermediação da empreitada, aos lobistas. Certa parte da imprensa usará a presença desse agenciamento para criticar a prática junto aos negócios feitos pelo governo. Victor Nothmann, representante da empresa, acabaria por receber da Aircraft Operating o valor de 262 contos em comissões121.



    Sobre o impacto causado, enfim, pela entrega do levantamento do Rio de Janeiro e do Distrito Federal pouco se sabe. Parece ser quando muito restrito ao panorama local se considerarmos que a parca historiografia sobre aerofotogrametria aplicada na gestão urbana, na parte produzida em São Paulo, não traz menção a aquela iniciativa.

    Sua presença parece não ter registro maior na historiografia urbana carioca numa primeira visitação. Seria de duvidar, não houvesse confirmação dos pagamentos, de sua entrega efetiva à Prefeitura122. Porém, não há registro do encaminhamento do conjunto de documentos de trabalho (cadernetas, negativos etc) como previsto em contrato.

    Rara evocação desta cartografia, em um vasto recorte no qual a produção do século XX tem espaço generoso, é a mostra Do cosmógrafo ao satélite, organizada por Jorge Czajkowski (2000). Aqui se recupera a presença dos levantamentos aerofotogramétricos da cidade do Rio desde 1928. Embora haja menção apenas a 51 pranchas relativas ao mapeamento na escala 1:1.000, seu curador indica que o levantamento aerofotogramétrico de 1928 foi a base para a Planta da Cidade do Rio de Janeiro, editada em 1935, referenciada nesta fonte como “planta cadastral”. Em escala 1:5.000, um conjunto de 113 pranchas (27,5 x 46,6 cm cada), encomendado pela Secretaria de Viação, Trabalho e Obras da Prefeitura do Distrito Federal, integra acervo do Instituto Pereira Passos. Como ocorreu em São Paulo, o segundo mapeamento aerofotogramétrico do Rio de Janeiro, informa o texto, data também de 1953-1956, composto pelo menos por série de 211 pranchas em escala 1:1.000.

    No que toca ao mapeamento realizado de 1928. ação recente garantiu, a partir de tratamento e conservação realizado em 2012, a disponibilização do conjunto final de fotocartas e pranchas gráficas, custodiado pelo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ). O acesso digital, desde o início de 2014, permite conhecer, como parte do Fundo Diretoria de Secretaria do Gabinete, os espécimes cartográficos entregues pela Aircraft Operating. Organizados em duas séries: Aerofotogrametria (1928-1929) e Levantamento Terrestre (1930), os itens estão reunidos em dossîês por região123.
    Mosaicos
    1:1.000 | 1:5.000




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    Para citação adote:

    MENDES, Ricardo. S.A.R.A. Brasil: restituindo o Mapa Topográfico do Município de São Paulo.
    INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 10 (37): dez.2014
    <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>

     
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