PMSP/SMC
São Paulo, dezembro de 2014
Ano 10 N.37 

Abertura | Acervo Bibliográfico | Ensaio temático | Mosaico 1:1.000 e 1:5.000 | Notícias | Ns.anteriores

  • ENSAIO TEMÁTICO
  • S.A.R.A. Brasil:
    restituindo o Mapa Topográfico do Município de São Paulo


    breve história da aerofotogrametria nas cidades do Rio e São Paulo na década de 1920






    Anos 10: para o alto

    “A Inglaterra não é mais uma ilha”, comentário atribuído ao kaiser alemão Guilherme II ao saber da travessia pioneira do canal da Mancha pelo aviador francês Louis Blériot (1872-1936), em 25 de julho de 1909, marca o fim de uma fase pioneira da aviação. Em menos de cinco anos, o voo de aparelhos mais pesados conseguira avançar de percursos curtos, a poucos metros do solo, possíveis de serem realizados em hipódromos ou campos, abertos para vencer um trajeto de quase 40 quilômetros sobre o mar.

    Alberto Santos Dumont (1873-1932), figura de destaque no período, é, no ano seguinte, em 1910, homenageado pelo Aero Club de France com busto no campo de Bagatelle, onde há muito pouco, em 1906, realizara o primeiro voo com o seu 14-Bis. Se o interesse pela aviação torna-se uma febre mundial, acompanhada pela imprensa com destaque, objeto de orgulhos nacionais, a qual não escapariam os jornais brasileiros, a presença proeminente do brasileiro Santos Dumont será um estímulo adicional para que essa atualização ocorra pari passu ao circuito internacional.

    A década que se segue trará novos desdobramentos para a aviação. Primeiro, na Europa e na América, com a tentativa de estabelecer bases comerciais para vários segmentos que se deslumbram desde o início da aviação como o tranporte de passageiros, correio, uso militar etc. O frenesi sobre o tema presente na imprensa é reflexo e agente importante na difusão e no incentivo à exploração de potencialidades. A introdução do cinema, em paralelo a esse processo, permitirá que as notícias ganhem nova forma. Cinema e aviação, dois dos traços mais visíveis da modernidade tecnológica, ganham o mundo.

    Mesmo no Brasil, cujos principais centros urbanos apenas ao final da década de 1890 começam a sentir o impacto de novas ofertas técnicas como a distribuição de energia elétrica, o transporte urbano com a introdução do automóvel com motor à explosão, do bonde elétrico etc, as cidades mais importantes ainda apresentam traços urbanos que conflitam com o crescimento populacional e as novas demandas.

    A explosão populacional nos principais centros brasileiros, notadamente no Sudeste, gerada pela intensa migração estrangeira cria, em paralelo, dificuldades de toda espécie e passa a exigir adequações e regulamentações. São Paulo, para ficar num exemplo próximo, vê acontecer em seu centro urbano ações pontuais da municipalidade, como o realinhamento e alargamento de vias principais. A própria máquina administrativa, na velha República, passará por várias remodelações, titubeantes às vezes, para dar conta das demandas, iniciaticas sujeitas ao panorama econômico e político local e mundial.

    Os poucos anos que antecedem ao conflito mundial deflagrado em 1914 são assim um momento em que o interesse pelas conquistas tecnológicas dividem espaço com noticiário político internacional em grande mobilização.

    A fase pioneira da aviação ganha espaço tanto na indústria e no comércio como no comportamento e imaginário social. Em 1910, Raymonde de Laroche (1882-1919) é a primeira mulher a receber na França, do Aero-Club de Paris, um brevet, sua autorização para voo.

    Cabe ao migrante, engenheiro e inventor prolífico, Dimitri Sensaud de Lavaud (1882-1947), realizar em 7 de janeiro de 1910 em Osasco, então subúrbio distante da cidade de São Paulo, o primeiro voo na América Latina1. Os jornais dão cobertura imediata do fato. Seu avião 'São Paulo”, desenhado por Dimitri e fabricado localmente, é exposto em teatro no centro da cidade2.

    O voo pioneiro de Dimitri Sensaud de Lavaud, em Osasco, município de
    São Paulo, em aeronave por ele desenvolvida é o tema do livro
    1910: o primeiro voo do Brasil (2010),
    de Suzana Alexandria e Salvador Nogueira.
    1910: o primeiro Voo do Brasil-capa

    Rio de Janeiro e São Paulo, como outras cidades brasileiras, começam a receber também os primeiros aviadores estrangeiros que realizam voos de demonstração ou concorrem a prêmios. Claro, chegam ainda por terra ou mar. Entre tantos visitantes, o cinema, esse parceiro midiático da aviação, registra em 1911, numa produção da Serrador, as experiências realizadas pelo italiano Germano Ruggerone em 6 de janeiro no Prado da Mooca.

    Intitulado Ruggerone, os primeiros voos em aeroplano no Brasil, a fita com quase 20 minutos é exibida no velho Bijou, na Rua São João, no dia 13, e no High Life, dia 20. Certamente a morte do aviador italiano Giulio Picollo, dias antes no Velódromo, em evento em que ambos participavam, atraiu mais interessados.As cenas são descritas em parte na imprensa local:

    A Cigarra, 1 de agosto de 1914 - Anúncio binóculos Zeiss
    Com a incorporação das demonstrações de voo ao rol
    dos eventos públicos, surgem ofertas ou
    referências à nova prática social.

    Em anúncio na nova publicação A Cigarra,
    em seu número 8, de 1 de agosto de 1914,
    o representante local do "afamado fabricante Zeiss" oferece com destaque binóculos "para corridas,
    aviação, foot-ball, etc", todos estes novos costumes incorporados ao cotidiano das
    grandes cidades do Sudeste.

    Aqui, detalhe da ilustração do anúncio.

    Acervo Arquivo Público do Estado de São Paulo


    Ao cinema, ao raid automobilístico, ao ciclismo e outras novidades vêm se juntar como novo divertimento as exibições aeronáuticas. Os novos esportistas, endinheirados ou amantes da velocidade, tornam-se eles também parte do noticiário.

    Logo, outra parceria ganha espaço nos jornais: fotografia e aviação. Em 1912, a capital federal realiza sua “primeira semana de aviação” e recebe entre seus participantes o francês Roland Garros (1888-1918). O aviador, que tivera sua prática inicial como piloto em 1909 num modelo Demoiselle, desenvolvido por Santos Dumont, tem sua participação registrada no Cine Jornal Brasil nº14, exibido nos cines Bijou e High-Life em 5 de fevereiro, como descreve a imprensa:
      Titulo dos quadros: (…) 4. Primeira semana da aviação no Rio. – 5. O Sr. Presidente da República visita os aviadores no hangar – 6. Garros no seu monoplano Bleriot. – 7. Conduzindo o monoplano para o campo da aviação – 8. Vôos de fantasia pelo arrojado aviador Garros. – 9. Do Jockei Clube a Niterói. – 10. Sobre a Baía da Guanabara. – 11. Evolução sobre a cidade de Niterói. 12. Do Rio a Teresópolis, Garros vencedor do prêmio de 50:000$000.
      (O Estado de S. Paulo, 6 de fevereiro de 1912, p.9)

    Não são as fotos realizadas pelos profissionais da imprensa, carioca e paulista, que interessam aqui,mas sim aquelas que ilustram, em 10 de fevereiro, a Revista da Semana, periódico carioca, em grande formato, um dos principais do período5. Num oferecimento do piloto, a revista publica fotos feitas por ele a partir do seu avião Blériot, rumo a Petrópolis. O mosaico com 4 imagens constituem, provavelmente, as mais antigas imagens aéreas conhecidas do Rio, capital federal, feitas de aeroplano. Nova surpresa, traço contemporâneo, surge agora: são pares estereoscópicos que revelam a vista das montanhas cariocas, parte da cauda do avião e finalmente, Petrópolis, numa tomada que apresenta a “cidade serrana em forma de mapa”, como informa o texto6.


    Revista da Semana, 10 de fevereiro de 1912 - Garros fotografa o Rio do alto

    O aviador francês Roland Garros envia fotos estereoscópicas feitas durante voo do Rio
    a Petrópolis à Revista da Semana, publicadas na edição de 10 de fevereiro de 1912.
    Das imagens de balão feitas por Botelho em 1905, bastaram poucos anos
    para surgir nova vertente: o Rio visto do alto.

    Entre as quatro imagens publicadas, apenas esta parece cobrir trecho litorâneo.
    As demais apresentam trechos serranos e a vista da cidade de Petrópolis.

    Acervo Biblioteca Nacional

    As “grandes travessias” ganham espaço na imprensa brasileira já no início da década de 1910. Atraindo pilotos estrangeiros e brasileiros, estimulados ainda por prêmios em dinheiro, prática presente desde da virada do século, elas crescem em número e distância a percorrer. Em 1912, por exemplo, o piloto brevetado no ano anterior na França, o paulista Eduardo Pacheco Chaves (1887-1975), originário de família de grandes cafeicultores, realiza o trajeto, ida e volta, de São Paulo a Santos. Dois anos depois, em 5 de julho, partindo da Mooca, Edu Chaves, realiza em 6 horas o voo, pioneiro, entre São Paulo e Rio de Janeiro, a uma velocidade de 80 km/h, alcançando a altitude de 2.000 metros.

    A primeira escola de aviação surge no Rio de Janeiro – o Aero Club Brasileiro, fundado em 1911 pelo tenente Ricardo Kirk, mas em atividade efetiva apenas em 1916. Associações do gênero se sucedem nos anos seguintes, mas as escolas de origem militar marcam presença. Três anos depois, em 1914, tem início as atividades da Escola da Aviação da Força Pública, de São Paulo, primeira de caráter militar, baseada no Guapira, campo do aviador Edu Chaves, ao norte da capital. No mesmo ano surge a Escola Brasileira de Aviação – EBA, no Campo dos Afonsos, no Rio, onde também funcionava o Aero Club7. Em 1916, surge a Escola de Aviação Naval8, também no Rio, e três anos depois a Escola de Aviação Militar, do Exército, na mesma cidade.

    Escola de Aviação Curtiss-1921-AHSP-logotipo


    Detalhe de papel de carta com timbre da Escola de Aviação Curtiss.
    Processo 40.667/21, nov.1921

    Acervo AHSP

    Em muitas das iniciativas particulares, mas também nas militares, participam de início pilotos estrangeiros, muitos dos quais nos anos seguintes têm destaque em vários setores do campo da aviação.

    Em São Paulo, apenas em 1921 surgem iniciativas particulares para estabelecer escolas de pilotagem como a Escola de Aviação Curtiss. Tentativas de criação de um aeroclube ocorrem na mesma época, forma de compartilhamento e difusão adotada então.

    A CIGARRA, Revista da Semana, 10 de fevereiro de 1912 - Garros fotografa o Rio do alto

    Um Zeppelin manobra sobre Antuérpia dias antes da
    queda da cidade frente às tropas alemãs.

    A Cigarra, de 29 de outubro de 1914, traz imagem
    realizada pelo correspondente da revista The Sphere, de Londres.

    Acervo Arquivo Público do Estado de São Paulo

    Com a deflagração da Grande Guerra, em 1914, esse panorama agitado dá lugar entre nós a um momento de pausa. A redução do ritmo mundial da economia e o esforço de guerra levam a pesquisa e exploração da aviação para o campo de batalha. De início como meio de observação, mas pouco a pouco como elemento ativo no bombardeio, ao lado dos grandes dirigíveis.

    Mesmo no Brasil, essa nova função, além da própria implantação das escolas de aviação militares, tem presença. Em abril de 1914, o aviador Cicero Marques, um dos participantes pioneiros da Escola da Aviação da Força Pública de Sâo Paulo, oferece-se ao Exército para participar nos combates da Guerra do Contestado (1912-1916), conflito em região do Paraná que mescla exploração econômica por grandes grupos e resistência de movimentos populares. O desinteresse do Ministério da Guerra em oferecer um aeroplano adequado frusta a iniciativa. No ano seguinte, o Exército conta com 2 aviões de reconhecimento na região, mas a empreitada terá pouco fôlego, terminando com a morte em acidente aéreo do Tenente Ricardo Kirk.


    As cidades vistas de aeroplano

    A CIGARRA, 6 de julho de 1915 - vinheta
    A novidade contamina até mesmo as vinhetas:
    A Cigarra, 6 de julho de 1915.

    1919, em 1 de junho, o magazine A Cigarra, “revista de maior circulação no estado”, como se apresenta, anuncia em O Estado de S.Paulo, o lançamento na segunda-feira seguinte, da nova edição9 que traz com destaque — “pela primeira vez no Brasil” — imagens da cidade vista do alto10.

    Nessa edição, além de imagens do centro e do Brás, a primeira feita em voo do qual participou o prefeito Washington Luís (1914-1919), o articulista Delpes comenta o uso estratégico que teve a fotografia na I Guerra na observação de tropas e a necessidade de aprimorar a técnica para vencer não só a camuflagem, mas as dificuldades usuais do registro fotográfico aéreo:
      Mas não foi só contra a dissimulação que teve que lutar a fotografia. Forma-se muitas vezes sobre a terra uma espécie de fumaça tênue e azulada, invisível de baixo para cima, mas que, vista do alto, assemelha-se a imenso véu estendido sobre a paisagem, prejudicando a nitidez dos detalhes e tornando necessário o uso de lentes finíssimas. E na guerra a artilharia antiaérea obriga os aviões a planarem sempre à grande altura, de modo que os aparelhos fotográficos são providos de grande foco para aproximar a objetiva. Isso faz com que certos aparelhos, com cerca de dois metros de comprimento, mais se assemelhem a um canhão do que a uma máquina fotográfica. Torna-se mesmo necessário o uso da telefotografia, que não é nem mais nem menos do que uma máquina fotográfica instalada no fundo de um um óculo de alcance.
      Como a fotografia comum não dá ideia exata das dimensões, devido à perspectiva que aumenta o tamanho dos objetos próximos e diminui o dos mais distantes, os aparelhos são calculados rigorosamente, para que as fotografias tiradas de uma certa altura corresponda exatamente a uma determinada escala. Ainda mais, a máquina tem que fotografar ao mesmo tempo que a paisagem, a posição de duas pequenas pendulas de vidro graduadas, que estão no interior da câmara escura e que indicam a inclinação lateral e longitudinal do aeroplano no momento em que foi tirada a fotografia. Essas indicações, que são indispensáveis, têm por fim facilitar uma verdadeira arte que é a restituição fotográfica e são obtidas por um engenhoso dispositivo formado por pequenas lentes que desviam os raios luminosos da objetiva.
      Nas grandes alturas em que voam os aviões o frio é intenso, às vezes de 40 graus abaixo de zero, o que diminui a sensibilidade das chapas, tornando-se necessário aquecer eletricamente o aparelho fotográfico. Existem também dispositivos para evitar os fenômenos de condensação e tornar automática a substituição das chapas.
      Porém a última palavra é o aparelho cronofotográfico que é sincronizado ao aeroplano e que comporta uma geratriz de corrente elétrica, uma caixa de conexão e um comando mecânico. Dispondo-se as engrenagens do aparelho de acordo com a altura e a velocidade do avião em relação ao solo, podem obter-se centenas de fotografias formando um único panorama.
    As imagens do alto nada têm de inocente nessa descrição, ainda que ilustrem uma revista de variedades: são frutos da guerra. As tomadas oblíquas do centro da cidade, realizadas pelo tenente observador Dorsaud (Dorsand), acompanhando os voos dos capitães Etienne Lafay e Eduardo Verdier, todos participantes de missão francesa de treinamento do Exército brasileiro, espalham-se pela imprensa. Não apenas vistas de São Paulo11, mas do Rio em especial12.


    A CIGARRA, 1 de junho de 1919
    As primeiras imagens da cidade, a partir de aeroplano, surgem em 1919,
    como anuncia A Cigarra, de 1 de junho.

    Aqui, vê-se o centro histórico. Na parte baixa, o Teatro Municipal.
    Com destaque, quase ao centro da imagem o Mosteiro de São Bento e
    o novíssimo viaduto de Santa Ifigênia.
    Ao fundo, o Parque do Carmo, com os bairros do
    Pari e do Brás, ao fundo.

    Acervo Arquivo Público do Estado de São Paulo

    Tomadas similares, agora em movimento, ganham espaço no documentário O Rio em aeroplano, produção da Omnia Filme, a partir do avião pilotado, mais uma vez, por Lafay, instrutor na Escola de Aviação mantida pelo Exército, rara produção cujas imagens foram preservadas13. Exibida nos cines Royal e Central em 20 de setembro de 1921, a produção é resumida pela imprensa:
      Vistas animadas de 50 a 1.250 metros de altitude. Pela primeira vez um operador ousou registrar num filme completo. Os aspectos novos, curiosos e originais das belezas do Rio de Janeiro. Glorioso documento reunindo a coleção de 14 ascensões: No Campo dos Afonsos, a partida — Os subúrbios e o Instituto de Manguinhos — Aspectos do cais do porto, arsenal, Ilha das Cobras – O deslumbramento da baía e os vasos de guerra — Avenida Central, as ruas do centro, o Monroe, os Arcos, etc — Dominando o cume do Corcovado e abrindo voo do Corcovado até o Pão de Açúcar. Topografia do Flamengo, Glória, Botafogo, Copacabana e as demais avenidas à beira mar — Visões das ilhas Governador, Fiscal, Enxadas, Viana e outras.
      (O Estado de S.Paulo, 20 de novembro de 1921, p.13)
    Não apenas os voos retomam então, com o fim do grande conflito mundial, mas o panorama de atividades cresce em escala, frente ao pré-guerra, e traz novos temas. Entre eles, a discussão de um “código do ar” apresentado pelo [ministro Afrânio] de Mello Franco no congresso. Eco raro, considerando a área de ação, é a réplica na nascente imprensa especializada em fotografia, de curto alcance, ao contestar a claúsula 44 do projeto que proibe “o uso, pelos tripulantes ou passageiros, de qualquer aparelho fotográfico ou máquina que sirvam para a fixação de imagens”. Publicado na Illustração Photographica, em junho de 1919, o foco da contestação é garantir a liberdade de ação dos profissionais da fotografia, de modo a impedir restrições a novos usos como a fotografia áerea14.

    O interesse pela aviação cresce aceleradamente. Agora, em um quadro mais complexo, com novos agentes. Econômicos por um lado, como representantes de fabricantes de aeronaves, escolas etc, e, por outro, novos participantes, não mais restritos a interessados originários da burguesia local, mas técnicos formados nas escolas de aviação, nos mecânicos e todos os demais operadores necessários para implantar, ainda que de forma incipiente, uma estrutura para a aeronáutica civil.

    Datam também desse período longas séries de decretos federais concedendo permissões a interessados em estabelecer serviços de transporte de carga e passageiros. Como exemplo, é o que faz o decreto 13.567, em 26 de abril de 1919, concedendo a João Varzea permissão desses serviços “entre as principais cidades do Brasil e entre estas e o estrangeiro”15. Apenas em 1927, porém, começam a funcionar no país serviços regulares16.

    A aviação como “espetáculo” continua como tema importante na imprensa, no cinema, na “vida em sociedade”. Agora, porém, como fenônemo de massa, e, tendo como fundo especial as próprias comemorações do Centenário da Independência.

    O cinema, mais uma vez, pode ser usado aqui para indicar marcos simbólicos. Em 1920, é exibido no Teatro Salesiano, em 2 de outubro, a grande produção, em 5 (ou 6) partes, filmada com “três” operadores – Festejos ao Príncipe Aimone. A recepção em São Paulo à sua alteza real italiana é registrada em todos os pontos da cidade visitados pela comitiva, da Estação da Luz ao piquenique no Parque Antártica, e a “soberba” manifestação no campo do Palestra. Sem deixar de mencionar, o que nos interessa em especial por introduzir novos personagens: os “arrojados voos dos aviadores Edu [Chaves] e irmãos Robba”17.

    Semanas depois, o cine Congresso, exibe em 19 de outubro o filme, em 5 partes – Os reis da Bélgica em São Paulo. Produzido e realizado pelos aviadores italianos Robba e Domingos Bertoni (?-1924), o filme sucede produção similar, da Fox, sobre a passagem das altezas reais pelo Rio de Janeiro. Os festejos, na produção carioca, são filmados por 3 operadores, um deles João Etchebehere, de avião, e outro, A. Junqueira, em automóvel e no mar18. A novidade é explorada por várias produções, em especial na chegada dos aviadores portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho, em 1922, tema da fita Raid Lisboa-Rio: “(...) 6 operadores em vôo pela cidade do Rio multiplicaram os seus esforços com o fim de dar ao público toda a beleza da realidade”19.

    As “tardes de aviação”, eventuais antes da Grande Guerra, retomam com força. Os voos realizados no Parque Antartica ou no Prado da Mooca ganham agora espaços “próprios”: os aeródromos.

    O jornal Rossi Atualidades, produção da Rossi Filme, em sua edição 23, exíbida em 15 de novembro de 1922, no Cine-Teatro República, entre recepções ao Presidente da república, inauguração de estrada de rodagem etc, inclui cenas da “tarde de aviação no aeródromo da gentil sota Tereza de Marzo”. Quase um mês após, o mesmo jornal Rossi Atualidades, agora na edição 25, exibida em 12 de dezembro, destaca entre suas notícias: “Inauguração do novo aeródromo dos irmãos Robba”20.

    A CIGARRA, 15 de fevereiro de 1922

    Anesia Machado, sobrinha do General Pinheiro Machado,
    posa com seu instrutor, tenente Reynaldo Gonçalves, nas instalações da
    Escola de Aviação Curtiss, no aeródromo de Indianópolis.

    A Cigarra, 15 de fevereiro de 1922.

    Acervo Arquivo Público do Estado de São Paulo

    Thereza de Marzo (1903-1986) e Anésia Pinheiro Machado (1904-1999) são as primeiras brasileiras a receber licença para pilotagem, em 1922, tendo ambas como treinador Fritz Roesler (?-1971), com o qual a primeira se casará, abandonando a aviação. Anésia ganha fama ao ser pilota pioneira a fazer a travessia solo entre São Paulo e Rio em setembro de 1922, cinco meses após receber a licença21.

    Foi no Aeródromo Brasil, no Ipiranga, que Thereza inicia seu treinamento com os irmãos Robba: João e Henrique22. Logo depois a aviadora inaugura seu próprio aeródromo e escola, que têm pouca duração. Na zona norte, Edu Chaves tinha seu campo particular no Guapira desde a década de 1910, sem mencionar as instalações iniciais do Campo de Marte, tradicional área na várzea do Tietê, que recebe na década de 1920 as primeiras ocupações pela aviação. Data do mesmo periodo, com o crescimento explosivo do número de interessados, a implantação do Aero Club de São Paulo, que surge com diferentes denominações na imprensa.

    Os irmãos Robba, além de manter o campo de aviação e as aulas, buscam novas oportunidades comerciais. Em fevereiro de 1922, a revista A Cigarra registra viagem a Ribeirão Preto de grupo formado por João Robba, o tenente engenheiro Giuseppe Cornetto e o mecânico, e futuro piloto, Vasco Cinquini (1900-1930), todos apresentados como associados ao Aeródromo Brasil. O propósito era avaliar a implantação de rotas aéreas comerciais23. Os Robba continuariam a procurar novas frentes24.

    A CIGARRA, 25 de fevereiro de 1922

    A missão a Ribeirão Preto empreendida em fevereiro de 1922 pelo piloto João Robba, o tenente Cornetto e o mecânico Cinquini é registrada na imprensa. Aqui, em A Cigarra, do dia 15, mas o mesmo flagrante da equipe junto ao avião é reproduzido na revista carioca O Malho, do dia 18, ambas notificando a intenção de implantação de rotas aéreas comerciais.

    Acervos Arquivo Público do Estado de São Paulo e Biblioteca Nacional

    As “tardes de aviação” são, nesse contexto, um empreitada comercial, momento publicitário por excelência. Essas ações se mesclam ainda com eventos muito próximos como homenagens e participações em paradas militares nas datas nacionais. Um exemplo acontece no domingo, 1 de abril de 1923, no Aeródromo Brasil, “em homenagem à missão fascista italiana” a São Paulo, como indicam notas sobre o filme O fascismo em São Paulo, da Rossi Filme, exibido no República no dia 9 seguinte. É o tema também da produção da Ubirajara Filme, exibida no mesmo cinema no dia 16 – Uma bela tarde de aviação25:

    “Raids aéreos”

    Tão populares quanto a matriz automobilística da década anterior, os raids aéreos ganham por sua vez nova escala, agora de alcance global. Edu Chaves, que realizara a travessia São Paulo-Rio em 1914, completa em janeiro de 1921 o raid Rio-Buenos Aires. Em 1923, noutro exemplo, o Brasil recebe os aviadores Pinto Martins, brasileiro, e Walter Hinton, norte-americano, que fazem a ligação Nova York-Rio.

    A CIGARRA, 1 de janeiro de 1921

    A Cigarra faz homenagem a Edu Chaves
    em janeiro de 1921 quando vence o raid Rio-Buenos Aires.

    Acervo Arquivo Público do Estado de São Paulo

    Em 1927, os italianos Francesco De Pinedo (1890-1933), Carlos Del Prete (1897-1928) e Vitale Zacchet, realizam voo partindo de Roma e percorrendo longo percurso pelas Américas; no mesmo ano é o brasileiro João Ribeiro de Barros (1900-1947), que, com o avião Jahú, completa a travessia Genova-São Paulo. No ano seguinte, o italiano Del Prete realiza a façanha de fazer o percurso sem escalas entre Roma e Touros, no Rio Grande do Norte, num total de pouco mais de sete mil quilometros. A cidade do Rio de Janeiro, em especial, torna-se ponto de passagem obrigatória; ao lado é claro de cidades no Nordeste, pontos fundamentais para voos vindos da América do Norte, Europa e África.

    O MALHO, 7 de maio de 1927

    O Malho, grande magazine carioca, exalta em maio de 1927
    a tripulação do Jahú, sob comando de Ribeiro de Barros,
    ao completar a travessia Genova-São Paulo.

    Acervo Biblioteca Nacional

    Datam do início da década de 1920 os principais marcos que sinalizam o crescente interesse do público, talvez os primeiros grandes fenômenos de massa da cidade. A recepção nas cidades brasileiras aos aviadores portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral, pioneiros da travessia do Atlântico Sul em 1922, ganha dimensões inusuais. Antecedendo a chegada do rádio no país, cuja primeira transmissão teria lugar meses depois, a população acompanha através de telegramas na imprensa os desdobramentos do raid desde a partida em 30 de março de Lisboa à chegada ao Rio em 17 de junho de 1922.

    A imprensa local, em especial os veículos cariocas e paulistanos que desde a década anterior têm na fotografia um novo recurso visual, explora o evento. A revista A Cigarra, por exemplo, publica imagem de logradouro da cidade de São Paulo tomado pelo público logo após a divulgação da chegada dos aviadores ao Rio27. Festas e comemorações diversas esperam os aviadores portugueses, que se estendem a São Paulo no mês seguinte. Num sábado, 8 de julho, o Aero Club de São Paulo realiza evento com provas de aviação no Prado da Mooca, oportunidade única para os adeptos e personalidades locais tomarem parte28. Lá estão o tenente Reynaldo Gonçalves, primeiro lugar na prova de “aterragem de precisão”, Edu Chaves, primeiro lugar em velocidade, Anésia Machado e Henrique Robba. A Cigarra publica com destaque mosaico de fotos dos participantes e inclui ao centro o retrato de João Robba, primeiro lugar em acrobacia29.

    O MALHO, 7 de maio de 1927

    Multidão acompanha as notícias do raid do Jahú,
    na porta da redação do jornal carioca A Patria.
    Como de hábito, fotos e telegramas de notícias recentes eram
    expostos nas vitrines e entradas dos jornais.

    O Malho, 7 de maio de 1927.

    Acervo Biblioteca Nacional

    Fenômeno de massa, em sintonia midiática, será a recepção ao hidroplano Jahú, em 1927. Comemorando a travessia entre Cabo Verde e Fernando de Noronha realizada em 28 de abril, São Paulo recebe o piloto e sua equipe30. O fato atrai grande multidão, como descreve, num tom frio, mas em excepcional registro, o relatório da diretoria da The São Paulo Tramway, Light & Power, empresa responsável pelo sistema de bondes elétricos e fornecedor de energia elétrica para a capital:
    A figura heróica do aviador faz parte assim das décadas de 1910 e 1920 de forma única, expressão individual de uma indústria complexa. É oportuno comentar, marco importante nessa construção, que menos de um mês após o raid do Atlântico Sul pelo Jahú, Charles Lindbergh (1902-1974), realiza entre 20 e 21 de maio a travessia entre o estado de Nova York e Paris em seu voo solitário no Spirit of St Louis32.

    Completando esse fenômeno midiático, em especial nas aproximações entre aviação e cinema, seria oportuno comentar o lançamento em 31 de outubro de 1925 do longa-metragem brasileiro: Hei de vencer. Produção de grande porte da Guanabara Filme, sob coordenação de Antonio Tibiriçá, tem como “operador” Luís de Barros (1893-1982), importante diretor nas décadas seguintes.

    A CIGARRA, 15 de fevereiro de 1924

    Cena do longa-metragem Hei de vencer "apanhada" em pleno voo sobre o Campo de Marte: aviação e cinema constituem campo irradiado de valores de uma modernidade técnica.
    A Cigarra, 15 de fevereiro de 1924.

    Acervo Arquivo Público do Estado de São Paulo

    O filme de aventuras, realizado no Rio e São Paulo, tem como centro mais do que o enredo esperado, as aventuras dos aviadores33. Com destaque na imprensa para a participação dos aviadores João Robba, Reynado Gonçalves e Anésia Pinheiro Machado, todos eles representantes conhecidos do periodo, são as acrobacias mirabolantes que ganham espaço nos anúncios e no cartaz com cenas de batalha aérea. Em 7 de fevereiro, como anuncia a imprensa local34, o ator Antonio Sorrentino salta a 200 metros de altura entre os aviões pilotados por João Robba e Anésia Machado sobre o Campo de Marte! Ficção e realidade, numa expressão clássica, parecem se misturar, ou encontram, talvez, seu ponto de confluência ideal.


    Um novo olhar: fotogrametria

    Em menos de quinze anos após o vôo baixo sobre o campo de Bagatelle, a aviação constituia-se como espaço de grande investimento material e simbólico. Indo além do desenvolvimento de aeronaves, formação de equipes de uma vasta gama de especialidades e implantação de infraestrutura civil e militar, novos usos e funções começam a tomar forma.

    A fotogrametria, em aplicação prática desde as duas últimas décadas do século XIX, não parece ter registro no Brasil até o início do século XX. Idealizada a partir da interpretação analítica de fotografias, o processo permitia registrar a volumetria de determinados terrenos em forma cartográfica. Realizada a partir de fotos tomadas em pontos elevados e mesmo a partir de navios, a fotogrametria tinha uso estabelecido na Europa e América do Norte.

    Não que seu uso fosse desconhecido dos engenheiros e técnicos brasileiros da década de 1890. Um exemplo disso é a resenha, em 1896, de Louis Cruls (1848-1908), atuante desde meados dos anos 1870 no Observatório Imperial do Rio de Janeiro, sobre a obra de Gélio Towne, editada no mesmo ano em Paris pela Livraria E. Bertaux. O livro, intitulado Astronomie, Astrophysique, Géodesie, Topographie et Photogrammétrie pratique, escrito em dois volumes, recebe apreciação positiva, embora com pequenas ressalvas sobre seu caráter eminentemente prático35.

    Ainda assim o desenvolvimento do campo seria objeto da bibliografia técnica que os engenheiros brasileiros na virada para o século XX dispunham, como também tinham contato em seus programas curriculares. O Brasil, além disso, interessava a aqueles que pretendiam explorar comercialmente o sistema. Ao menos, quanto à garantia de patentes. Assim, os registros publicados nos Diários Oficiais, da União, permitem acompanhar os avanços no setor.

    Em 26 de dezembro de 1906, por exemplo, Theodor Scheimplug (1865-1911), domiciliado em Viena, Áustria, apresenta, através de representante legal no Rio de Janeiro, um memorial descritivo sobre “novo processo de obtenção de cartas topográficas” para registro de privilégio de uso no país.

    Seu processo, objeto de longa argumentação, sem descrição precisa de equipamento ou metodologia, busca garantir a precisão no uso de fotografias obtidas por balões e pipas, como também de navios e pontos elevados, através da “determinação exata do ponto de tomada” e retificação, estabelecendo a transposição da imagem em perspectiva central para projeção ortogonal, permitindo então a geração de mapas. O processo possibilitava a retificação pelos “métodos atuais da fotogrametria” (análíticos e geométricos) como do “stero-comparador de Pulfrich”36, produzido pela casa Zeiss, de Jena. O privilégio é concedido sob o número 4.836 e publicado em 20 de fevereiro de 190737.

    Longo período, parte devido ao tempo de desenvolvimento das pesquisas e parte pelas dificuldades impostas pela Grande Guerra, se estende até novo registro do gênero. Em 17 de agosto de 1921, o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, dá privilégio de exclusividade por 15 anos a Umberto Nistri (1895-1962), oficial do Exército italiano, estabelecido em Roma, que solicita registro de patente para “um novo processo fotogramétrico para levantar plantas, e um aparelho para esse fim”, conforme registro publicado em 7 de setembro sob número 12.19238.

    Um memorial extenso explica o conceito do processo e do equipamento proposto por Umberto Nistri, sendo publicado na edição do dia 21 do mesmo mês39. O sistema, como outros que lhe são contemporâneos, introduz uma alternativa, o que veremos adiante, aos métodos empregados pela fotogrametria, de natureza analítica-geométrica, utilizando equipamentos que permitem, numa expressão da época, a obtenção “automática” das pranchas cartográficas com curvas de níveis. Associavam-se desse modo ganho de produtividade e maior acuracidade.

    Contribuição promissora para o uso entre nós da fotogrametria ocorre em outra esfera, através das ações do Estado no setor militar. É no Ministério da Guerra, no início da República, que ato legal cria o Serviço Geográfico. Embora seja longo e moroso o processo de sua efetiva implantação, como veremos, sua produção é conhecida de seus contemporâneos40.

    Sinal disso, é artigo publicado em julho de 1927, sobre navegação fluvial, que transcreve projeto apresentado à Camara Federal por Aarão Reis, deputado pelo Pará. Seu escopo é o serviço de navegação e a necessidade de intensificação e desenvolvimento do setor nas bacias dos rios Paraná e Paraguai. Citando fala do deputado, que prevê em sua proposta o uso de hidroaviões, com base em Corumbá, fica claro o conhecimento das atividades do Serviço Geográfico:
    Meses após a proclamação da República, o decreto federal nº 451-A, de 31 de maio de 1890, reorganizava o Observatório o Rio de Janeiro42 e subordina-o ao Ministério da Guerra43. Cria-se então o “serviço geographico”, cujo regulamento consta daquele ato legal, estabelecendo seu perfil como unidade de produção e formação especializada em cartografia44. Meses depois, novo decreto, nº 859, em 13 de outubro, cria no Observatório uma escola de “astronomia e engenharia geográfica”.

    A proposta do Serviço Geográfico não foi, tudo indica, implantada em termos práticos. Suas funções voltam a ser reividicadas em 1900 no âmbito das discussões sobre o Projeto da Carta Geral do Brasil. Há grande ênfase nas argumentações sobre o mapeamento do território quanto às fronteiras e, em especial, na região do Rio Grande do Sul, palco de grandes conflitos enfrentados no século XIX com os países platinos.

    Quase duas décadas depois, em meados da I Guerra Mundial, em 1917, tem início ações efetivas para organização do então Serviço Geográfico Militar, subordinado, como diversos outros núcleos de apoio técnico, diretamente ao Estado-Maior do Exército. Naquele ano, em 6 de junho, o decreto nº 12.503 abre créditos diversos entre eles “para maquinismos, sendo 15:000$ para trabalhos preliminares de organização e execução do serviço geográfico militar, concernente à estereofotogrametria e topografia militar, 500:000$”. Mais adiante, em 4 de setembro, o decreto nº 12.631 destina mais 50$000 para “trabalhos preliminares de organização e execução do serviço geográfico militar”45.

    O setor é instalado, em 1917, na antiga fábrica no Morro da Conceição, área central da capital federal, edifício que se encontra quase em ruínas, mas, ressalva o relatório, em condições de uso. As atividades se encontram organizadas, de início, em grupos especializados: geodésia, topografia, estatística regional, estereofotogrametria e topografia expedita. Essa organização ganha com o tempo novas configurações.

    Nos anos seguintes pouco se sabe sobre aquela unidade, porém46. Em 1921, as atividades registradas no relatório anual indicam a ampliação das instalações com a compra do Palácio do Arcebispado e anexo, no Morro da Conceição. Mais importante, o texto registra que somente nesse ano foi possível receber “elementos essenciais de trabalho”, encomendados no exterior47. A ênfase, então, entre 1917 e 1921 foram as obras nas instalações e os trabalhos de instrução das diversas equipes.

    O relato, relativamente extenso, além da ênfase em organização e treinamento, indica um planejamento a médio prazo, como faz crer o tópico Cartografia brasileria. Estudo do seu programa48. Curto, contudo, o texto convive com digressões sobre o uso da fotogrametria, que a elegem como a modalidade técnica que deve predominar nos anos seguintes.

    O tópico Métodos e processos de levantamento assim inicia: “A experiência tem consagrado sem restrição a fotogrametria (terrestre, marítima e aeronáutica) em todas as suas modalidades, como o principal recurso de execução e elemento primordial de organização do serviço geográfico militar.” Cauteloso, porém, o texto aponta que frente a uma eventual falta de recursos os métodos tradicionais, como a topografia militar, devem ser mantidos.

    Existe, neste momento, um núcleo especializado em “serviços de aerotopografia”, tópico que revela um marco importante: o levantamenteo aéreo do Distrito Federal. A nota, quase indireta, surge ao informar que a instrução técnica está sendo ministrada em paralelo à execução desse trabalhos.

    Quase certo, deste primeiro levantamento realizado no Brasil, aplicado a áreas urbanas em grande extensão, que deveria gerar uma cartografia em escala 1:50.000, pouco mais é revelado nos relatórios. Dados como equipamentos utilizados, produção de fotocartas controladas, procedimentos como retificação, são ignorados. Teriam as equipes condições de realizar então a transposição para pranchas cartográficas ou seriam as fotocartas meras referências para os métodos cartográficos tradicionais?

    O relatório, logo adiante, volta a a afirmar sua previsão, aqui de modo específico, que a estereofotogrametria aeronáutica será modalidade predominante. Menciona-se ainda a organização de estudos para produção de equipamentos nas oficinas do Serviço Geográfico Militar, sem indicar a natureza dos mesmos, como também registra-se o estudo sobre as caracterísitas a satisfazer para “um tipo de avião-anfíbio destinado a essas operações”50.

    O ano de 1922 traz alguma novidade. Há menção direta às instalações transitórias destinadas à estereofotogrametria no Morro da Conceição, bem como o projeto para um serviço, também transitório, de impressão cartográfica51. Mais importante é a menção ao transporte de “estereoautografo” para o Serviço Geográfico sediado no Morro da Conceição. Infelizmente, pela natureza irregular desses relatos, não existem referências concretas sobre o equipamento e seu uso efetivo, agora e nos próximos anos pesquisados.

    Oportuna menção, ao relacionar os projetos em andamento, é confirmar a organização efetiva do serviço geográfico militar em 1918. Entre os trabalhos, para 1922, constam o “Preparo dos elementos de trabalho (pessoal e material) para o levantamento do Distrito Federal na escala de 1:50.000 com 4 turmas de geodésia, 2 de estereofotogrametria, 1 de aerotopografia e 10 de topografia“52.

    1923 e os anos seguintes trazem notícias preocupantes. O longo relato, de seis páginas, sobre a unidade revela a continuidade das tarefas e ênfase sobre treinamento das equipes53, mas há atraso nas obras das instalações, parcialmente ocupadas então. As aquisições de material técnico no exterior, que inclui “trens estereofotogramétricos”, aqui entendido na acepção genérica do termo “'trem”, enfrentam os atuais preços exorbitantes54.

    O item Estereofotogrametria revela que o treinamento dos oficiais da seção está sendo feito por técnico especialmente contratado e prevê para setembro de 1924 o início de trabalhos de campo para levantamento estereofotogramétrico do município de Niterói. A seção dedicada à aerotopografia, provávelmente responsável pela fase dos voos, “realizou em janeiro alguns voos em aparelho Caudron, complementares ao levantamento do Distrito Federal, e organizou o anteprojeto do Estado do Rio”55. Mais adiante acrescente: “Em março iniciou-se a confecção dos registros de negativos, de cópias e de fotocartas referentes aos voos no Distrito Federal, serviço já ultimado”.

    Os anos de 1924 e 1925, como revelam os relatos específicos são desalentadores. Os eventos “subversivos” de julho — a Revolução de 1924 — geram interrupções graves dos serviços, embora o tom dos relatórios procure atenuar o fato evidente. Há perda de praças da unidade e decide-se por investir no treinamento dos oficiais. É o que ocorre em 1925 quando é realizado um curso sobre estereofotogrametria. A seção de aerotopografia menciona voos de instrução para oficiais no Campo dos Afonsos e experiências com “aparelhos aerotopográficos”. O destaque é dado à produção de publicações, entre elas Apontamentos de estereophotogrammetria, quase certo uma das mais antigas do gênero no país.

    A impossiblidade de acesso no momento a relatórios para o período de 1926 e 1933 permite especular sobre eventual recuperação. Sempre, é claro, a temer as consequências das revoluções de 1930 e 1932 sobre a unidade56. O relatório para o ano de 1934 é desalentador. Três parágrafos apenas são destinados ao, agora, Serviço Geográfico do Exército. Além da menção à reorganização geral do Ministério, sabe-se que a 2ª Divisão de levantamento, sediada no Rio, ficou “sem efetivo”. Ainda assim, comemora-se a organização da 1ª Divisão, sediada em Porto Alegre, região de fronteira, cuja demanda de serviços cartográficos é há muito uma prioridade militar.

    O pioneirismo do Serviço Geográfico na formação e treinamento de equipes estáveis para emprego da aerofotogrametria no quadro de suas atribuições é evidente nos breves relatos anuais do Ministério da Guerra. A correta extensão dos serviços e efetiva contribuição são aspectos que demandarão esforços para traçar um quadro mais preciso sobre o tema.
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    Para citação adote:

    MENDES, Ricardo. S.A.R.A. Brasil: restituindo o Mapa Topográfico do Município de São Paulo.
    INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 10 (37): dez.2014
    <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>

     
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