Modelando o República: um cine-teatro
da década de 1920
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Skating Palace: a trajetória tumultuada de um edifício
A etapa inicial do Projeto Modelagem coincide com a identificação de número expressivo de projetos para salas de cinema de São Paulo,
datados da década de 1910, presentes no acervo da instituição. O reconhecimento imediato da importância dessa documentação para a
historiografia do cinema brasileiro e da arquitetura acabou gerando desdobramentos na direção de divulgar e estimular a
pesquisa.
A decisão de estabelecer um modelo virtual do Cine Teatro República, um edificação complexa espacialmente, teve por base o conjunto
expressivo de pranchas localizadas, registros excepcionais, em especial, ao confrontar a reduzida iconografia sobre o
edifício disponível até então.
A pesquisa documental revelou ainda a história tortuosa do edifício original ao longo de quase meio século. Estabeleceu uma
trajetória modelar sobre o potencial de pesquisa do conjunto documental custodiado.
SKATING PALACE
Praça da Republica n.50
Hoje Inauguração Hoje
A's 8 horas da noite
Patinação de luxo
Skating com pista technicamente feita (sic, [perfeita]), com triplice assoalho, grande orchestrion,
12 professores de patinação, com exhibição da grande DEFILE MARCH (sic) e de valsas artisticas, por todos os professores.
Numeroso pessoal ao serviço do público, composto de 60 pessoas
BAR AMERICANO
(Skating Palace. O Estado de S. Paulo, 28.12.1912, p.11 )
Projeto para fachada do Skating Palace, à Praça da República, 1911.
Observe que a elevação apresenta um edifício com dois pavimentos, embora o projeto apresentado à prefeitura conte com três pavimentos.
Acervo AHSP
A grande equipe de trabalho parece estar à altura do empreendimento. Inaugurado em 28 de dezembro de 1912, a edificação, situada na
Praça da República quase na confluência da Rua do Arouche, devia atrair a atenção dos passantes. À sua frente, um pouco à direita,
dominara a praça por quase vinte anos apenas o edifício da Escola Normal, depois conhecida como Caetano de
Campos. Ao redor desse segmento da praça estendia-se rumo à Vila Buarque e
Santa Cecília um área de grande concentração residencial. O casario, porém, apresentava aspecto heretogêneo mesclando construções de
porte (em trechos próximos à atual Avenida São Luís, por exemplo) a casas mais simples.
”(...) Com extraordinaria concorrencia de exmas familias inaugurou-se hontem o Skating Palace, da Sociedade Sports e Attrações.
O bello e ellegante predio, erguido á praça da Republica, a avaliar-se pela animada concorrencia de sua inauguração, está destinado a
ser o "rendez-vous" das familias da elite desta capital.
(Noticias diversas/Skating-Palace. O Estado de S. Paulo, 29.12.1912, p.9)
O investimento exigido pelo edifício destinado à patinação não representava uma aposta num modismo recente.
A prática da patinação recreativa estava presente na cidade há muito. Em 1878, por exemplo, o jornal
A Província de São Paulo trazia registro em que o Rink Imperial, estabelecimento sem endereço indicado,
anuncia seu concurso para patinadores no domingo, dia 13, com quatro corridas, uma para crianças, com premiação, seguidas por
"Patinação geral". Ao final do evento "Haverá bonds para a cidade ás 10 ½ da noite./ Os premios acham-se expostos nas vitrinas
dos srs. Garraux & Comp./ Entrada geral... 1$000/ Principiará ás 7 ½."
A presença dos rinks de patinação será regular na cidade ao longo da primeira metade do século XX, sujeita certamente a modismos e
retomadas. Vicente de Paula Araújo, em seu clássico Salões, circos e cinemas de São Paulo (1981), traz referências contínuas a
ocorrências de espaços dedicados à prática da patinação recreativa. Em 1904, por exemplo, é inaugurado em outubro na Rua do Gasômetro
nº 114 o Rink Cosmópolis; quase dois meses após, em 30 de dezembro, é aberto o São Paulo Star Skating Rink, à Rua Onze de Junho nº 3,
que se mantém ativo pelo menos até o ano seguinte. Ao mesmo tempo, o Teatro Popular seria transformado em sação de patinação,
sem data precisa.
No ano seguinte, em 1905, Araújo registra o Art Nouveau Rink, sem local definido, sob direção de Chaby e Rochinha:
“Aí se realizavam competições de raprazes e senhoritas, coridas com camisolas e de maças. A agilidade de suas sportwomen
era apreciada, principalmente a demi-mondaine Alzira, uma das melhores corridistas do salão.” (ARAÚJO, 1981, p.282).
No mesmo ano, encontra-se em atividade o Columbia Skating Rink, com jogos de futebol sobre patins. Ainda em 1905, em 23 de abril,
foi inaugurado o Rink Antartica, com salão ao ar livre, na Água Branca.
O Skating Palace, também conhecido como Skating Rink, tem seu projeto inical apresentado à prefeitura em julho de 1911 por
José Rossi, arquiteto construtor, com escritório no Largo Antonio Prado.
Destinado a patinação e cinematógrafo, como indicam as pranchas inclusas no requerimento, o edifício ocupa um terreno de 2.170 metros
quadrados. Com duas frentes, para a praça e para a Rua Aurora,
o terreno apresenta testadas similares para os dois logradouros de aproximadamene 31 metros.
O projeto, desenvolvido para a Companhia Sports e Atrações, recebe o
alvará nº 2.254. Observações existentes no processo revelam
aspectos da edificação, entre elas o comentário sobre a grande marquise ao longo da fachada para a praça, com cobertura de vidro sobre o
passeio.
O edifício era composto por um bloco frontal e o corpo principal destinado à pista de patinação. A fachada principal
apresenta um elemento central composto pelas portas principais, encimado por uma abertura envidraçada em arco no primeiro andar,
coroada por uma cúpula. A simetria do conjunto é interrompida apenas por uma pequena extensão à esquerda do observador, que
será destinada à entrada para as galerias, com assentos de preço mais acessível, constituindo então um anexo de menor altura que
se estende ao longo da edificação. O conjunto de gosto eclético aparece encimado por pequenas pilastras adornadas junto à cúpula e
grades ornamentais ao longo da platibanda. A fachada para a Rua Aurora é distinta, com grande frontão triangular abrigando um arco
envidraçadao, constituindo um conjunto de aspecto mais severo.
Projeto para fachada posterior do Skating Palace, à Rua Aurora, 1911.
Como no caso da fachada anterior, esta elevação apresenta dois pavimentos.
Note, à direita, o corpo mais baixo ao longo do edifício.
O aspecto severo contrasta com a fachada principal.
Esta reprodução apresenta a imagem revertida do original em cópia azul.
Acervo AHSP
O bloco frontal abriga, além do vestíbulo e “brasserie” no térreo, serviço de bar ao redor da pista, e no primeiro andar, as dependências
da “diretoria”. O corpo principal é constituido basicamente de uma grande oval destinada à pista de patinação com dois lances sobrepostos
para camarotes e galerias. Na lateral esquerda, pequenas salas são destinadas a banheiros, depósitos e salas reservadas a funcionários.
As pranchas de arquitetura presentes no processo introduzem um problema. As fachadas com dois pavimentos estão em evidente conflito com
as plantas para três pavimentos. Não existe menção no processo sobre modificações nesse sentido. Voltaremos ao tema mais adiante.
Corte transversal do salão de patinação do Skating Palace, 1911.
Vista em direção ao fundo do edifício.
O desenho apresenta com clareza o projeto com três pavimentos ao redor do rinque.
Esta reprodução apresenta a imagem revertida do original em cópia azul.
Acervo AHSP
As informações sobre andamento indicam as preocupações da municipalidade. O engenheiro João de Sá Rocha, que terá um papel relevante na
aprovação de projetos de salas de cinema por um longo período, revela desde já a preocupação com a segurança dos futuros frequentadores
e aponta a “falta de garantias suficientes para público”. A ação da fiscalização irá impor modificações no projeto, exigindo a abertura
de três saídas para a Rua Aurora, com portas abrindo para o lado externo, bem como alterações do desenho dos cantos das pista, mudança
na largura das escadas e eliminação das arquibancadas programadas para o primeiro andar atrás dos camarotes. Ao final, a
lotação estimada era de 1500 pessoas.
Skating Palace, 1911.
Plantas baixas dos três pavimentos (térreo, 1º e 2º pavimentos,
da esquerda para direita).
Embora reduzido, a prancha permite ver o bloco frontal na parte baixa da imagem. Acima, a grande
pista oval é circundada por camarotes e galerias. À esquerda, bloco estreito corre ao longo da edificação e abriga banheiros e outras
áreas de apoio.
Acervo AHSP
O processo traz comentário elucidativo sobre a função do edifício, quando Sá Rocha aponta a patinação como atividade de inverno, sazonal.
Talvez esse seja o motivo do projeto encaminhado indicar o uso como cinematógrafo. O início da década de 1910 na capital paulista parece
registrar, como tantos processos identificados no acervo AHSP indicam, uma explosão no número de novas salas de exibição, não apenas no
centro, mas em todos os locais de grande concentração de potenciais espectadores. A ocupação do Skating Palace não é muito diferente.
Embora esteja indicada a localização da tela no primeiro andar, não há registro da posição da cabine de projeção
(e mesmo da existência de uma em caráter permanente) e, pelas condições do edifício, a opção seria o emprego de retroprojeção,
prática usual na cidade durante as duas primeiras décadas do século XX, até o surgimento em 1916 de legislação municipal específica.
Em outubro de 1912 as obras parecem estar em fase de acabamento quando José Rossi solicita autorização para colocar caldeira para asfalto
na rua por cinco dias, material que seria utilizado para aplicação no piso da pista. Em 24 de dezembro, às vésperas da inauguração,
o edifício é vistoriado e liberado.
Se o sucesso da abertura, como registra a nota na imprensa mencionada, parecia indicar um futuro promissor para o empreendimento,
a sequência dos requerimentos apresentados à prefeitura nos anos seguintes revela um quadro distinto, como a confirmar o comentário
sobre aspecto sazonal da patinação entre nós, conforme comentário de Sá Rocha no processo inicial.
Em janeiro de 1914 a Companhia Sports e Atrações apresenta à prefeitura um pedido para adaptação do Skating para teatro.
Parecer do funcionário Celso Viana em 3 de fevereiro indica problemas no projeto como a ausência de camarins, a presença de frisas
projetadas cortando a visão do palco e a necessidade de instalação de ventilação artificial. O pedido não teve continuidade,
mas novo requerimento no ano seguinte indicaria que a destinação da casa apresentava problemas.
Em 18 de setembro de 1915, o engenheiro M. Rosa, da diretoria de Obras e Viação apresenta projeto e orçamento para modificação
do Skating-Rink para mercado de frutas e legumes. As informações do processo revelam o envolvimento da própria Companhia Sports &
Attrações no projeto. A intenção seria substituir o recém demolido “Mercadinho da São João”, no Anhangabaú. A oferta foi recusada
pela prefeitura.
Skating Palace, 1915.
Proposta, não realizada, de adaptação para mercado de frutas e legumes.
O croqui apresenta apenas uma ocupação por bancas,
sem apresentar maior interferência na edificação.
Acervo AHSP
Nada indica nesta série de processos se o Skating mantivera suas atividades no período. Através da imprensa, sabe-se que eventualmente ocorrem ali bailes como o realizado pelo Ideal Club em maio de 1916, como registra a edição de A Cigarra, em 20 de maio.
Skating Palace, 1916.
Participantes de baile do Ideal Club, na pista do Skating.
A CIGARRA, (42): n.p, 20.05.1916
Acervo APESP
A busca de novos usos terá
um lance bem sucessido em 1919. Data de então pedido para modificações no edifício, primeiro em agosto, depois em novembro, da parte de
prestadores de serviços para a Ford Motor Company. A empresa instavala no Brasil suas oficinas de montagem. O primeiro pedido dizia
respeito à instalação de uma clarabóia, mas o segundo, feito por Carlos Ekmann (1866-1940) previa a instalação da “oficina de montagem
da Ford Motor Co.” no “antigo Skating Palace”.
Skating Palace, 1919. Ocupação Ford Motor Company.
Corte transversal apresenta adaptações para instalação de forno
de pintura no segundo pavimento, à direita.
Vista em direção à Praça da República.
Acervo AHSP
As pranchas presentes no processo indicam o fechamento de parte do segundo andar com tapamento de chapas de ferro em metade
do perímetro e a instalação de um forno da seção de pintura. Curiosamente, não há indicação no projeto de elevador de carga ou
rampa de acesso para veículos. A ocupação não seria, ainda desta vez, de longa duração, pois a Ford instalaria suas oficinas pouco mais
de um ano depois em edíficio especialmente construído na Rua Solon, no Bom Retiro.
Continua >
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Para citação adote:
MENDES, Ricardo. Modelando o República: um cine-teatro da década de 1920.
INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 7 (30): jul/set.2011
<http://www.arquivohistorico.sp.gov.br> (disponível em novembro de 2011)
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