PMSP/SMC
São Paulo, fevereiro de 2014
Ano 9 N.35 

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  • ENSAIO TEMÁTICO
  • José de Sá Rocha: engenheiro municipal

    uma trajetória pessoal e a formação de um corpo técnico para gestão da cidade




    | Família | Engenharia Municipal | Alma das ruas | Tempos de maturidade | Epílogo | Fontes |


    Examinando a alma das ruas

    Cada profissão constrói uma imagem do seu ofício. O escritor Rubem Fonseca, advogado de profissão, por meio do personagem turbulento e cínico, o dr. Mandrake, deu-nos a sua versão do ofício: “Sai, fui até o Fôro ver o andamento de alguns processos. Quem pensa que advogado trabalha com a cabeça está enganado, advogado trabalha com os pés. Todas as petições são iguais, quanto menor melhor, para facilitar a vida do juiz”
    124. Caminhar do escritório ao fórum, voltar, visitar clientes, resolver seus problemas, e é nisso que Mandrake mais se empenha, eis a imagem literária construída sobre a circulação de um advogado pelas ruas da cidade, que está ali menos como paisagem de fruição, e mais para ser evitada, pois cada esquina ou corredor de prédio pode se apresentar com a face de uma morte violenta.

    José de Sá Rocha circulava intensamente pelos bairros do seu distrito, pelo menos nos seus primeiros sete anos de ofício, até que a reestruturação da DOV lhe deu um assistente. Como o dr. Mandrake, o engenheiro trabalhava com os pés, andando pelas ruas do Brás, da Mooca, ao longo dos trilhos da Central do Brasil (Bresser, Belenzinho, Quarta e Quinta Parada). Na rua da Mooca ele caminhava até onde ela começava a virar estrada. A isso o obrigou José Caetano, construtor de uma casa nesta rua, no número provisório (comumente chamado de “tinta”) 621, em 1912 125. A rua da Mooca praticamente terminava na Taquari. “Daí em diante a rua é mais uma estrada que verdadeiramente rua, e não há numeração regular”. Ou seja, estamos falando de uma via, na época, um pouco além dos trilhos da Inglesa, da São Paulo Railway, da estação da Mooca, onde o engenheiro teria descido, próximo da atual avenida Paes de Barros. Segundo José Caetano, o seu terreno ficava 500 metros além da Vila Feijó, em frente aos tanques do Penteado, no alto da Mooca (a quantidade de indicações geográficas e sinalizações espaciais que os requerentes forneciam para a localização de suas áreas traçavam um estranho mapa dos bairros, posto que desaparecidos). Portanto, além das pernas, o engenheiro deveria ter sentidos bem agudos de visão de forma a reconhecer os sinais indicativos da rota a seguir. E sorte para chegar ao destino com tempo bom126. Esquadrinhar ruas em constante mutação equivalia a analisar desenhos arquitetônicos que poderiam esconder algum erro, engano ou alteração secreta de objetivo. No contexto imobiliário das décadas de 1910 e 1920 construtor e engenheiro fiscal geralmente se viam como inimigos. Um representava o esforço capitalista, em geral selvagem, pela propriedade; o outro, a força normativa do Estado, muitas vezes também selvagem, pelos vários motivos que estamos analisando: ausência de uma legislação clara, de um plano de ocupação da cidade — mesmo que alguns vereadores disso se lamentassem, como José Mendes Gonçalves —, o universo de soluções apriorísticas e muitas vezes conflitantes entre o Município e o governo estadual, principalmente o Serviço Sanitário. Declarar-se caos urbano o ambiente local no começo do século talvez seja um exagero, porque esta parece ser a situação permanente da cidade de São Paulo. Dessa forma, o confronto era a regra, instaurando-se o medo e a ilegalidade entre os moradores de posições contrárias.

    O que era razoável para um dono de estábulo, poderia ser exagerado para o engenheiro municipal. Na mesma rua Mazzini em que um processo empacou pelas chuvas de verão, Izidoro Gouveia quis construir um quarto para forragens, para o qual pediu a devida licença127. Sá Rocha considerou que a obra pretendida era demasiado grande. “Tolera-se um pequeno quarto para esse fim, mas cuja área não precisa ter mais de 10 a 15 m2. Não me parece portanto razoável a aprovação”. Como Victor Freire estava de acordo, a planta foi retirada para retificação128. O conflito nas metragens pretendida e executada envolvia um medo secreto, cuja explicitação estava ausente do documento. Em outro sentido, recusava-se a ligação próxima entre banheiro e cozinha, mas a legislação era clara quanto ao quarto e a cozinha? O projeto de Francisco Santa Maria, uma casa de fundo de terreno com quatro cômodos na rua Mem de Sá, 26, incorria nesta questão129. Para Sá Rocha, “Parece-me que não é permitido pela Higiene que do quarto ou dormitório tenha ligação direta com a cozinha”. A legislação do Código Sanitário era clara ou obscura? Por que o “Parece-me”, que se imiscuía com um sentido antes de má vontade do que de alerta, abrindo a frase? Victor Freire marcou a sua equidistância: “nada temos com essa disposição”, dando-se o alvará. O que significa esse “nada temos”? Nada temos na postura municipal, nada temos com isso, nada temos a fazer? Na rua Glicério, 185, o “nada temos a fazer”, provavelmente acompanhado de um alçar de braços, foi a opinião final de Victor Freire, para o projeto de Laviero Salvia, cuja área interna de 12 m2 se reduzia a 4 m2, ferindo o Cap. VI, art.6º. do padrão. Para “esta casa, não se pode exigir coisa alguma” escreveu Freire.

    A casa dos pobres era sempre um problema. Nicolau Bernardo, intimado pelo Serviço Sanitário a construir cozinhas nas casas 5 e 7 da rua Mendes Gonçalves, entrou com seu pedido de licença em 22/2/1908 130. No primeiro momento, Sá Rocha, em geral indisposto com o que ele classificava de “intromissões” do Serviço Sanitário, declarou que se era somente para dar uma satisfação ao Estado, o projeto era inútil, pois faltava aos acréscimos projetados iluminação ou ventilação. Victor Freire pediu ao engenheiro uma visita ao local. As cozinhas seriam erguidas num espaço aberto entre duas casas.
      Nas casas mora gente pobre, e são casas como no geral, independentes. É um gravíssimo mal para o qual não temos remédio. No caso vertente (sic), tanto podem as cozinhas feitas aí como nos fundos das casas, que vem a ser o mesmo. A minha objeção era mais sobre o fato de não haver pelo menos uma pequena janela em cada cozinha, para arejá-la ou iluminá-la, em tempos chuvosos, porque quanto ao mais não vejo outro meio de atender às exigências do Serviço Sanitário. Os meios a empregar seriam radicais e rigorosos e escapam a nossa autoridade.
    Carlos Lemos apontou que a organização das instalações sanitárias ao lado da cozinha, devia-se à economia de gastos com a tubulação metálica, em geral importada131. A questão, que antes estava ausente nas casas operárias, cuja latrina (fossa negra) ficava fora do corpo principal da casa, apareceu para aquelas com maiores pretensões132. J. B. Lucats, erguendo uma casa na rua Galvão Bueno, 136, foi obrigado a fechar a comunicação entre cozinha e banheiro, depois que a planta passou pelas mãos de Sá Rocha: “Não se pode tolerar que o banheiro tenha qualquer comunicação com a cozinha”. A solução foi fechar a porta da cozinha, abrindo-a no sentido da copa133. O projeto de casa de Mateus Candia na avenida Rangel Pestana, 242, incorria em uma série de nãos: “A dispensa não deve ter comunicação direta com a sala de jantar. O banheiro e o WC não pode e não deve (sic) ter comunicação direta com o dormitório nem com a sala de jantar”134. O empreiteiro A. Ramos retirou as plantas em 8 de maio, que voltaram para análise no dia seguinte por intermédio de um mestre de obras mais experiente, Joaquim Cavalheiro.

    As suspeições sobre os prédios em construção ou em reforma fizeram parte do cotidiano do engenheiro Sá Rocha nos seus primeiros anos de trabalho para o município porque se tratava de banir do cenário sobretudo os pretensos cortiços que os proprietários insistiam em espalhar pela cidade135. Não que agissem fora da Lei. O padrão da Câmara Municipal proibia a sua construção dentro do “perímetro do comércio”, permitindo-a em “outros pontos” da cidade, desde que fosse “conveniente”, estabelecendo-se uma série de requisitos para as habitações coletivas. A zona de ação do distrito do engenheiro era particularmente visada. Os jornais noticiavam com certa frequência os problemas sanitários e policiais produzidos pelos moradores de cortiços situados no Brás, nas ruas Caetano Pinto, Carneiro Leão, Gasômetro, Silva Pinto e Rodrigues dos Santos, para citarmos algumas vias, sem que outros distritos ficassem isentos (ruas Bela Cintra, Consolação ou Duque de Caxias). A crônica policial estava cheia de casos de brigas, rixas, assassinatos, servindo os conflitos dos pobres e desvalidos como um prato diário da vida urbana moderna. A referência à construção de “casinhas”, “cômodos”, reformas, como a de Nicolau Bernardo vista acima, redobrava a vigilância dos engenheiros, porque nelas rondava o fantasma das “habitações coletivas”. Tal foi a situação criada por outras duas “casinhas” de Antonio Caetano na rua Rubino de Oliveira, 3 (tinta)136. Victor Freire, antecipando-se a Sá Rocha, ordenou uma visita ao local, porque ele desconfiava que fosse um cortiço. O parecer do engenheiro desagradou ao diretor, porque era favorável ao construtor. O engenheiro foi chamado à sala do superior. Dois dias depois, Sá Rocha escrevia que “é um verdadeiro cortiço. Já existem várias casinhas pequeniníssimas com 2 m de altura. As duas para que se pretende a licença são para renovar outras que existem nos cubículos existentes. Em minha opinião deveria ser negada a licença, e toda a construção existente deveria ser reformada”. Estamos analisando uma informação de um engenheiro recentemente aprovado para o serviço público, que se via num teste de fogo. A vistoria teria sido feita? Se realizada, ao olho técnico faltou apuro sobre a inconveniência do projeto? Ele não teria percebido que o conjunto formava um cortiço, que a altura do pé-direito era de 2 m, quando o padrão exigia o dobro? Essa pequena aula de fiscalização dada numa semana de dezembro de 1906 talvez tenha influenciado os pareceres seguintes, que se tornaram mais rigorosos. Numa rua bem conhecida do engenheiro, a Sampson, números 11 e 13, Antonio Henriques, analfabeto, foi multado e embargado pela construção de cozinhas sem licença137. Sá Rocha ficara incomodado pelas alegações do proprietário, porquanto o aumento da cozinha disfarçava outros objetivos, quais sejam a edificação
      [...] mas sim de cômodos, pois os donos alugam a estranhos, e portanto o aumento visa apenas transformar as pequenas casas em uma espécie de cortiço. As obras assim feitas, e com tanto açodamento que se podem dizer concluídas, prova mais do que suficiente do que alego. [...] Não se deve pois deixar passar este abuso, abrindo assim precedentes fatais.
    O possivelmente lusitano Henriques insistiu. Entrou com novas plantas na Prefeitura para acrescentar um banheiro em cada casa. Sá Rocha foi contrário ao projeto, lançando a suspeita de que os banheiros serviriam como cozinhas. O empreiteiro Benedito de Aguiar entrou com outro projeto, mas o processo ficou girando em falso entre a Secretaria Geral e a DOV. Para finalizar um processo em que estamos distante de uma conclusão satisfatória, consta dele um cartão de Clímaco César de Oliveira (escrivão do fórum com casas alugadas no bairro), pedindo a ajuda do major Álvaro Ramos (diretor da Seção de Polícia e Higiene). As obras realizadas provavelmente permaneceram na ilegalidade.

    Qualquer aumento de prédio era visto com desconfiança. Ciddio Pasqual (Pasquale Ciddio) ao pedir o aumento do seu imóvel na avenida Rangel Pestana, 199-A, recebeu a seguinte informação de Sá Rocha: “Sou contrário à concessão da licença. Na frente da casa existe um armazém, e o resto, pelo que pude observar, é ocupado por grande número de pessoas. A própria planta declara, como se pode ver, ‘quarto de operários na continuação etc’, de sorte que em minha opinião é uma verdadeira habitação coletiva, que não deve ser tolerada”138. Quando Victor Nardazzi quis construir cômodos na rua Rui Barbosa, 10, no mesmo ano de 1908, o engenheiro pediu a assinatura de um termo pelo proprietário em que se estipulava o uso do imóvel para uma única família139. O aumento da cozinha e a divisão de um quarto encaminhados por Theofilo Ribeiro para a rua Maria Marcolina, 220, foi indeferido porque se tratava “[...] do aumento de um cortiço dos mais ordinários. Convém chamar para o caso a ação do fiscal do Distrito, para evitar que se faça a construção”140.

    Qualquer imóvel poderia ser alvo de dúvida. Bastava, por exemplo, que tivesse boas dimensões e se situasse, como tantos, nos fundos do terreno. Isso aconteceu, por exemplo, com Antonieta Certela (Cortela?). Ela entrou com requerimento para a edificação de um barracão de tijolos destinado a uma marcenaria, cujas dimensões eram de 8,80 x 4,60 m141. O engenheiro da Prefeitura concluiu, pelo exame da planta, que a construção planejada “[...] com toda a facilidade se transforma em casa de habitação, para o que basta fazer-se uma divisão entre as duas janelas. É o que suponho que virá a acontecer, sendo o pedido para oficina apenas um pretexto”. O empreiteiro foi obrigado a explicar que a disposição do barracão era necessária para a proteção dos móveis futuramente fabricados, obrigando o engenheiro a pedir uma garantia, provavelmente a assinatura de um termo. O depósito de caixões vazios e “utencílios” proposto por Francisco Giovanni na Monsenhor Andrade, 2, fundos do seu negócio, foi analisado com suspeitas por Sá Rocha142. Na sua informação escreveu que a licença poderia ser concedida desde que o “[...] barracão (fosse) inteiramente aberto em uma das faces. Para os fins declarados não vejo necessidade de um barracão fechado e com porta e janela”. O processo foi interrompido. Teria sido construído na ilegalidade?

    Hotéis e pensões eram especialmente destacados para vistoria. O Hotel das Famílias de Affonso Bottiglieri, na avenida Rangel Pestana, 227-A, largo da estação do Norte (Central do Brasil), pediu para derrubar paredes para uma reforma geral143. Uma visita do engenheiro mostrou quartos sem ar e luz, notando-se que a planta aprovada estava sendo desrespeitada. O projeto foi retirado da DOV para as correções. No retorno, Sá Rocha informou que
      Atualmente o hotel é um único edifício um tanto antigo, é certo, e sem determinadas comodidades, mas enfim um só todo. O que se pretende agora é claramente, como se vê na planta, dividi-lo em duas partes, inteiramente distintas, e o que figura agora na planta com nome de hotel não virá a ser outra coisa senão um cortiço com restaurante na frente. Não há infelizmente lei que obste a uma construção, só estas convicções, contra as quais sou contrário [...].
    Bottiglieri retrucou ao engenheiro que o hotel era muito antigo no bairro do Brás, o que era certo, porque temos notícias dele desde 1880, e o que ele fazia eram melhoramentos justos e higiênicos. O engenheiro insistiu na opinião de que se pretendia erguer dois cortiços em vez de um hotel, “[...] e continuo a pensar desse modo”. Na falta de uma legislação contrária ao projeto, o requerente tinha feito uma declaração, um termo de uso de próprio punho no processo. Dessa forma, só restava encaminhar a sua aprovação (Bottiglieri provavelmente agia de boa fé, pois se manteve no ramo hoteleiro, sendo, mais tarde, proprietário do Grande Hotel Roma, na área da Luz, próximo da estação).

    Ainda na Rangel Pestana se travou uma longa batalha entre Julio Mazola e a Prefeitura. Os problemas de Mazola (ou Mazzola) começaram quando o fiscal Alfredo Alberto Figueira embargou e multou, em 28/1/1910, a transformação de um barracão com cobertura de zinco em cinco quartos nos números 293-295 da avenida144. Mazola morava na mesma avenida, no 301, trabalhando com a venda de gêneros alimentícios. Interessado em negociar com carvão e materiais para construção, começou a reforma de um barracão, situado entre os números 291 e 295, distante do alinhamento da avenida mais de 30 metros (fundos do terreno), com uma passagem para a rua de 3,50 m. Já havia algumas casinhas no local, sendo usadas pelo antigo proprietário, dr. Almeida Lima, como moradias para os empregados [provavelmente trata-se do médico Augusto Gomes de Almeida Lima, morador e vereador pelo Brás]. Na sua inocência, ele pensou que podia continuar usando-as da mesma forma, procedendo à caiação e pintura. O pedido de demolição era descabido, porque ele pretendia utilizá-las para depósito.

    O processo foi enviado a Sá Rocha que considerou o embargo justo: “O interessado fez uma série de quartos com porta e janela em um antigo telheiro ou barracão, serviço esse que não está de acordo com o padrão”. Requereu ainda um portão de ferro ou madeira para o fechamento da entrada do local. Em 14 de fevereiro foi pedida oficialmente a demolição da obra. O proprietário redarguiu, uma semana depois, recusando-se a por abaixo o que havia construído. Na sua argumentação inicial, ele se definiu como dono de “pequenos cômodos para operários”. Ele os estava reformando, abrindo uma janela em cada um deles para iluminação, e construindo um barracão de 15,6 m x 4,6 m para depósito de lenha, sendo os quartos, “exclusivamente para os seus camaradas que trabalham nesse ramo de negócio”. O processo voltou para a verificação de Sá Rocha. Ele achou desnecessárias maiores informações, além das já fornecidas. As casinhas deviam ser postas de acordo com o padrão, acrescentando que,
      [...] diante do fato de terem sido tais cubículos ocupados anteriormente como habitação, é coisa que ignoro, mas mesmo quando o tenham sido foi abusivamente, posto que não tinham para isso as condições exigidas pelas leis. Prova-o o fato de ter o requerente começado por fazer janelas nos ditos quartinhos, o que antes não existia. A minha exigência não é pois descabida [...].
    Sobre o barracão, acrescentou que era impensável a sua construção com cinco portas e janelas, devendo ser aberto na frente, como qualquer edificação deste tipo.

    No dia 13 de março, Mazola declarou que tinha aumentado as janelas das casinhas para 1,10 x 2,20 m, coisa que para Sá Rocha era insignificante, já que o conjunto deveria ser posto de acordo com o padrão. Dois meses depois, Mazola pediu quatro anos de carência para colocar os imóveis em ordem, o que para o engenheiro era uma insistência inoportuna:
      Da planta apresentada agora se vê claramente que não se trata de habitações completas, mas sim de uma série de quartos ou cubículos, que não acho de acordo com o padrão. A reforma das janelas que o requerente pretende fazer importa na reconstrução quase total da parede da frente, acrescento que para cômodos destinados a habitação o padrão exige assoalho de madeira e a 0,50 pelo menos acima do solo; isto considerando-se o caso de concluírem tais cubículos nas condições de casas para operários. Qual o negócio ou fábrica de propriedade do requerente que exige a transformação de um velho barracão em cômodos para operários? [...] se vê que é razoável a suposição que faço de tratar-se de um simples cortiço [...].
    Em princípio, a Secretaria Geral, por intermédio de Alberto da Costa, pediu a demolição do barracão. Mas Sá Rocha foi de alvitre que apenas a negativa de uso para habitação, com notificação para o fiscal da área, seria suficiente. Alberto da Costa pediu então, em 3 de junho a desocupação do barracão em 8 dias e sua colocação de acordo com o padrão. No ano seguinte, o fiscal anotou no processo que o barracão estava abandonado, havendo outro próximo como depósito de carvão, pretensão inicial do vendeiro (certamente construído de forma ilegal).

    Ao final do processo, arquivado em 3/4/1911, ficamos em dúvida se o cortiço “inaugurado” pelo dr. Almeida Lima, fora desativado. Aparentemente, a vigilância da DOV só conseguiu impedir a sua ampliação com a reforma do telheiro, continuando as antigas casinhas com o seu uso intacto.

    Somente uma avaliação mais profunda, comparando-se outras ruas e bairros encortiçados, fornecerá uma ideia mais correta do problema145. Depois de Mazola, a estabilização das ruas do Brás escondeu a questão das “habitações coletivas”. Quando ela reapareceu em 1915, na rua do Gasômetro, os engenheiros da Prefeitura agiram com indiferença ao pedido do empreiteiro Felício J. Costacurta de inclusão de cozinhas nos quartos146. O proprietário do cortiço, Colangelo, tinha sido, por certo, intimado pelo Serviço Sanitário. Para Sá Rocha e seu auxiliar, Godofredo Saboya, elas estavam em desacordo com o que a “Diretoria costuma aprovar”, restando apenas ao dono do cortiço construir na ilegalidade.

    Outra parte da casa que levantava frequentes suspeitas dos engenheiros era o porão. Porões em barracões; prédios com porões altos, às vezes devido à inclinação do terreno147; casas com subsolos acima dos 50 cm previstos para isolamento, mereciam atenta revisão. Manuel Lopes levantou sua casa na rua Gomes Cardim, 23, com um porão de 1,60 m148. Sá Rocha pediu que o proprietário assinasse um compromisso de que ele “não seria aproveitado para habitação”. Outras vezes a desconfiança era justificada. José Alves Carneiro, morador da rua Mendes Gonçalves, 6 (tinta), pediu o alvará para uma casa, negada por Sá Rocha na primeira avaliação149. Segundo a sua informação, o “porão está todo dividido em quartos de porta e janela, prova cabal e evidente do seu aproveitamento como habitação, o que não é tolerado”. As plantas foram retiradas da Prefeitura, modificadas, recebendo a aprovação.

    A vigilância sobre os porões, embora constante, eram numericamente inferiores ao que vimos para os cortiços, constituindo-se num problema de menor gravidade.

    Conflitos

    Luciana Gennari escreveu que o engenheiro José de Sá Rocha requereu, por meio do conceituado construtor Miguel Marzo, a edificação de uma casa nos fundos de um terreno da rua Wandenkolk, 37 (tinta)150. A despeito do estado muitas vezes de beligerância entre construtores e engenheiros da DOV, a escolha de um engenheiro sem diploma reconhecido não foi obstáculo para a seleção de Marzo. O que importava era a experiência e o conceito dele na praça, acrescentando-se que provavelmente ele possuía aquele saber de agrado do engenheiro, ou seja, apresentar uma planta limpa e bem organizada.

    Nem todos passavam pelo crivo. Vicente de Lucca querendo aumentar sua “habitação coletiva” na rua do Gasômetro, 147, entrou com planta na DOV151. Para Sá Rocha a construção de um piso superior subtrairia a luz e a circulação do ar do pavimento inferior, além de constar um terraço na frente que tinha aspectos inconvenientes. O mestre de obras Benedicto Bettoy retirou as plantas para correção, retornando com novas no mesmo dia. O auxiliar Godofredo Saboya em visita ao local constatou a existência de quatro casas no quintal do prédio, que tinham entrada comum pela residência principal, o que era proibido. O conjunto de erros em ventilação, iluminação e ausência de entrada independente para os fundos indicavam a negativa para a licença, levando Bettoy a pedir o arquivamento do projeto. Antes, porém, escreveu no processo que, embora tivesse sido atendido com a “máxima atenção” pelo auxiliar Saboya, recebendo dele todas as orientações para a segunda planta, denunciou que o engenheiro conhecia a situação do prédio, um cortiço. Dessa forma, ele deveria ter negado o requerimento na primeira apresentação à Prefeitura. Se o tivesse feito não “[...] acarretaria prejuízos (mormente nestes tempos) se o sr. auxiliar me dissesse com toda a franqueza que essa planta não seria aprovada [...]”. Agindo dessa forma, evitaria ao construtor todos os gastos com as cópias, retificação do projeto e o duplo pagamento de selos de entrada na Secretaria Geral.

    Em outra situação, João de Freitas, desejando construir uma simples cozinha, foi impedido pela DOV152. Ela seria edificada no interior do terreno da casa da rua Mendes Júnior, 8, sendo encarada como um “anexo” incompreensível para Godofredo Saboya e Sá Rocha.
      Das explicações verbais que me prestou o auxiliar, depreende-se ainda o seguinte: o interessado obteve há tempo licença para construir um prédio, e agora, tendo vendido ou arrendado uma parte do terreno com inclusão de uma parte do prédio existente no alinhamento, ficou a outra parte reduzida aos dois cômodos que figuram na planta apresentada. É esse um meio eficaz de sofismar as disposições legais, porquanto tendo, como se supõe, ficarão agora duas propriedades diferentes [...].
    O projeto foi retirado da DOV e não voltou depois de 22/11/1915. Teria sido construído ilegalmente?

    Embora fora do universo de ruas escolhidas para a amostragem (ver Anexo), o caso de Paschoal Plastino também apresenta aspectos conflituosos. Tendo em vista a abertura de um cinema na avenida Celso Garcia, 40, o American (ou Amerikan) Cinema, ele entrou com o pedido de licença em 4/12/1911 153. O construtor Fernando Simões levantou o “salão de cinematógrafo” em total ilegalidade, o que era de se estranhar dada a sua experiência no ramo. O proprietário era conhecedor do código de posturas do município, pois publicou vários anúncios n’O Estado de S. Paulo do seu escritório de “arquiteto construtor” na rua da Quitanda, 7 154. Aberto no domingo, 3 de dezembro, o American foi saudado pelo Correio Paulistano como um “belo cinematógrafo”, mesmo que o jornal escrevesse mais tarde que ele estava situado um “pouco retirado do centro do Brás”155.

    Aberto e funcionando com sessões de 10 a 15 filmes à noite (aos domingos havia matinê), Plastino requereu a licença de funcionamento, declarando que a abertura se faria no dia 6 de dezembro. Despachado para informação de Sá Rocha, sua primeira providência foi pedir a planta, acompanhada da situação do imóvel em relação à vizinhança. “À vista desta planta poderá esta Diretoria fazer as exigências necessárias à garantia do público. Oficie-se à fiscalização em documento”, ele anotou no dia 6. Recebidas as plantas, ele pediu portas de 2,50 m de largura, que deviam ser corrediças, dando “[...] saída para uma passagem de 2 m de largura mínima, conduzindo diretamente à rua”, de forma a se evitar atropelos na sala de espera. As portas dessa dependência estavam impedidas de “abrir para dentro”, devendo ser construídas em duas folhas ou folhas sanfonadas (“desdobradas”). As janelas de ventilação, com tampos fixos, vedavam a circulação conveniente do ar. Como já estavam erguendo outro prédio no terreno ao lado, Plastino deveria providenciar rapidamente a abertura do corredor lateral para a “fácil saída do público”. O cinema, salvo algumas interrupções para reformas internas, seguiu funcionando normalmente, dando espetáculos de 3 de dezembro a 13/2/1912.

    Para as medidas prescritas pela DOV, acionou-se o fiscal Enéas Pinto em 14 de dezembro, que informou a 27 daquele mês as providências tomadas pelo proprietário. Em meados de janeiro de 1912 o fiscal declarou que as obras estavam “de acordo”, faltando apenas as portas da sala de espera. Nova informação em 3 de fevereiro constatou que as portas estavam prontas, porém faltava a instalação. Instado pela Secretaria Geral, o fiscal relatou a 14 de fevereiro que Plastino se recusava a colocá-las: o “interessado nega-se peremptoriamente a colocar as portas, alegando que não há necessidade, é o que me cumpre informar”. O que teria levado Paschoal Plastino a se rebelar contra a DOV no último instante?

    O caráter do proprietário do cinema certamente deveria ser o de um homem voluntarioso, fato confirmado por uma briga com um pedreiro de uma de suas obras, da qual saiu com um ferimento à faca na mão, quando ele cobrou seis dias de trabalho. O encaminhamento ilegal da edificação era um problema de menor gravidade. Criar um fato acabado para os engenheiros da Prefeitura era matéria corriqueira, fazendo parte do jogo urbano de ilegalidades estabelecido entre construtores e a DOV. O funcionamento sem licença do cinema era algo mais grave porque mexia com a segurança coletiva, assunto sensível aos profissionais da engenharia municipal e, como veremos mais à frente, particularmente a José de Sá Rocha. Mas a birra com as portas da sala de espera causa espécie. O vocabulário de Enéas Pinto ainda indica que houve uma conversa acrimoniosa (“nega-se peremptoriamente”). O embate criado entre o modo de agir do proprietário e a engenharia, aliada à burocracia da Prefeitura, fazia parte da organização da cidade, das práticas sociais selvagens entre classes e saberes diferentes, porém, mesmo assim, ficamos paralisados diante do último elemento do confronto. Os cerca de 30 dias de funcionamento comercial inspiraram ao proprietário a confiança sobre a inutilidade das portas da sala de espera? Ou enfrentar as autoridades foi uma forma de sair de um negócio menos promissor do que calculou a princípio? Ficamos sem respostas sobre a atitude de Paschoal Plastino.

    Já com outro cinema, a situação é mais clara. Proprietário de um terreno em frente à estação da Lapa da Inglesa (SPR), Luiz Castaño (ou Castagno, ou mais frequente Castagna) requereu a construção de um barracão “feito de madeira e fechado a zinco” na rua Engenheiro Fox, 14, em 22/4/1912 156. O engenheiro distrital Luiz Bianchi Betoldi informou que o barracão só poderia ser edificado na antiga rua 3 com a substituição do tabuado da parede por alvenaria de tijolo inteiro (espessura de 30 cm), reforçando-se com pilares os pontos de sustentação das tesouras. Por outro lado, um telhado de zinco com as dimensões de 11 x 22 a 30 m de comprimento “[...] fica muito sujeito ao jogo interno dos ventos e por isto arriscado a ser arrancado, como já tem acontecido em Água Branca com telheiros de área muito menor”. Outra medida pedida foi os corredores nas áreas laterais para o isolamento e perfeita saída do público por três portas de saída. Victor Freire anotou no processo que o engenheiro tinha “[...] razão. Para o fim a que é destinado, a construção não está em condições”. Castagna entrou com novo projeto, anotando no requerimento, como Bettoy, a sua insatisfação: a nova planta tinha agora sete portas;
      [...] enquanto a sua construção ser de zinco é um direito que não se pode tolher, nem tampouco a Diretoria de obras tem competência para exigir que seja de tijolo com quanto todos que existem a Cidade são de zinco, quando no perímetro da Cidade são feito de zinco porque que na Lapa não pode ser? Enquanto pela parte da solidez, a construção será feita de modo a não deixar nada de modo a exigir.
    A argumentação de Castagna se baseava no conhecimento de duas das principais casas de espetáculo situadas no Triângulo (“a Cidade”, nas suas palavras), o Bijou Theatre, e do seu vizinho, que raramente exibia filmes, o Teatro Politeama. Ambos eram barracões de madeira com cobertura de zinco na antiga rua São João. O Bijou ocupava o lugar do projeto original de 1898 para um boliche, construído pelos engenheiros Fried e Ekman, logo depois transformado em teatro, o Eldorado Paulista (sucedido pelo Cassino Paulista e, depois, Éden Theatre). Em novembro de 1907, Francisco Serrador arredou-o para a abertura do Bijou Theatre. Foi um dos cinemas de maior sucesso no Triângulo, a porta que abriu o caminho do espanhol para o crescimento no mercado exibidor. Ele permaneceu no endereço até 1914, quando as obras de alargamento da rua São João o fizeram vir abaixo. O Politeama, vizinho do Bijou, era um barracão circular coberto de zinco, no interior do terreno da Cia. Antarctica Paulista. Com capacidade para cerca de 3.000 espectadores, a ele se adentrava por minúsculas portas, uma pela São João, outra pela rua Formosa (Anhangabau). A construção era de 1891, dando-se a inauguração no ano seguinte. Ele sempre foi classificado pelos engenheiros da DOV como um cancro, um mau exemplo construtivo, apodos ampliados pela imprensa, mesmo após algumas reformas de adequação. Sua vida também terminou em 1914, no final do ano, quando um incêndio provocado pelo gerador de energia, espalhou-se pela estrutura de madeira, destruindo o velho barracão. Por sorte, ele se deu depois da matinê, com o teatro vazio. Com isso, os jornais tiveram menos motivo para sensacionalismo, já que faltavam vítimas fatais.

    Luiz Castagna, como outros construtores, buscava leniência em exemplos anteriores permitidos pela DOV, achando-os na vigiada área do Triângulo, o símbolo de excelência em urbanidade. Se na Cidade, ou seja, no Triângulo, era permitido, porque não na Lapa suburbana? Em 8 de maio Betoldi foi obrigado a se curvar diante dos argumentos do empresário cinematográfico: “[...] o novo projeto de barracão para as funções de cinematógrafo [...] melhoram as condições do projeto anterior, e a vista das condições gerais de outros barracões congêneres que estão funcionando em diversas ruas da Cidade, pode ser autorizado”. Dois dias depois concedia-se o alvará de construção para o Pavilhão Recreio.

    Uma situação mais banal foi travado entre o engenheiro Sá Rocha e o construtor Santos Oliveira. Martim Alfano desejou abrir uma vitrine na barbearia da avenida Rangel Pestana, 275, no “Salão Alfano”, e para tanto requereu a licença necessária157. Para Sá Rocha o espaço para a vitrine (“mostrador”) era exíguo. Por outro lado, o projeto era um “atentado contra a estética e o bom senso”. Mello Franco pediu um croqui da fachada em 15/9/1914. Ele foi anexado ao processo pelo construtor, que ainda acrescentou: “fica terminantemente provado haver espaço mais que suficiente para a colocação da vitrine”; quanto à questão da estética do local, essa era uma questão desnecessária, pois se tratava de um prédio antigo e “sem arte alguma”. Por fim, arrematou que a avenida ganharia mais iluminação pública com a vitrine. O engenheiro da DOV achou o croqui “mal feito”, podendo-se imaginar o efeito negativo sobre a fachada que a vitrine retangular faria sobre as portas em semi-arcos. Portanto, a vitrine destruiria a regularidade da fachada. O processo subiu até Victor Freire que mandou perguntar se o objeto da questão abalaria a estrutura do prédio. Diante da negativa, ele concedeu o alvará.

    Os desentendimentos entre a DOV e os construtores faziam parte do cenário urbano, mas as desinteligências entre os próprios engenheiros sobre os objetos examinados adentram a outros campos como os da psicologia ou das relações humanas inerentes ao trabalho diário. Isso ficou mais patente quando Adelmar de Mello Franco passou a chefe da 2ª. Seção Técnica, supervisionando o trabalho dos engenheiros distritais. A construção de um sobrado na rua General Osório, 88 pela empresa Ehart e Ostroman serve de exemplo158. Sá Rocha discordava do projeto, criticando as disposições das peças desenhadas na planta: entre a copa e sala de jantar ficavam encravados o WC e o banheiro “o que é simplesmente extraordinário”. Indo além, declarou que as dispensas eram pequenas e nos armazéns da parte baixa faltavam iluminação e ventilação. Para Mello Franco inexistia amparo legal para a recusa das plantas. Sá Rocha foi obrigado a se curvar, declarando que informava as “notas” (o valor da taxa para cálculo dos emolumentos pelo Tesouro), “[...] embora divergindo do vosso modo de pensar. Julgo desnecessário expor os motivos que tenho para isso pois já temos por várias vezes discutido sobre isso. O vosso despacho ampara qualquer responsabilidade que eu possa caber no caso”. Em outra situação, na avenida Rangel Pestana, 157, Maria Luiza pediu licença para levantar a cimalha do prédio, serviço para o qual Sá Rocha foi contrário: a obra implicava em aumento do pé-direito e a reforma da fachada, ficando em desacordo com a Lei nº. 1.706 159. Para o superior, não se tratava de reconstrução, podendo conceder-se a licença. Sá Rocha contra-argumentou que de acordo com a Lei nº. 1.580 vedavam-se adaptações em prédios em desacordo com o padrão municipal, reforçando os aspectos da Lei nº. 1.706. No entanto, para Mello Franco, uma cimalha não era uma obra de adaptação, nem se enquadrava na citada Lei. Diante do pé firme do chefe, só restou a Sá Rocha informar os emolumentos devidos pela sra. Maria Luiza.

    Entre o engenheiro e o auxiliar, Godofredo Saboya, igualmente poderia ocorrer atritos. Uma edificação de Thereza del Frate na rua do Gasômetro, 84, foi recusada pelo auxiliar por incluir uma cozinha de 6 m2 160. Sá Rocha, durante a revisão da informação do auxiliar, escreveu que a
      [...] planta não é clara. Do exame atento da mesma se verifica que algumas das paredes e cômodos devem ser conservados. A reforma parece abranger apenas os cômodos centrais. Para evitar confusão como a que ocasionou a observação do auxiliar, convém que nas plantas seja discriminado por meio de cores diferentes o que há a suprimir, do que há a fazer e do que fica conservado.
    Arthur Saboya, respondendo pela chefia, confrontou os desenhos (o projeto trazia, lado a lado, o desenho atual do imóvel e um segundo posterior à reforma), chegando à conclusão que era desnecessária a modificação, dando-se o alvará.

    Às vezes aconteciam picuinhas administrativas entre os engenheiros. Quando Mauro Egídio e Caio Egídio de Souza Aranha entraram com pedido para alinhamento e arruamento de uma gleba no alto da Mooca em 28/9/1910, o requerimento caiu nas mãos de Sá Rocha que, dois dias depois, o despachou para Luiz Bianchi Betoldi161. Para ele, Betoldi conhecia bem o terreno do alto da Mooca, “que, me parece, pertence à Municipalidade”, podendo fornecer com maior precisão a informação necessária. Uma semana depois Betoldi o devolveu a Sá Rocha, que o reenviou ao colega, porque ele era o “[...] autor do projeto [...] de alinhamento, como por ser conhecedor dos terrenos, sobre muitos dos quais existem dúvidas quanto à posse. A planta que o dr. engo. Bianchi junta não esclarece para mim qualquer dúvida que pudesse haver no caso”. Betoldi colocou na gaveta o requerimento, devolvendo-o para ser arquivado em 23/8/1913, já que, passados três anos, não fora “solucionado em tempo”. Desconhece-se o qual foi a ação dos maiores interessados, a família Souza Aranha. Teriam ilegalmente arruado a gleba?

    Até as atitudes do alcaide poderiam ser alvo de atritos. Uma platibanda na rua da Mooca, 97, em princípio seria recusada pela Diretoria de Obras, já que o prédio era antigo e fora do padrão162. Contudo, Sá Rocha lembrou que “[...] já por várias vezes o Sr. Prefeito, propriamente, tem consentido ou melhor deferido pedidos idênticos”, como tinha acontecido na avenida Celso Garcia. Victor Freire concordou com o subordinado, indeferindo a pretensão. Porém, depois de passar pela Secretaria Geral, dando-se ciência ao proprietário, o projeto voltou à DOV, que deu o alvará para a reforma, comprovando a tese de Sá Rocha.

    Outra fonte de fricção era o Serviço Sanitário do Estado. A supremacia do Serviço Sanitário sobre o município baseava-se na desistência da Câmara, e depois, do prefeito Antonio Prado, nos controles da higiene e saneamento da cidade. Assim como o poder de polícia fora deixado a cargo do Estado, a saúde dos munícipes também fora abandonada em prol do governo estadual, eliminando-se os médicos da Intendência de Polícia e Higiene e a Inspetoria de Higiene. Essa política manteve-se mesmo na governança municipal de Washington Luiz, sabendo-se como o seu caráter organizador buscava ordenar ao máximo o campo administrativo estadual (ele foi Secretário da Segurança em 1907) e municipal. Vemos a predominância do Serviço Sanitário em vários requerimentos. Um depósito de materiais construído em 1914 por João Bettoni na rua Mixta, 46, foi, em princípio, recusado pela DOV por suspeita de uso para habitação163. O construtor, por algum meio, conseguiu acesso às instâncias superiores, tendo Victor Freire mandado o processo ao prefeito. Washington Luiz avaliou que “compete à Polícia Sanitária verificar e impedir que seja dado uso distinto do que a construção é destinada. Dê-se o alvará”.

    Os médicos do Serviço Sanitário também trabalhavam por distrito, visitando as casas e estabelecimentos comerciais para a verificação das condições de salubridade das construções, e procedendo às vacinações contra a varíola. Como já notamos em algumas situações, os médicos pediam aos proprietários alterações nas edificações baseados no Código Sanitário. Esses, por sua vez, obrigados, acionavam a DOV. Por exemplo, Antonio Belleza foi intimado a remover uma latrina situada embaixo de uma escada de um prédio na rua da Glória, 3, pelo “médico da Higiene” em 1908 164. Quando Manuel Pinto da Silva quis construir um armazém na rua do Glicério,121, o argumento para o afastamento de 2,0 m do prédio vizinho, cuja posse era do solicitante, foi baseado no Código Sanitário165. Habitações com pés-direitos irregulares eram visados pelo Serviço. Vicente Pereira Pinheiro mandou planta para um cômodo na rua Oriente, 56, com 3,80 m166. Para Sá Rocha, se não bastasse o padrão exigindo 4,0 m de altura, “são frequentes as reclamações da Diretoria de Higiene sobre este ponto”. Isso nos faz pensar que a reclamação, anos depois, de Victor Freire sobre o exagero dos pés-direitos, que aumentava os custos das construções, na verdade combinava a pressão municipal com a estadual, nó difícil de desfazer.

    Às vezes desconhecia-se qual Lei orientaria a informação. José Antonio Greco entrou com projeto para uma padaria e moradia na rua Dr. Muniz de Souza, 2, que incluía uma cocheira que tinha passado desapercebida do auxiliar Laudelino de Toledo167. Para Sá Rocha, o Código Sanitário impunha o afastamento de 10 metros entre a cocheira e habitação, mas a Lei municipal nº. 234, que tratava do assunto, era omissa. Como as baias estavam em desacordo com a Lei municipal, as plantas foram retiradas. O processo foi interrompido pelo proprietário e ficamos sem saber se mais uma irregularidade fora cometida contra a cidade.

    Quando era conveniente, transferia-se a responsabilidade para o Serviço Sanitário. O armazém de Paschoal Cataldi na rua Placidina foi organizado de modo a conter uma habitação no pavimento térreo e um depósito de ferragens no superior168. Sá Rocha foi contra o projeto, mas o proprietário insistiu. O engenheiro aprovou a obra, desdenhando o cálculo estrutural (suportaria o sobrado o peso das ferragens?), argumentando ainda que o depósito era um assunto mais relativo à higiene: “[...] ficando assim a permanência de tal quesito sob a alçada do Serviço Sanitário”.

    Em alguns casos ficamos em suspenso sobre os motivos da paralisação de um processo. O café e restaurante de Duarte Rodrigues e Cia. na avenida Rangel Pestana, 166, foi intimado pelo Serviço Sanitário a demolir a cozinha construída em madeira e coberta de zinco por outra mais apropriada169. O processo interrompeu-se quando Sá Rocha pediu ao proprietário a intimação do Serviço estadual. O restaurante queria começar a reforma, escudando-se no Serviço Sanitário, ou seja, não havia intimação; se ela existia, afirmava o que foi requerido? O conjunto de ações é nebuloso, sem que vejamos uma solução apropriada.

    Um último caso reforça os aspectos de desentendimentos entre os engenheiros da Prefeitura e os médicos do Serviço Sanitário. Ele se deu com Erasmino Gogliano, proprietário do cinema Brás Bijou da avenida Rangel Pestana, 148 170. Instado pelo Serviço Sanitário a reformar os fundos do prédio, no cubículo para a projeção de filmes, e colocar ventiladores na sala de exibições, ele entrou com seu requerimento na DOV. Sá Rocha, em 12/12/1915, ficou escandalizado com a intromissão:
      Quero acreditar que tenha havido realmente intimação do S.S., embora não seja junto ao requerimento como devia (sic). As construções que o requerente pretende reformar escapam à competência daquela Diretoria pois não tem, na sua parte mais importante, que ver com a Higiene, sendo antes de exclusiva competência da Prefeitura. Visto que a reforma é parte importante do cinema, que é o palco caixa do aparelho [isto é, cabine de projeção], etc, parece-me azada a ocasião para se exigir igualmente uma conveniente adaptação da sala de espetáculos, dando-lhe talvez melhor acomodação, e melhores garantias para o público. O cinema fica encravado entre outros edifícios e instalado em prédio relativamente antigo.

    A estética das ruas

    Como já visto em alguns casos, lembremo-nos dos melhoramentos da fachada do “Salão Alfano”, Sá Rocha várias vezes tentou impor o seu gosto pessoal nos projetos apresentados à DOV171. Além de chamar às falas os construtores sobre plantas mal feitas ou com erros construtivos, ele oferecia os seus conhecimentos sobre o que ele considerava uma boa edificação, acrescentando outras observações que avançam para além do campo da engenharia civil. Sobre uma fachada da rua Galvão Bueno, 45, por exemplo, achou-a “simplesmente detestável”, embora a planta baixa lhe parecesse “aceitável”172. As opiniões sobre a arquitetura dos edifícios derivavam de uma consideração de Sá Rocha sobre a vacuidade original do padrão municipal, que na mesma época estava sendo revisto pelo próprio engenheiro. Criticando uma obra do comendador Joaquim Gil Pinheiro na mesma rua Galvão Bueno, ele escreveu que As “boas regras de construção” iam de encontro à predominância do estilo eclético, muitas vezes exageradamente alambicado. O padrão da Câmara, por outro lado, dentro da (falsa) ordem liberal, prescrevia “qualquer dos estilos arquitetônicos”, desde que aprovados pela edilidade (a arquitetura moderna de um Warchavchik, menos de dez anos depois das anotações de Sá Rocha, penaria muito para obter, pelo menos, a aprovação da DOV). Portanto, Sá Rocha intervia nesta zona pantanosa da ação legal, onde tudo e nada era possível.

    Diante da terra de ninguém sobre a arquitetura empregada por engenheiros e mestres de obras, cabia aos analisadores dos projetos de edificação, os funcionários da Prefeitura, aceitar ou propor soluções coerentes com o crescimento urbano e o embelezamento da cidade dentro das regras do padrão.

    A área crítica e sobre severa vigilância do Triângulo passava por esse crivo. Para o prédio de Maria do Carmo do Vale, em construção na rua 15 de Novembro, ele reclamou da altura da sobreloja, que poderia “[...] sofrer uma pequena redução, de modo que a proporção nas alturas do solo ao 1º. andar e deste à grande cornija fosse mais razoável”174. Quando Luiz Schiaffini pretendeu construir três casas na rua General Carneiro, o engenheiro preocupou-se com a área em que estava sendo erguida as edificações: Ainda na General Carneiro Sá Rocha fez reparos à reforma da fachada empreendida por A. F. Gonçalves176. O projeto deu-lhe uma impressão desagradável. Porém, esta “afinal é mais uma questão de gosto ou opinião pessoal apesar de que eu pense que o requerente poderia apresentar uma fachada mais estética, sem que com isso fosse prejudicado” o requerimento. Victor Freire perguntou se a casa estava de acordo com o padrão municipal. Diante da resposta positiva, foi dado o alvará. Às vezes Victor Freire entrava em acordo com o subordinado. Para o depósito de José Borri na rua do Gasômetro, 107, foi prevista uma sobreloja, que, para Sá Rocha, prejudicava as “[...] proporções arquitetônicas como se pode ver na própria planta. É preferível um só pavimento ou então dois andares sobre o armazém”177. Com o assentimento de Freire, Borri retirou as plantas, substituindo a sobreloja por um primeiro andar, onde se instalaria um salão de barbearia sobre o depósito de cimento. O processo entrado em setembro, só foi aprovado no final de dezembro de 1911, o que era uma demora inesperada nos trâmites da Diretoria de Obras, demonstrando a delicadeza do tema.

    A preocupação com a área onde estava sendo feita a obra descia a minúcias como o portão da rua Florêncio de Abreu, 156 178. Ao coronel Joaquim da Cunha Bueno recomendou que, “devido ao local”, o portão a ser aberto deveria ser de ferro (provavelmente um simples de madeira estragaria a imagem da rua). Às vezes o proprietário talvez não estivesse tão de acordo com as opiniões de Sá Rocha. A alteração da fachada de um barracão de Raphael Stamato — fabricante de máquinas para a moagem de cana de açúcar com fábrica no Brás (Engenho Stamato) — , para a rua do Gasômetro, 17, pensada em arcos e com portas onduladas de aço, deveria ser feita em “outros termos”, segundo a informação do engenheiro179. Como o processo foi interrompido, podemos supor que tenha havido o abandono da reforma ou a construção na ilegalidade.

    A intransigência dos proprietários em alguns casos beirava o confronto. Tal foi o caso com a fábrica de cigarros de Ferreira e Silva na mesma rua do Gasômetro, 85, esquina de Monsenhor Anacleto. O projeto de uma oficina em pavimento superior foi considerado contrário “[...] à estética, e ficará em desarmonia com o resto da construção”, posto que a frente do edifício tinha somente 3,5 m, criando um “sobradinho” entre as duas partes do pavimento térreo com 21 metros de extensão180. O empreiteiro Raul dos Santos argumentou que a planta estava de acordo com o padrão, tratando-se de obra cuja intimação viera do Serviço Sanitário, dois fortes argumentos para a sua aprovação sem delongas. Mesmo assim, nova planta deu entrada na Diretoria de Obras em 25/3/1914. Sá Rocha manteve a sua postura, anotando que o
      S. Sanitário não pode ter exigido do requerente cousa contra a estética da rua, como é a construção que se pretende levantar. A oficina para fabrico de cigarros, cuja situação deve ser melhorada, deve ser apenas no pavimento térreo. O que se pretende fazer é um trabalho antiestético e que não há razão para se tolerar.
    O chefe da 2ª. Seção Técnica pediu a intimação do Serviço Sanitário. O projeto foi novamente retirado, com a anotação de Sá Rocha de que era “fora de propósito”. Raul dos Santos, por sua vez, bateu o pé no padrão: se estava dentro da lei, deveria ser aceito. Sá Rocha pediu a manifestação superior, deixando o processo correr entre Victor Freire e o requerente. No dia 28 de abril, o diretor da DOV declarou que a oficina tinha iluminação insuficiente. O projeto foi e voltou mais duas vezes até que se deu a licença em 8 de maio, sem que Sá Rocha deixasse uma anotação final sobre o que achava do assunto: “continuo a pensar que não convém dá-la”.

    O fim do período 'Romântico' do controle urbano

    Washington Luiz nos dias correntes é um nome esquecido entre os ex-prefeitos paulistanos. A sua deposição da presidência da República, um dos episódios da Revolução de 1930, quando se enterrou junto o Partido Republicano Paulista-PRP, foi seguida pelo exílio e um desejado, pelo próprio deposto, desaparecimento da vida política nacional nos anos seguintes. Historiador de “fim de semana”, atividade nada desonrosa como o provou Philippe Ariès, fez com que o Arquivo Municipal o homenageasse, encimando o seu nome no frontispício (pelo menos no endereço eletrônico). A nova queda de Washington Luiz nos últimos anos, com a saída do seu nome da “fachada” do edifício Ramos de Azevedo, passou inocentemente sem causar qualquer comoção ou arrepio entre os historiadores ou a intelectualidade mais conservadora, garantindo que o seu nome já pertence ao olvido. Mas o “paulista de Macaé”, o criador de frases nunca explicadas corretamente como “governar é abrir estradas”, fato que mereceria uma estátua das indústrias automobilística e petroleira, e a “questão social é um caso de polícia”, que em sentido contrário ajudou a enterrá-lo mais perante os historiadores, tem uma trajetória importante dentro de um certo autoritarismo “ilustrado” da oligarquia burguesa paulista.

    Segundo Robson Mendonça Pereira, Washington Luiz pertenceu à “segunda geração de políticos do PRP”181, ou seja, veio depois dos “republicanos” históricos da Convenção de Itu, como o engenheiro Antonio Francisco de Paula Souza, Prudente de Morais, Campos Sales, Francisco Glicério, Bernardino de Campos, entre outros, políticos que chegaram até à presidência da República oligárquica, dentro da coalizão de poderes estabelecida entre São Paulo e Minas Gerais. Começou sua carreira política no interior do estado de São Paulo como vereador (1897) e intendente de Batatais (1897). Mudou-se para a capital em 1900, sendo eleito deputado estadual em 1904. Por indicação do secretário da Agricultura do Estado, foi nomeado para a Secretaria da Justiça em 1906, reorganizando-a. Deu-lhe novos poderes sobre a Justiça, burocratizando as carreiras de magistrados e funcionários, e a Segurança Pública; concentrando nas mãos do secretário o que antes pertencia ao chefe de Polícia. Na modernização dos serviços policiais foi o introdutor do sistema de identificação datiloscópica, criando o Gabinete de Identificação (ampliado logo depois com a implantação do ateliê fotográfico criminal e civil). Instituiu a 3ª. Delegacia Auxiliar como órgão de controle das diversões públicas, nunca antes assumida pelos municípios. Pelo decreto estadual nº. 1.714, de 18/3/1909, regulamentou as funções de funcionamento e controle das casas de diversões, inclusive no campo dos cinemas, que começavam a proliferar pela capital e interior. Em 1913 Washington Luiz foi escolhido pelo PRP para ocupar o cargo de prefeito durante o período 1914-17, em eleição indireta pela Câmara, passando o prefeito Raymundo Duprat para a presidência da edilidade.

    Nesta primeira gestão, o novo prefeito reformou a administração municipal (Ato nº. 899 de 15/3/1916), procedendo a uma “[...] racionalização administrativa, como a definição de cargos, sua competência e lotação, previsão, em alguns casos, de seleção e treinamento com base em qualificações técnicas e profissionais [...]”, buscando a melhoria do funcionamento da burocracia182. O Serviço de Limpeza Pública que era privado, fonte eterna de desgastes entre a Câmara e a população, foi encampado, criando-se a Diretoria de Limpeza Pública.

    Na área da Diretoria de Obras, que vinha sendo reformada desde a administração anterior de Raymundo Duprat, Washington Luiz concretizou certas medidas que reforçavam o que vinha sendo feito, como a criação de um novo perímetro e, de outro, estabeleceu uma regulamentação sobre as construções que antecipava o tão citado Código Saboya em mais de uma década. Nos termos do zoneamento da cidade somente o terceiro perímetro, ou suburbano, criava algumas alterações, abrangendo novos bairros em relação ao perímetro de 1904, enquanto o perímetro central (Triângulo) e o urbano (2º. perímetro) continuavam com suas linhas demarcatórias quase que idênticas183.

    Uma novidade mais saliente deu-se com o Ato nº. 849 de 27/1/1916, que regulamentava as Leis e Atos anteriores sobre as construções184. Dentro dos perímetros central e urbano era vedada a edificação sem planta aprovada, licença e pagamentos dos emolumentos devidos à Prefeitura. Na área suburbana, pedia-se somente o arruamento e nivelamento das ruas e alinhamento das casas. As plantas deviam ser apresentadas em triplicata na escala 1:100, com especificação dos diversos compartimentos e dimensões (os tipos de papel para originais e cópias também ficavam claros, porém as cópias em azul da prússia predominaram por muito tempo), acompanhadas de um memorial descritivo, onde se especificava como seria feita a obra; estabeleciam-se cores diferentes para construção, reforma ou acréscimo e demolição; elas deviam ser assinadas pelo proprietário ou engenheiro arquiteto embora, na falta deste, pelo construtor (mestre de obras), contudo já se anunciando a entrada oficial do engenheiro/arquiteto na condução da edificação, uma evidência da ascensão da profissão dentro do meio urbano (uma inscrição do proprietário, arquiteto ou construtor era necessária dentro da Prefeitura, mas desconhece-se o alcance desta medida, que parece ter ganho maior eficácia na década seguinte, acrescida do registro profissional). Novos materiais também eram contemplados como o concreto, iniciando a decadência do curto império do tijolo como elemento primordial das fundações à cimalha dos prédios. Se fosse necessário, a DOV exigiria os cálculos para colunas e vigas ou qualquer outra parte da obra. Vedavam-se emendas e rasuras nas plantas. Pequenos serviços de limpeza, reparação e construção eram dispensados de alvará de licença185. O Capítulo II do Ato 849 era dedicado inteiramente aos andaimes. O Cap. III para as construções em geral com cinco seções específicas: fundações, porões, paredes, estilos e águas e esgotos. Para as fundações, por exemplo, proibia-se a construção em terrenos que tivessem servido de depósito de lixo ou “imundícies”, artigo que provavelmente nunca foi levado a sério. Os porões “visitáveis”, de altura inferior a 2,50 m, não poderiam ser subdivididos. Contudo, aqueles que recebessem iluminação direta, poderiam servir de habitação durante o dia (vedando-se como moradia permanente), abrindo novas possibilidades aos construtores. Legalizavam-se os puxadinhos para cozinhas, latrinas ou banheiros. Para a preparação da argamassa proibiam-se o uso de saibro ou barro. Fixou-se o revestimento interno das cozinhas e banheiros em até 1,50 m de altura.

    Qualquer estilo arquitetônico era permitido, acrescentando-se um “ainda que se afaste das prescrições do Padrão Municipal” (o padrão era mudo quanto ao estilo usado), ficando a cargo do Prefeito a permissão para a construção da obra.

    As habitações coletivas ainda eram claramente aceitas, reforçando-se o antigo Ato nº. 20 de 29/5/1897, que as definia para efeito de cobrança de imposto de Viação: “Entende-se por cortiço o conjunto de duas ou mais habitações que se comuniquem com as ruas públicas por uma ou mais entradas comuns, para servir de residência a mais de uma família” (impedia-se os cortiços em casas construídas para tal fim, ou seja, o destino de um encortiçado era sempre os prédios já levantados na cidade, em adaptações realizadas legal ou ilegalmente). Regulamentava-se uma latrina para cada quatro “aposentos alugados separadamente” e um poço ou cisterna para grupo de seis habitações “no máximo”, isto é, um cortiço “legalizado” teria entre quatro e seis quartos ou cubículos.

    Os Capítulos V e VI da Lei eram dedicados aos açougues e às cocheiras. O Cap. VII para os teatros, casas de diversões, bares e outros locais coletivos; o VIII discriminando as disposições legais para embargos e demolições; o IX tratava das disposições gerais onde se especificavam os emolumentos cobrados pelo município que, no máximo, chegaria a R$ 2:000$000 (dois contos de réis), acrescidos das porcentagens para cada pavimento. Por fim vinham os Capítulos X (disposições penais) e XI (transitórias), chegando-se ao total de 202 artigos.

    Com o Ato, codificavam-se os vários itens de apresentação e análise dos projetos, que quase de imediato mudaram o seu formato de apresentação. Agora, além do requerimento, o construtor ou outro responsável pela obra, detalhava o que faria e os materiais que seriam empregados quanto às fundações, parede, piso, cobertura, etc. Depois vinham as plantas, mais claras e bem desenhadas, esclarecendo o que era construção nova ou reforma (o salto qualitativo em relação às plantas das décadas anteriores é bem significativo do progresso que a Escola Politécnica tinha conseguido no campo do desenho arquitetônico). O novo quadro de especificações aliava-se a certas disposições burocráticas como a colocação de carimbos nas plantas em substituição ao que antes era feito manualmente: “Aviso! Este exemplar da planta deve estar sempre no local da obra [...]” ou então, “O barracão só pode ser utilizado única e exclusivamente para o fim declarado [...]”. Ao engenheiro cabia examinar se tudo se encaixava dentro das disposições legais. Por exemplo, uma análise do projeto de Renato Rossi para um prédio na rua da Mooca, 521, em 1916 foi assim visto pelo engenheiro Celso Viana: Ou seja, o disposto no art.77 previa um vão mínimo de portas e janelas, que deveriam ocupar a quinta parte da superfície mínima do cômodo. O que antes era analisado como falta de indicações das medidas dos cômodos pelos construtores, agora se escudava no art.10; igualmente estipulava-se um mínimo de metragem para as latrinas externas, como era o caso do parecer, dando uma racionalidade aos projetos que ficavam acima dos humores malignos dos proprietários ou da capacidade edificativa dos terrenos.

    Sá Rocha, um dos colaboradores iniciais do Ato nº. 849, como veremos à frente, continuava com um texto flexível quanto à redação da informação, próprio ao seu caráter independente, mas para um engenheiro mais burocrata, seguir os artigos da Lei tornava-se um roteiro factível para o relatório técnico. Para o requerimento de Ulisses Barili, construindo um prédio na mesma rua da Mooca examinada por Celso Viana, no número 541, Sá Rocha exigiu apenas que as plantas fossem desenhadas em papel Causon (sic), como era determinado pelo Ato 849, sendo prontamente atendido pelo construtor Bettoy187. A responsabilidade sobre a obra ganhou maior especificidade. Um prédio de dois andares de Alberto Penteado na rua General Carneiro, 32-34 recebeu de Sá Rocha aprovação com ressalvas: “As plantas apresentadas poderão ser aprovadas. Deverão, porém, vir assinadas pelo construtor responsável, visto não declarar o requerente se assume ele próprio a responsabilidade de construtor”188.

    A maior precisão, o controle mais afinado sobre os projetos e o emprego de novos materiais como o concreto obrigou os antigos mestres de obras a procurarem ajuda especializada, movimentando o mercado de trabalho dos engenheiros. Aos mestres de obras ou construtores sem títulos faltavam capacidades técnicas para a apresentação de cálculos dos vigamentos em concreto ou ferro. Joaquim Cavalheiro, renomado empreiteiro da área do Brás, apelou para o Escritório Técnico Alberto P. Marques quando foi obrigado a se defrontar com o cálculo estrutural de uma mansarda na avenida Rangel Pestana189. Outro campo que se revelou profícuo foi o do desenho arquitetônico. O prédio de três pavimentos da mesma avenida, 92-94, tinha o memorial e os cálculos do vigamento realizados pela firma Barros e Girardelli Desenhistas, que se anunciava também como especializada em “Desenhos topográficos/plantas de construções/medição de terras” com escritório na Libero Badaró, 53, 1º. and190. Já o memorial descritivo, quando não era apresentado na forma manuscrita, ganhou formulários impressos, especificando no seu conteúdo quase todos os pontos da lei de forma sintética. Alguns, como o Escritório Técnico A. Marchesini, geravam seus próprios impressos, aproveitando para fazer propaganda no sobrescrito.




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    Para citação adote:

    SOUZA, José Inácio de Melo. José de Sá Rocha: engenheiro municipal -
    uma trajetória pessoal e a formação de um corpo técnico para gestão da cidade.
    INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 9 (35): fev.2014.
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