José de Sá Rocha: engenheiro municipal
uma trajetória pessoal e a formação de um corpo técnico para gestão da cidade
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Epílogo: ainda os cinemas
O engenheiro José de Sá Rocha realizou 65 pareceres sobre os cinemas da cidade de São Paulo entre 1908 e 1916.
Foi encarregado pela DOV em 1916 para proceder ao exame de todos os cinemas da cidade, redigindo um projeto de regulamentação
que foi, acrescido e emendado pela Secretaria Geral, consubstanciado no Ato nº. 983.
Dentro da nossa perspectiva inicial, selecionamos as informações sobre os cinemas do Brás e da Mooca, mas sempre que necessário,
faremos incursões a outros pareceres prestados sobre os cinemas de outros bairros, com vistas a dar uma visão a mais completa possível
sobre as suas concepções de engenharia.
O Brás era um mundo, mas o mundo pobre da urbanidade paulistana. Tivera as suas chácaras retalhadas para a instalação do gasômetro
e das inúmeras indústrias que ali se instalaram no período da imigração italiana intensiva, formando a maior parte do
proletariado paulistano. As correntes migratórias do interior e do exterior em busca de trabalho encontravam no crescente parque
industrial tanto a super-exploração da mão de obra, quanto condições insalubres de moradia e higiene na variada gama de habitações
conhecidas genericamente por cortiços, cuja tipologia se desdobrava no “hotel-cortiço”, na casa de cômodos, nos sobrados convertidos
em casas coletivas pela subdivisão dos aposentos, fundos de armazéns com habitações, barracões com casinhas nos fundos
dos terrenos, das quais já tivemos ocasião de tomar contato, analisando os vários processos informados por Sá Rocha. O problema
habitacional era de conhecimento da Câmara Municipal, tendo-se em vista os vários relatórios produzidos sobre a Santa Ifigênia
em 1893, o de 1894 de Evaristo da Veiga sobre a epidemia de cólera e o de 1897 de José Roberto Penteado. Ainda assim, comentários
elogiosos sobre a situação sanitária da capital eram publicados nos jornais, como o saído da pena do diretor geral da Saúde Pública do
Distrito Federal, Nuno de Andrade, que, em 1903, engrandecia o governo paulista pelos gastos com a saúde da população, mostrando que
na capital da República a situação era igual ou pior que a paulistana, cuja demonstração violenta se deu no ano seguinte com a “revolta da vacina”:
Por ter compreendido, há muito, que para progredir é preciso viver, e um povo sem higiene é povo que não se respeita, o paulista
fez sacrifícios e resolutamente saneou as suas cidades e organizou os seus serviços sanitários. Ele está certo de que é impossível
esperar-se sentimentos de grandeza, o culto do aperfeiçoamento, a delicadeza do patriotismo, a dignidade civil e
até a verdadeira noção da liberdade — de uma população que se abandona à varíola por preguiça de vacinar-se; que mora,
indiferente e resignada, no cortiço e na casa de cômodos, respirando o odor dos maus esgotos, a exalação das valas próximas, e cercada de
capinzais nocivos, de hortas estrumadas; que transita por esburacadas ruas lodosas, cheias de lixo; que deixa se devorar pela
tuberculose, pela febre amarela, pelos tifos, espantada ainda de que prosperem em tal meio tantas desgraças juntas; e apesar de tudo brada
contra o — ‘Despotismo Sanitário’ — quando se procura melhorar-lhe a sorte [...]. Para não se encontrar numa situação como esta, que é a
nossa [do Rio de Janeiro], o paulista lutou e venceu [...].
Três anos depois, em discurso na sessão de 17/2/1906, o vereador Celso Garcia ainda discutia se o município tinha ou não direito de
legislar sobre habitações higiênicas, diante da permanência do mercado capitalista da construção urbana, a quem cabia resolver o problema, e a
força do Serviço Sanitário estadual, a quem a política municipal relegara os cuidados sobre a saúde e
higiene da população da capital.
Ao lado da exploração do operariado, dos cortiços, onde se localizavam a metade dos casos de tuberculose no período de 1904-1905, segundo o
médico sanitarista Clemente Ferreira, o Brás contava com uma vida agitada e com um aparelhamento urbano que o integrava à cidade,
concluída somente com a urbanização da várzea do Carmo, que por décadas manteve o leste de São Paulo como uma
área quase que isolada. A Hospedaria dos Imigrantes datava de 1884, recebendo os que chegavam pelas estradas de ferro da Inglesa
(San Paulo Railway), de 1867, e do Norte (depois Central do Brasil), de 1877. O serviço de bondes puxados a burros, ligando o Brás
aos bairros da Sé, Mooca e Consolação, datava da mesma época. Tinha um cemitério próprio, festas religiosas animadas, tanto no bairro
quanto na Penha, mais tarde um carnaval que disputava a atenção dos paulistanos em geral. Sua população chegava na virada do século XX
perto dos 40.000 habitantes, ou seja, quase 20% dos moradores de São Paulo vivia no Brás. Antes do Teatro Municipal, a Cia. Antarctica
Paulista tinha conseguido a concessão do antigo mercado de verduras do largo da Concórdia, de 1897, para a construção do
Teatro Colombo, inaugurado em 1906, com capacidade para quase dois mil espectadores, servindo ao bairro com apresentações líricas,
teatrais e cinematográficas. Na Rangel Pestana ainda estacionavam vários circos em terrenos vazios como os dos números 298 e 335,
estando localizado na vizinha Mooca o Hipódromo, que se não servia aos amantes do turfe, atendia aos embasbacados observadores dos
voos pioneiros do italiano Eros Ruggerone ou do paulistano Edu Chaves.
A novidade do cinematógrafo chegou ao Brás pelos exibidores ambulantes em 1906, ocorrendo sessões no Teatro Popular do Brás, da rua do Gasômetro,
114, e no Salão Apolo, da avenida Rangel Pestana, 227-A. Quando Francisco Serrador se instalou na área do Triângulo, no final de 1907,
com o Bijou Theatre, logo espichou os seus olhos gananciosos para o Brás, conseguindo a sublocação do Colombo para o Cinematógrafo Richebourg,
o pomposo nome que dava ao seu projetor Pathé Frères, exibindo os filmes da mesma marca, com os quais fizera fortuna no centro da cidade.
Neste ano de 1908 o cinema passara a fazer parte do cardápio de edificações visitadas por Sá Rocha, dando informações sobre o circo de
Elisa Brose, da praça João Mendes, que exibia filmes entre pantomimas e números equestres, o Mignon, da travessa do Seminário, o Edison,
da rua da Estação e outros mais.
Na sua área de atuação, o primeiro a ser avaliado foi o da Confeitaria Guarani da avenida Rangel Pestana, em março de 1909. A confeitaria
do italiano Emilio Siniscalchi fora fundada em 1896. Para oferecer aos seus frequentadores o mesmo que os burgueses do Triângulo obtinham
desde o ano anterior na Confeitaria Fasoli da rua Direita, 5, ele resolveu proporcionar espetáculos
cinematográficos gratuitos no 126 da Rangel Pestana, alugando um projetor Pathé Frères, provavelmente com o empresário Francisco Serrador,
mais as fitas da marca francesa, as quais exibia em média cinco por noite. Como eram apresentações gratuitas, a licença foi concedida.
No momento em que resolveu cobrar ingresso, o requerimento foi enviado ao engenheiro Sá Rocha para informação. Ele foi
contrário à ideia: “Trata-se de um prédio que não reúne as necessárias condições para o fim que se tem em vista. Posso mesmo acrescentar
que me consta ter havido há tempo já ali um princípio de incêndio ou cousa equivalente [...]”
(esta informação não pode ser confirmada).
Siniscalchi continuou com sua luta, ainda que fosse multado por falta de licença. De forma a regularizar sua situação, em 7/5/1908 entrou
com requerimento na Diretoria de Obras para colocar o prédio em ordem. De novo Sá Rocha mostrou-se irredutível porque o prédio era velho, fora do padrão e encravado
entre outros igualmente antigos. Mesmo assim, ele pediu uma planta detalhada do imóvel com as mudanças pretendidas pelo confeiteiro.
Quatro dias depois, Siniscalchi depositou na Prefeitura um requerimento com as medidas visadas para fornecer maior segurança aos seus
espectadores, como a colocação do projetor no fundo do salão, a 10 metros da primeira fila de cadeiras, o seguro do prédio
em duas empresas e a disposição para outras alterações recomendadas pela DOV. Diante da negativa do engenheiro na concessão da licença,
o diretor Victor Freire perguntou quais as medidas alvitradas para o edifício. Para Sá Rocha, a segurança não estava nas apólices das
seguradoras, mas no espaçamento das filas de cadeiras e na circulação dos espectadores (entrada e saída do local e
acomodação). O confeiteiro apresentou sua planta orientada pelo olhar do engenheiro, que ainda se mostrou insatisfeito, porém se deu o alvará
de licença em 29/5/1909. Siniscalchi aparentemente manteve sua confeitaria-cinema no prazo legal de um mês, voltando em 1911, com o
Cinema das Famílias, permanecendo aberto por um tempo maior, cerca de três meses.
A Confeitaria Guarani exemplifica as preocupações gerais dos engenheiros municipais com a segurança dos espectadores
cinematográficos, aportando, entretanto elementos novos. A cabine de projeção desprotegida, aberta ao olhar do público,
fazendo parte do espetáculo como no período dos exibidores ambulantes, em que o motor de produção de energia, o projecionista e a troca
de filmes eram elementos integrantes das práticas de exibição, mereceria, principalmente por parte de Arthur Saboya, um olhar mais atento
e constritor. Em breve tempo elas seriam fechadas dentro de um cubo de amianto, depois de cimento, de maneira a garantir ao público a
segurança contra os incêndios provocados pelas fitas de nitrato de celulose ou a explosão dos motores movidos a gases
inflamáveis, quando não expulsas do panorama local. Quanto a este último aspecto, por exemplo, Sá Rocha impediria, no ano seguinte, as atividades
da empresa ambulante Guerra e Romano, negando a sua pretensão de instalação provisória quando ela escolheu um prédio na rua Barão de Itapetininga,
40. Pertencia também à prática geral dos engenheiros paulistanos a condenação das casas de espetáculo
encravados entre outros edifícios, cujo primeiro caso rumoroso fora o do Moulin Rouge, aberto por Paschoal Segreto, em 1906, na rua São João.
O isolamento do edifício era uma das condições sine qua non para a abertura dos cinemas e, destes princípios, Sá Rocha conformava-se ao
já estabelecido. O que vemos, no caso da Guarani, são outros interesses em relação à segurança como a circulação dos
espectadores e a posição das cadeiras. A circulação era importante no controle de entrada e saída do público, onde se procurava evitar
os atropelos, as situações de pânico, que terminariam em mortos e feridos. O aparecimento de outros cinemas na cidade foi aprimorando o
controle sobre a circulação. Saídas dando diretamente para as ruas em que trafegavam bondes constituíam um problema,
como no caso do Lírico, da rua São Bento, via estreita e de calçada estreita para uma sala que comportava 1.200 espectadores. Sá Rocha,
no caso ainda do Lírico, notou ainda a periculosidade dos degraus, outro detalhe da arquitetura das salas, cujo erro vinha do aprendizado
com o Moulin Rouge. As cadeiras, nestes tempos iniciais da exibição, não eram fixadas ao solo, já que os salões se
prestavam a outros tipos de diversões conforme a época ou o interesse do empresário (daí as capacidades máximas “toleradas” expressas nos pareceres,
porque se punham cadeiras conforme a afluência do público; o Brás Bijou, por exemplo, tinha 540 lugares na plateia, contudo uma lotação de
até 600 pessoas). No carnaval e nos bailes afastavam-se as cadeiras, cedendo espaço para a dança. Cinco
anos depois, um dos pontos da legislação específica dos cinemas estava na fixação das cadeiras, o que de modo algum impedia os bailes de
carnaval, contudo disciplinava a posição do espectador na sala, dando-lhe uma ordem de entrada e de saída, uma metragem específica ocupada na
área da sala (0,40 x 0,40 cm), um afastamento fixo da fileira dianteira (0,80 cm), ou seja, o espectador deixava
de ser um ponto flutuante na planta arquitetônica. Ele passava a ser enquadrado nos desenhos das fileiras de cadeiras e, hoje,
numerados nas telas dos computadores quando compram seus ingressos.
A questão da higiene dos cinemas estava longe de ser um assunto preocupante para os engenheiros da Prefeitura. Uma queixa sobre o mau
cheiro “insuportável” do Eros, da rua Piratininga, 95, foi encaminhada a Sá Rocha, que deu de ombros. Talvez no inverno os ventiladores
fossem desligados a pedido dos espectadores, escreveu na informação ao processo. Os fiscais distritais igualmente atuavam de maneira relaxada.
Quando houve queixas sobre a transformação em “banheiro público” do entorno do Pavilhão dos Campos Elíseos, um circo instalado no largo Coração de
Jesus, nada se fez, já que era um assunto da alçada da polícia do Estado. A displicência com a higiene derivava do acordo estabelecido em 1899
entre o prefeito Antonio Prado e o governo do Estado, que deixava por conta do segundo a administração da higiene pública por meio da
Diretoria do Serviço Sanitário e sua legislação, que dividira a capital em oito distritos. Como escreveu Maria Alice
Ribeiro, havia um perfeito “entrosamento” entre Prefeitura e Estado, que era perturbada, somente, pelos atritos advindos da fiscalização,
verificadas as extrapolações jurisdicionais, como já tivemos ocasião de observar em diversas situações.
Uma das intervenções mais radicais de Sá Rocha foi a predileção pelo processo da retroprojeção como forma de exibição das películas na
maioria dos cinemas paulistanos. O projetor postado no fundo do palco ou num cubo fora do corpo do cinema, projetando a imagem dos
filmes numa tela de tecido translúcido, como em geral acontecia, para a visualização pelos espectadores
fora uma solução no isolamento do fator de maior perigo para a sessão cinematográfica. A maioria dos cinemas do Brás e da Mooca (Brás Bijou, Ideal, Isis, Flor do
Oriente, Mooca, American, São João, Bresser e outros) utilizavam-se desta prática de exibição, que começou a ser definitivamente
abandonada com a nova concepção trazida pelos cinemas da década de 1920.
Uma das situações conflituosas criadas pela atividade fiscalizadora de Sá Rocha deu-se com o São José, da rua Nova de São José, atual
rua Coronel Antonio Marcelo, de propriedade de Nicola Ferraro. A planta tinha sido aprovada em 6/12/1913, entretanto Ferraro incluiu galerias
para aumentar o público do cinema, além de outras ilegalidades notadas pela fiscalização. A licença de
abertura foi indeferida enquanto o proprietário não desfizesse as galerias. Em março de 1914, Nicola Ferraro pretendeu ampliar o
botequim e uma espécie de terraço, entrando com novo projeto na DOV. Tais implementos situavam-se nos fundos do cinema e próximo da cabine
de projeção, duas situações incompatíveis com as concepções do engenheiro: “Posso ainda e com muito mais razão supor dado o
local e imediações que tal botequim tão no interior de um terreno constituiria um foco de desordens”. O Serviço Sanitário foi contrário
ao engenheiro, pois em caso de acidente, o bar serviria de refúgio para os espectadores; quanto aos desentendimentos, era um fato “natural”,
“pois em qualquer lugar eles se dão”, cabendo à polícia o restabelecimento da ordem pública. A interferência do
Estado numa questão de engenharia sempre espicaçava a visão profissional de Sá Rocha, já que a área dos fundos era fechada, assemelhando-se a
uma ratoeira. Para Sá Rocha, os botequins sempre deveriam se instalar nas áreas dianteiras dos cinemas. O prefeito indeferiu a obra.
Em outra fiscalização, registrada quando Nicola Ferraro já tinha passado o negócio para frente, descobriu-se que
ele tinha alterado a lotação, com a supressão das passagens laterais, colocando ainda uma grade fixa no vestíbulo, elemento arquitetônico
que sempre era recusado pela engenharia municipal por ser considerado um entrave para a circulação do público. O engenheiro notou também
que a bilheteria fora instalada contra uma das portas, inutilizando-a; as portas laterais estavam sendo ocupadas por
filas de cadeiras nelas encostadas, impedindo a saída dos espectadores; as cadeiras da plateia estavam soltas e o espaçamento de 80 cm fora
desrespeitado, etc. Na administração da DOV, concepções divergentes sobre o prédio se mostraram entre o chefe, Adelmar de Mello Franco, e Sá
Rocha, motivando a entrada de Victor de Melo Freire no processo decisório. O prefeito Washington Luiz concedeu a
licença desde que se fechassem duas janelas que davam para a cabine de projeção. No conjunto do processo, ficamos sem saber se Nicola Ferraro
e a empresa proprietária seguinte demoliram ou mantiveram o questionado bar dos fundos do cinema.
Um dos últimos processos localizados contendo informação de Sá Rocha, emitido quando cobria a chefia da 2ª. Seção Técnica, em dezembro de 1922,
provavelmente durante as férias de Arthur Saboya, que substituíra Adelmar de Mello Franco, relatava exatamente o problema da posição de uma
cabine de projeção. O Triângulo, projetado para ocupar um imóvel da Cia. Mecânica e Importadora de São Paulo na rua 15 de Novembro, 34,
fora alvo de uma série de observações dos engenheiros da Prefeitura. Adriano Marchini, informando o requerimento do engenheiro W. Fillinger, um
dos primeiros especialistas em concreto armado atuando na cidade, notou que na zona urbana central o padrão previa somente prédios de quatro pavimentos;
não havia áreas laterais de isolamento do prédio; a colocação da cabine na frente do edifício, em projeção direta, exigia a saída para outra
rua na parte posterior, cuja indicação estava ausente; a testada do edifício era de 10,9 m quando se pedia por Lei 14 metros. A Sociedade
Cinematográfica Paulista interessara-se pelo local por sua transitoriedade (o prédio estava condenado para a construção do viaduto Boa Vista), cuja
desocupação se daria em cinco anos. Talvez por esta razão o projeto do experiente Fillinger tenha cometido tantos erros. Sá Rocha concordou com
a informação do colega de Seção, pois mesmo que a concessão fosse transitória, a segurança do público era permanente. Faltavam as garantias de
saída para o “futuro” viaduto. Outros problemas listados pelo chefe da 2ª. Seção estavam no acúmulo de
espectadores no vestíbulo, o embaraço que o cinema ocasionaria na circulação diuturna de uma rua estreita como a 15 de Novembro, porque estava
previsto que o Triângulo inauguraria as sessões corridas na cidade a partir das 14 horas, período em que havia o mais intenso tráfego.
A concessão da licença, arrematou Sá Rocha, “[...] constitui um precedente que considero de más consequências [para] a administração, pelo incentivo
que vai dar para outros prédios ainda existentes e em idênticas condições”.
O projeto de Fillinger foi indeferido pelo Prefeito em 8/12/1922. A Sociedade Cinematográfica Paulista foi insistente, alterou as plantas
no que foi possível, e conseguiu a aprovação quando Sá Rocha perdera o poder de veto.
Outro documento interessantíssimo sobre as atividades de Sá Rocha encontra-se no “Relatório sobre as vistorias a que procedi nos cinematógrafos
da cidade por ordem do Dr. Prefeito”.
Ele teve o seu ponto de partida no ofício nº. 226 de 3/4/1916 enviado ao Prefeito
pelo vereador Amaral Gurgel, inquirindo a Prefeitura sobre a vistoria de todos os cinemas da cidade.
O ofício foi para a DOV. Por ser o engenheiro mais habilitado a responder à demanda, Sá Rocha foi encarregado de proceder à fiscalização que,
segundo Washington Luiz, subsidiasse as “[...] modificações a fazer nos atuais cinemas, de acordo com a lei 1.954, a Diretoria de Obras
dirá por escrito, neste processo a fim de que a D. Geral faça a intimação por edital, com prazo de 4 meses para início e
acabamento” das adaptações. Como medida inicial, Sá Rocha pediu uma listagem de todas as salas de espetáculo existentes na cidade,
sendo informado pelo Tesouro que eram em número de 31 (a listagem foi produzida a partir das licenças pagas pelas empresas ou exibidores
cinematográficos). O objetivo era que se oficiasse aos cinemas de forma a que o engenheiro os encontrasse abertos durante o
dia, já que a maioria tinha funcionamento noturno ou nos fins de semana. Victor Freire alvitrou, contudo, que antes disso ele poderia
começar as visitas, e não se sabe como Sá Rocha operou para adentrar aos cinemas existentes. Em 17 de junho o Relatório estava pronto.
No dia 24 de julho ele anexou o projeto de Regulamento, que foi emendado na Secretaria Geral.
A ordem vinda do gabinete do Prefeito era, para Sá Rocha, uma “[...] oportunidade para indicar ou sugerir algumas medidas que,
entendo, devem ser incluídas no Regulamento que, de acordo com o art.21 da Lei 1.954 tem de ser organizado pela Prefeitura, e que
justificam o meu modo de pensar, e anda o modo como interpretei algumas das disposições da lei”. Refere-se ao
“rascunho” de 1912 (na verdade, 1913) que, infelizmente, dormiu na Câmara por quatro anos antes de se converter em Lei, como já visto,
dispositivo necessário para a cobertura do vazio legal, cujos desdobramentos eram os critérios pessoais dos engenheiros na avaliação dos
pedidos de construção de cinemas ou a inteira liberdade dos proprietários e construtores. A Lei estadual de 1909 tinha
sido inócua (“nunca teve, que eu saiba, aplicação efetiva e permanente, por parte da própria polícia”). Passados tanto tempo,
Sá Rocha lastimava-se da impossibilidade de voltar ao “rascunho” de 1912, porque “[...] fa-lo-ia sob outros moldes e mais completo,
adotando medidas que a respeito são usadas em Regulamentos muito modernos, entre os quais posso citar o que vigora em Berlim e outras
cidades alemãs e que é de recente data, 1915”. Ao lado do vazio legal havia a tolerância da DOV com os construtores e uma fiscalização
insuficiente da Prefeitura. Isso se refletia num problema comum encontrado na maioria dos cinemas e teatros: o excesso de lotação.
Os ingressos eram vendidos ao sabor do sucesso dos espetáculos, colocando-se, quando necessário, cadeiras em vestíbulos, ao
longo das portas de saída, nos corredores de camarotes, “sem que se possa contra isso reagir”.
O engenheiro tinha consciência de que uma regulamentação radical, o cumprimento “exato e rigoroso da lei”, faria com que “[...]
quase todos os cinematógrafos existentes terão de fechar as suas portas, visto que poucos, muito poucos, de entre eles satisfazem
as suas exigências, e em muitos deles não haverá possibilidade de adaptações razoáveis”. Portanto, o seu novo
“rascunho” para a regulamentação da Lei 1.954 encaminhava-se no sentido de maior segurança e melhor acomodação dos espectadores,
deixando de lado certos dispositivos que lhes pareciam excessivos. Entre eles estavam os botões elétricos para a abertura das portas
de emergência, exigindo instalações onerosas, e desvantajosas para o público:
Este, em caso de perigo, não se preocupará de certo em procura de botões, mas procurará muito mais naturalmente em avançar
contra as portas, pelo que se pareceria muito mais razoável a exigência de que as portas seriam de abrir para fora, e quando
empurradas pudessem ficar fixas às paredes por meio de ganchos adequados, instalação esta pouco custosa e de fácil
realização. O botão colocado na bilheteria, de pouco também serviria em caso de perigo, não fosse talvez o bilheteiro o primeiro a fugir!
Outro tema que preocupava o engenheiro encontrava-se nas paredes divisórias para as quais se impunha a medida de 30 cm,
quando em geral se utilizava a metade. Paredes mais largas funcionariam como elementos “corta-fogo”, resguardando prédios vizinhos em caso de incêndio.
Por outro lado, como sabemos, Sá Rocha era partidário das cabines externas ao corpo principal do cinema, “[...] tendo
apenas em comum com este a parede onde estão os óculos ou aberturas de projeção”. Nos cinemas vistoriados, a maioria com palco,
elemento ausente de muitas plantas aprovadas, as cabines estavam instaladas nos fundos dele, favorecendo o processo de retroprojeção.
Dito isso, o engenheiro fazia uma lista de nove intervenções que considerava apropriadas para inclusão na regulamentação da
Lei 1.954: fixação das cadeiras e espaçamento de 80 cm das fileiras; proibição das cadeiras em corredores de frisas e
camarotes; vestíbulos de entrada sem a ocupação de cartazes ou reclames de grandes dimensões; bilheteria na sala de espera; proibição
de botequins sob os palcos; saídas independentes de terrenos de casas vizinhas; vistoria das instalações elétricas; vistorias periódicas
e incertas das casas que, em caso de reincidência, poderiam ter suas licenças de funcionamento suspensas.
Quanto aos cinemas da cidade, a primeira descoberta do engenheiro foi a de que eles eram mais do que os 31 listados pelo
Tesouro, mas 36. Destes, como se verificou, seis estavam fechados (Brasil, da Barão de Itapetininga, 12; Guarani do largo do
Arouche; Bresser, rua Bresser, 55; Recreio da rua Major Diogo, 39; Teatro Bernardino de Campo na rua Apa, 12 e o Lapa Cine Teatro
da rua Trindade, 12), apontando para a instabilidade do mercado exibidor, já que alguns voltariam a funcionar nos meses seguintes,
enquanto outros tinham definitivamente cerrado as portas, como o da Lapa, levado a leilão. Os que tinham sido abertos principalmente
com vistas aos espetáculos de palco – Teatro Colombo, Teatro São Paulo, Teatro da Paz e o Esperia – receberam menos observações
do que os que eram exclusivamente dedicados às projeções ou mesclavam apresentações de palco e tela. Nesses, a maioria dos problemas estava na cabine de projeção.
Um observador de hoje gostaria de tomar conhecimento de aspectos negligenciados ou desprezados pelo engenheiro como uma maior exatidão
sobre a lotação das casas, sempre adjetivada de “excessiva”, metragens, dispositivos de projeção e estruturação das diversas
seções de assentos. Assim como o Pathé-Palácio tinha “abusivamente aumentado a plateia”, uma variante para o “excesso” de público,
se o cinema impressionava ao engenheiro era classificado de “boa casa de espetáculos e bem construída”, como o Esperia da rua
Conselheiro Ramalho, onde hoje está o Teatro Sérgio Cardoso. O contraponto estava nos “barracões de madeira e zinco”:
Palace-Theatre, Melitta, Coliseu dos Campos Elíseos e Cinema Barra Funda, ou seja, nos quatro cantos da cidade encontravam-se
cinemas rústicos e de fácil construção.
Mesmo um cinema central e de grande afluência como o Iris-Theatre da rua 15 de Novembro, cuja largura não passava dos seis
metros, foi visto como sem condições de “adaptação razoável”. Mas as aberrações construtivas dão ao relatório um sabor especial.
O Minerva da rua da Consolação, 217, “instalado numa vasta sala com 6,0 metros de largura na frente e 9,0 metros no
fundo” foi chamado por Sá Rocha de um funil invertido com a “boca para a rua”. Sobre o América, da mesma rua, ele escreveu que era
“inacreditável como neste local se conseguiu encaixar um cinema com plateia, frisas, camarotes e balcões”, numa largura inferior a
nove metros, e com uma cunha adentrando ao cinema, empurrada pela casa ao lado. O Cinema Celso Garcia, da rua de mesmo nome, 46, o antigo
American de Paschoal Plastino, foi visto como um “verdadeiro corredor, tendo a sala duas larguras diversas, 5 e 7 metros respectivamente,
sendo de paredes meias com os prédios vizinhos”. Mas nada se igualava ao Teatro Apolo da rua Domingos de Morais, 15. Ele funcionava irregularmente,
uma ou duas vezes por semana, estando instalado num “vasto armazém”, em que a frente servia de sala de bilhar. O funcionamento do cinema era curioso.
Segundo Sá Rocha, o
aparelho [de projeção] está instalado nos fundos da casa num pequeno puxado, logo em seguida ao dormitório do proprietário.
As projeções são feitas abrindo-se a porta que liga o dormitório como o cômodo do puxado, e na qual há até certa altura um tapume
de folhas de flandres. É como se vê uma instalação muito rudimentar, mas nem por isso deixa o teatro (?) de ter
camarotes!! É escusado, parece-me, dizer mais a respeito deste cinematógrafo.
Victor Freire ficou muito impressionado com o relatório de Sá Rocha, “é muito detalhado e consciencioso”, sendo encaminhado a
Washington Luiz, que o despachou para detalhamento pela Diretoria Geral dirigida por Arnaldo Cintra. O regulamento foi assinado em 21/9/1916 (Ato nº. 983).
Quanto aos exibidores e seus cinemas, obviamente que foram insuficientes os quatro meses iniciais pensados pelo Prefeito para
a colocação em ordem, assim como os prazos seguintes que foram concedidos. A data limite só apareceu em dezembro de 1921, sem que,
contudo, como se verificou depois, os cinemas estivessem totalmente dentro da lei.
Conclusão
O que podemos concluir sobre a trajetória de engenheiro municipal José de Sá Rocha nas primeiras décadas do século XX? Formado
no exterior, ele estava distante da grande questão da formação profissional que alimentava o debate proposto por Francisco de Paula
Souza e a sua Escola Politécnica. Este era um problema envolvendo os setores da oligarquia cafeeira, o seu modo de
encarar o Estado e como fazê-lo funcionar melhor. Ao longo da sua trajetória faltam elementos sobre a sua participação como
membro das entidades de classe, os clubes, institutos ou sociedades de engenharia da cidade. Quando a Sociedade dos Engenheiros
Municipais de São Paulo apareceu, em 1936, ele talvez se considerasse muito velho e alquebrado para dela
participar.
A biografia de Sá Rocha nos revela que sua formação intelectual e capital social estavam conformados ao desejo de servir
como um bom técnico, colocando-o como um integrante das nascentes frações das classes médias que punham o seu saber a serviço
da classe dominante. Trata-se de um exemplo interessante da participação destes estratos na vida urbana, de como eles uniram os
seus destinos à oligarquia cafeeira, servindo-a com seu saber para a racionalidade e funcionalidade do espaço urbano. A liberdade de
opinião e a obediência, apanágios destes técnicos diante da oligarquia, desvelam uma diversidade de procedimentos, cuja origem talvez se encontre,
e não nos surpreenderíamos, na educação em instituição religiosa recebida em Portugal. Somente com a análise e
o confronto de outros casos da mesma época é que poderíamos formar um contexto mais correto sobre a intelectualidade média dentro
da São Paulo urbana do começo do século XX, da qual Sá Rocha revela uma das faces possíveis.
Nesta quadra da vida nacional e paulistana, em outro sentido, vemos que questionamentos a respeito da vida dos grandes contingentes humanos,
incluindo aqueles que viviam de expedientes, os pobres, os desempregados, o proletariado urbano em formação, suas condições de moradia,
higiene e salubridade estavam fora de qualquer política pública, cuja visibilidade só foi
sentida no cenário político com todo o seu esplendor depois da grande greve anarquista de 1917. A engenharia municipal buscava a
contenção do caos urbano, quando possível, e a ordenação legal da cidade, para a qual Sá Rocha contribuiu, no seu momento de auge
profissional, em 1913, com os projetos de lei sobre os inflamáveis, a melhoria do padrão municipal e as construções dos cinemas. Isso
era possível, pressente-se, porque a interlocução da burocracia média com os altos postos de comando se fazia com maior facilidade,
permitindo a circulação de ideias e conhecimentos que, nos períodos seguintes, aumentando o enrijecimento e a hierarquização do
aparelho estatal, barravam o diálogo interclassista. De qualquer forma, na época uma discussão aprofundada sobre a habitação
operária estava distante do olhar e da concepção mental de qualquer funcionário da administração municipal.
As preocupações principais localizavam-se na circulação das mercadorias e mão de obra (ruas calçadas, trânsito, transporte),
facilitando a “febril circulação de milhares de indivíduos”, como escreveu Alfredo Moreira Pinto, e a segurança dos locais
com grandes aglomerações, como os cinemas. Nesse último sentido, Sá Rocha deu a sua contribuição.
Se a oligarquia cafeeira estava voltada para si, para os seus grandes projetos urbanos de melhoramentos da cidade, como o plano Bouvard das
grandes avenidas, o saneamento da várzea do Carmo ou o, no fim das contas, provinciano Teatro Municipal, é de se pensar que o
restante, isto é, a parte majoritária da população vivia e agia fora da lei na sua ânsia por melhores condições
de vida. Os requerimentos e processos analisados sobre bairros populosos como o Brás e a Mooca nos afirmam que se isso era verdade,
ela não era tão ampla e descontrolada como nos faz admitir a literatura existente, porque a própria ilegalidade estava expressa na
letra da Lei, como no exemplo dos cortiços. Isso é bem próprio da vida política vigente na história brasileira em que o
liberalismo político rima com escravidão e a moradia em cortiço podia ser regulamentada pelo padrão municipal. Raquel Rolnik discutindo a
legalidade/ilegalidade das construções urbanas chegou à conclusão que entre 1886 e 1893 72% dos projetos eram ilegais, já que não
tinham pedido de alinhamento na DOV.
Esta afirmação altamente polêmica foi que encaminhou Luciana Gennari a declarar que
em bairros como Brás e Mooca construía-se da forma que se quisesse, sem respeito a qualquer padrão legal, “pois o padrão operário
não era obrigatório”, numa evidente confusão entre o programa de construções de casas operárias e o
padrão municipal legal.
A legalidade era um objetivo para qualquer proprietário ou morador, e se não fosse assim, não teríamos casos de donos de cortiços pedindo
para ampliar o seu “negócio”; a ilegalidade aparecia sempre que se encontrava um obstáculo na administração pública, fosse por meio dos
irmãos (?) Souza Aranha, fosse por meio do imigrante português (?) Antonio Caetano. Além do mais, para os migrantes/imigrantes a legalização
de uma obra era uma forma de inserção social dentro do regime capitalista, enfrentando-se um poder público
que lhe era muitas vezes adverso, onde vigorando o capitalismo, a posse de bens como uma casa era essencial para a sua ascensão
como morador e cidadão da cidade.
Como declarou a Procuradoria do Município em 1913, o Arquivo da Intendência de Obras tinha em parte desaparecido, tornando-se difícil
a recuperação de informações sobre loteamentos na cidade. Uma amostragem comparativa realizada entre 1906 e 1914, tomando-se para estudo
três meses de cada ano (janeiro, agosto e dezembro), onde se listou as aprovações da DOV publicadas no
Correio Paulistano, que publicava então os atos e despachos da administração municipal, e comparando-as aos requerimentos localizados no Arquivo da Cidade de
São Paulo, aponta para uma média baixa de processos sobreviventes. Em alguns anos temos cerca de 30% de requerimentos localizados; nos “bons”
anos por volta de 50% (1906), nos anos “maus” perto de 13% (1914). Ou seja, qualquer afirmação sobre a
cidade baseada na documentação do AHSP precisa ser feita com reservas, posto que se trata de uma
documentação incompleta — os documentos não chegaram ao arquivo — , e lacunar (por exemplo, havia
permissão para os proprietários retirarem as plantas dos requerimentos; por esta razão temos muitas vezes o pedido de alinhamento,
mas não o projeto). Os processos que viemos analisando ao longo deste texto apontam para várias ilegalidades visíveis ou suspeitosas,
e o relatório de Sá Rocha sobre os cinemas reforça claramente o ângulo da ilegalidade visível, porém declarar-se que a
atividade imobiliária urbana dos bairros pobres era majoritariamente ilegal contém um excesso que precisa ser melhor compreendido e estudado.
José Inácio de Melo Souza
historiador
Continua >
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Para citação adote:
SOUZA, José Inácio de Melo. José de Sá Rocha: engenheiro municipal -
uma trajetória pessoal e a formação de um corpo técnico para gestão da cidade.
INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 9 (35): fev.2014.
<http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>
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