PMSP/SMC
São Paulo, fevereiro de 2014
Ano 9 N.35 

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  • ENSAIO TEMÁTICO
  • José de Sá Rocha: engenheiro municipal

    uma trajetória pessoal e a formação de um corpo técnico para gestão da cidade




    | Família | Engenharia Municipal | Alma das ruas | Tempos de maturidade | Epílogo | Fontes |


    Tempos de maturidade do engenheiro Sá Rocha

    Na madrugada de 19/5/1912 lavrou um incêndio na serraria Aliança, situada na rua do Gasômetro, 53, esquina com a rua da Alfândega. A área era conhecidíssima pelos cortiços, levando o repórter de O Estado de S. Paulo a relatar, eufemisticamente, que o fogo assustou a vizinhança da serraria, posto que a “população ali é muito densa, constituída de muitas famílias de operários que vivem nas pequenas vilas”191. Os encortiçados, “numa confusão indescritível”, retiraram seus móveis e pertences, colocando-os a salvo na rua. Além de atingir os moradores das ruas Alfândega, Gasômetro e Assunção, o incêndio destruiu ainda a fábrica de carros de Ballila Basotti.

    Uma semana depois, a firma Almeida e Silva, proprietária da serraria Aliança, entrou com pedido para a construção de um barracão para abrigo de suas máquinas192. Arthur Saboya, encarregado de dar a informação sobre o processo, declarou que a reconstrução da instalação incendiada que quase destruiu o quarteirão, devia ser proibida em razão de sua periculosidade. Se ela fosse aceita, que ao menos se situasse dez metros afastada do prédio mais próximo, na falta de uma especificação legal sobre o problema. Victor Freire despachou o processo para a Secretaria Geral, que o devolveu com a informação do Código de Posturas que determinava o isolamento de máquinas a vapor ou forjas, situando-as em lugares espaçosos. Saboya pediu então o isolamento do barracão, acrescentando um muro de 3 m de altura no mínimo, de forma a aumentar a segurança dos vizinhos, já que a construção ficava a 2 ou 3 m das divisas do terreno da serraria.

    Sá Rocha, a quem concernia originalmente as questões relativas à rua do Gasômetro, anexou ao processo um “pequeno projeto relativo ao assunto”, isto é, um projeto de lei para apreciação da Comissão de Obras da Câmara Municipal sobre depósitos de madeiras e materiais combustíveis. O projeto era simples, constando de um artigo e quatro parágrafos. Reservatórios e tanques de materiais como madeira, carvão, combustíveis ou outro qualquer inflamável ficavam sujeitos à licença prévia da DOV. A obtenção da licença seria concedida depois de analisada a situação do terreno, indicando as construções existentes ou a construir, edifícios limítrofes nos fundos e nos lados. O terreno deveria ser cercado por um muro de alvenaria de 2 a 3 m de altura mínima, daí a recomendação de Saboya na sua informação sobre a serraria. Proibia-se o empilhamento de madeira ou carvão em prédios vizinhos, mantendo-os distanciados de pelo menos 2 m. Exigia-se a manutenção interna de passagens para o tráfego de carros e bombas de combate aos incêndios. O conjunto de medidas, segundo Victor Freire, era uma tradução das disposições em vigor na cidade de Buenos Aires (esta talvez seja a razão para não estar assinado por Sá Rocha), sendo encaminhado ao vereador Francisco Horta Júnior, que se encarregaria da sua tramitação. Provavelmente o projeto foi esquecido193.

    A intervenção legiferante do engenheiro aponta que, dentro do quadro de funcionários da DOV, Sá Rocha tinha atingido, depois de cinco ou seis anos de trabalho público, uma posição peculiar. Ele ia além da redação de informações burocráticas sobre as obras em construção ou reforma na cidade, tendo uma visão particular sobre certos problemas que atingiam o seu funcionamento. Isso é revelador de um estágio ascendente da burocracia do Estado, cujo ímpeto renovador tinha sido dado pelo plano de urbanização proposto por Bouvard durante a administração do conselheiro Antonio Prado. Nas administrações de Raymundo Duprat e Washington Luiz os processos de controle social e jurídico se aprimoraram, com a profissionalização do funcionalismo municipal. As intervenções de Sá Rocha se enquadram dentro deste espírito de excelência burocrática que a oligarquia cafeeira impunha à cidade, apoiada num corpo de funcionários vindos das classes médias.

    No ano seguinte, por duas vezes, ele teve ocasião de propor projetos de controle urbano, um sobre os cinemas e outro sobre um quase código de obras, como já antevisto acima.

    Em 20/9/1913 ele escreveu, em carta dirigida ao Prefeito, que conforme determinação superior, enviava para apreciação o projeto de regulamentação do funcionamento dos cinemas da capital194. O número de requerimentos sobre as construções de cinemas apreciados por Sá Rocha era em menor quantidade que a do colega Arthur Saboya, mas as preocupações dedicadas ao novo divertimento que se expandia pela cidade, chamavam a atenção, distinguindo-o entre os engenheiros municipais. Desta maneira, ele podia acrescentar na carta que os aspectos de segurança e de comodidade do público eram os que de mais perto interessavam à administração pública, e o projeto detalhava as exigências que vinha fazendo junto aos construtores e exibidores na abertura de novas casas de exibição.
      A falta, porém, de exigências oficiais é sensível, e convém, mesmo para a indispensável unidade de ação. O que consta do projeto parece-me não ser demasiada exigência, embora não seja completo. É entretanto bastante para desde já se conseguirem importantes melhoramentos em tais casas de espetáculo, que, como é sabido, não se destinam exclusivamente ao cinematógrafo, desde que entrou em moda o sistema de espetáculos diversos e variados, por sessões. As medidas constantes do projeto satisfazem, creio, suficientemente ao que deve ser exigido desde já de tais edifícios, e tais como estão, serão sempre preferíveis ao que temos que é nada.
    As medidas preconizadas no projeto de agosto de 1913 derivavam da experiência com as casas de espetáculos abertas ou em funcionamento da cidade. No primeiro artigo se pedia o isolamento do edifício já que, como os depósitos de combustíveis, os cinemas sujeitavam-se a incêndios. O isolamento era necessário para a prescrição do dano ao prédio causador do sinistro, evitando-se situações de pânico à semelhança das ocorridas na rua do Gasômetro com a serraria Aliança. O medo de incêndios em cinemas derivava do pecado original ocorrido no Bazar da Caridade, em Paris, em 3/5/1897, quando de 120 a 140 pessoas morreram, algumas delas cabeças coroadas da nobreza europeia, no momento em que o cinema da feira explodiu devido a uma faísca junto ao gerador de eletricidade do projetor, que funcionava por combustão de gases. Na cidade de São Paulo aconteceram poucos incêndios de grandes proporções, registrando-se apenas danos de pequena monta, porém a destruição do teatro Politeama em 1914, aguçou a atenção dos vereadores da capital. Prédios encravados entre outros edifícios, como o Moulin Rouge da rua São João, aberto em 1906, também eram vistos com suspeição. Neste caso, paredes de 30 cm de espessura deveriam aumentar o isolamento do prédio em relação aos vizinhos. Sá Rocha ainda procurou evitar a proliferação dos cinemas instalados em sobrados com pisos superiores habitados, situação vivida pelo Iris no centro da cidade desde 1907, mas compartilhada pelo Santana, da suburbana rua Voluntários da Pátria, em 1912. Contudo, o avanço do concreto como material construtivo, possibilitando o aumento da espessura das lajes foi tornando essa medida letra morta, até que o complexo de cinemas do Odeon na rua da Consolação, em 1928, enterrou-a de vez.

    Em segundo lugar procurava-se extinguir os barracões de madeira e zinco, como vimos com Luiz Castagna na Lapa, cujos precedentes estavam no centro da cidade com o Bijou e o Politeama, exigindo-se construções em alvenaria de tijolos. A medida, quando implementada em 1916, proibiu o acesso ao mercado exibidor dos pequenos empreendedores que tinham justamente nos barracões, mesmo quando dotados de balcões, camarotes e palco italianos, o seu programa construtivo barato e de fácil edificação. Outras medidas que afastaram os pequenos empreendedores foi a frente mínima de 8 m, quando havia somente plateia, ou de 12 m, com a existência de plateia, camarotes e balcões (a Câmara aumentou este dispositivo para 14 m). Terrenos com esta testada em bairros populosos como o Brás estavam fora do alcance dos pequenos exibidores, que se utilizavam de lotes de largura menor ou de fundos de terrenos com passagens exíguas para a rua.

    A medida que tinha trazido uma característica particular aos cinemas de São Paulo era a colocação da cabine de projeção fora do corpo do cinema, transformando a retroprojeção em modo quase que padrão de visualização cinematográfica195. A cabine de projeção (”caixa do aparelho” como se dizia na época) ficava instalada nos fundos do palco, ou algumas vezes fora dele, protegendo-se os espectadores de uma possível falha do projetor, ou mesmo da explosão do filme, cuja base da película em nitrato de celulose, em contato com a lanterna do projetor, era altamente inflamável, evitando-se as situações de pânico provocadas por tais acidentes. Com o projetor instalado no fundo do palco, a projeção da película se fazia em direção à plateia, e não o contrário como ocorre nos dias atuais, sem que isso causasse qualquer prejuízo aos espectadores.

    Na história da exibição cinematográfica na cidade foram raras as situações de incêndio dentro do contexto de rápida expansão do mercado e grande número de sessões ofertadas pelos exibidores. Entre 1895 e 1930 contam-se nove casos entre as centenas de cinemas abertos, dois deles criminosos (o Excelsior, da rua São Caetano, 226, em 24/3/1914 e, logo em seguida e inspirado pelo anterior, o Cinema Familiar, da rua General Jardim, 57, em 28/4/1914).

    Na lista de sinistros, o primeiro deles tinha ocorrido com a empresa ambulante Oshiyako e Cia. (Cinematógrafo Japonês), que se apresentou na Rôtisserie Sportsman a partir de 10/11/1907. O aquecimento do arco voltaico do projetor atingiu as cortinas do salão, além de destruir “duas fitas de gelatina”, como publicou o jornal Correio Paulistano, assustando os espectadores196. Vários deles ocorreram nos prédios por motivos diversos, após as sessões, como o já extensamente citado Politeama, o The Edison Cinema, o Flor Cinema e o Cinema Barra Funda. Temos três relatos de explosões na cabine de projeção acontecidas no High-Life (projeção direta), Flor do Oriente (retroprojeção) e Pathé Palace (retroprojeção e depois projeção direta). Em comum na série estava o fato de quase serem cinemas populares. Outra uniformidade do conjunto encontra-se no pequeno número de vítimas. Somente na explosão da cabine do Pathé, quando era exibido o capolavoro italiano Cabiria, de Giovanni Pastrone, em 30/1/1916, deu-se uma morte e alguns feridos na plateia, durante o atropelo dos espectadores em direção à saída. É claro que a enumeração dos incêndios é mais um índice sobre a gama de problemas envolvendo as salas de exibição, sem que busquemos criminalizá-las. Muitos eram projetados como ratoeiras assassinas, sem a menor consideração pela segurança do espectador (um cinema inseguro em passado recente foi a sala Aleijadinho do finado cine Belas Artes, situada no subsolo do complexo, com uma única entrada e saída). Outros eram bombas incendiárias prestes a explodir com o acúmulo de materiais inflamáveis junto à cabine de projeção (cartazes, filmes, madeiras). No Pathé Palace, a explosão do filme em contato com o projetor, imperícia da qual foi acusado o projecionista João Batista Paloni, gravemente queimado no incidente, tinha outro agravante, segundo o vereador Luiz Fonseca. Numa das sessões da Câmara, ele teria previsto o acidente no Pathé porque o cinema teria feito A segurança dos espectadores era um tema sensível para a DOV, motivo de controle e correção dos projetos de construção, situando-se como pano de fundo o medo inato da administração pública pelas situações de pânico entre a população, que nunca deviam ocorrer, e muito menos acidentes fatais que pudessem manchar as carreiras das autoridades. Para Sá Rocha, as cabines de projeção só poderiam excepcionalmente se situar na frente, proporcionando a projeção direta sobre a tela. Entre os poucos casos de sinistros conhecidos que vinham do início da exibição em São Paulo, encontravam-se o High-Life, do largo do Arouche, 63, assim como o citado Pathé Palace, da rua Rodrigo Silva, 4-10, ambos instalados sobre as portas de entrada.

    Na abertura da legislatura da Câmara em 1914 o ex-vereador Antonio Carlos da Silva Teles emitiu um parecer sobre o projeto, destacando a radicalidade do item sobre a proibição de construções em sobrados e prédios com pavimentos superiores habitados. A preocupação de Silva Teles estava nos edifícios do Triângulo: a cláusula era, em princípio, despótica e O projeto passou sem problemas pela Comissão de Obras em 10/2/1914, mas foi na Comissão de Justiça, em 16 de junho, que se agregaram duas medidas mais consistentes à futura Lei: a dispensa das áreas laterais e a edificação da cabine sobre a entrada do prédio desde que houvesse saídas amplas para duas ruas. Com essas medidas, valorizavam-se os terrenos de esquina ou aqueles de maiores dimensões na quadra, como era o desejo inicial de Sá Rocha ao ampliar a testada das edificações. De modo a colaborar com os exibidores, as reformas de adaptação dos cinemas existentes passavam de 30 dias para quatro meses para o início dos trabalhos e oito meses para as conclusões (nos anos seguintes estes prazos foram dilatados até que se deu um basta em dezembro de 1921). A Comissão de Higiene e Saúde, contudo, só deu seu aval ao projeto em 9/10/1915 199. A assinatura do prefeito Raymundo Duprat à Lei nº. 1.954 foi colocada no documento em 19/2/1916 e publicada quatro dias depois. A Lei foi regulamentada pelo Ato nº. 983 de 21/9/1916.

    O conjunto de medidas disciplinares sobre os cinemas causou problemas de imediato a dois deles que estavam prestes a serem inaugurados: O Teatro São Pedro, ainda hoje em pé e funcionando, e o Central, do vale do Anhangabaú, que vinha substituir o antigo Bijou na área, vendido para a instalação da Recebedoria Federal (1922) e, mais tarde, em 1941, posto abaixo na administração de Adhemar de Barros para a construção de uma passagem de nível entre o vale do Anhangabaú e a avenida São João.

    A empresa Lopes e David (Manuel Fernandes Lopes e Augusto Rodrigues David), proprietária do São Pedro na rua Barra Funda, pretendia inaugurá-lo no dia 12/1/1917, uma sexta-feira. Em 10 de janeiro ela requereu a licença, que foi despachada para vistoria de Arthur Saboya, sendo emitida em 15 daquele mês200. Ainda que se reportando várias vezes ao fato de a planta tinha sido aprovada em 12/2/1916, ou seja, antes da vigência da Lei 1.954 e do Ato 983, Saboya foi obrigado a listar uma série de quesitos em que pecava o cinema, impedindo a sua inauguração, que já tinha sido atrasada pelo andamento do requerimento. Entre outros pecadilhos, o engenheiro citou as larguras das portas de entrada e de socorro. A soma das áreas das portas era de 15,50 m2, quando eram precisos 24,60 m2 (a Câmara tinha estipulado duas portas de 2 m cada até uma área de 80 m2 e, acima disto, 20 vezes a área do imóvel; o São Pedro tinha 492,68 m2). As portas da sala de espera e as laterais tinham 1,90 e 1,50 metros, quando a Lei pedia 2,0 m; a porta de entrada era de aço ondulado, agora proibida (na onda da inovação, muitos cinemas tinham trocado suas portas pelo aço ondulado; ao tempo em que eram permitidas, a engenharia da Prefeitura pedia que elas ficassem suspensas durante as sessões). Outra inovação dos legisladores tinha sido um circuito elétrico independente da fornecedora de energia da cidade, a Light, que, por meio de baterias, propiciava luzes de emergência e botões elétricos para a abertura das portas de socorro, controlados da bilheteria, ou ao alcance da ação do público. O São Pedro descumpria os requisitos, tendo montado ainda sua caixa elétrica sobre madeira, quando era pedida uma de aço. Outro problema grave encontrava-se na renovação do ar: faltava a instalação dos ventiladores. Pela sua disposição na quadra dando para duas ruas, o São Pedro era dotado de projeção direta, com a cabine na frente da sala, mas Saboya notou que as portas eram de madeira com revestimento de ferro galvanizado, e não de ferro inteiriço, plano ou de enrolar, como mandava a legislação. No balanço final, somente com a Lei nº. 1.954, o cinema incorria em 12 transgressões, a que veio se somar outra do Ato nº. 849. O São Pedro tinha oito WCs e sete mictórios, quando o Ato pedia um WC para cada 20 pessoas (o cinema tinha a capacidade para 1.580 espectadores).

    A empresa Lopes e David publicou anúncios sucessivos nos jornais sobre os impedimentos que barravam a inauguração.

    O chefe da 2ª. Seção Técnica concluiu que o cinema obedecia à planta aprovada naquilo que era essencial, oferecendo condições “satisfatórias” de segurança aos espectadores. Ele abria a porta para a concessão da licença, dando-se o prazo legal para que ele fosse posto em ordem de acordo com os preceitos da Lei. No dia 16 de janeiro Victor Freire mandou o processo para a Diretoria Geral, que foi contrária: “Seria de bom aviso não dar a licença sem que ele ficasse primeiramente de acordo com as disposições legais”. O prefeito Washington Luiz confirmou a opinião da Diretoria Geral, subscrevendo embaixo: “É necessário para concessão de licença para abertura de cinemas, que as respectivas construções estejam de acordo com a Lei 1.954 e seu regulamento Ato 983”. O processo voltou no mesmo dia para a DOV (a celeridade do andamento é de causar espanto). Mello Franco estipulou, então, três medidas para isso: alteração das portas para 2 metros; colocação de aparelhos de renovação do ar e caixa de aço no quadro de distribuição elétrica. Dispensaram-se as portas de socorro, já que as de saída para a rua Albuquerque Lins podiam ser enquadradas nesta categoria (a Lei falava em metragem e não em saída para ruas); o artigo sobre o número de banheiros também ficava inutilizado porque o cinema escapava ao enquadramento como fábrica, escola, etc, o que era uma flagrante ilegalidade. O resto foi esquecido. O processo voltou para o prefeito em 18 de janeiro, que fez reparos às frisas e aos botões elétricos (mas se as portas sempre estavam abertas, eles eram desnecessários). No dia 19, Alberto da Costa pela Secretaria Geral pediu explicações ao guarda fiscal, que informou que os serviços encomendados já estavam quase concluídos, “[...] devendo o [cinema] ficar inteiramente dentro [da ordem] em poucas horas”. O engenheiro auxiliar Antonio Ayres procedeu a uma última fiscalização, onde ficamos sabendo que pelo menos um ventilador estava funcionando para a troca do ar. Deu-se o alvará de funcionamento no mesmo dia. O cinema que já tinha feito uma abertura para convidados no dia 17, abriu para o público no dia 20/1/1917.

    A legislação baixada por Washington Luiz causou uma comoção no mercado exibidor que, nos anos seguintes, foi obrigada a se enquadrar nos novos ditames legais. Somente na década de 1920, depois das últimas reformas mambembes nos cinemas impostas pelo prazo final de 1921, foi que um novo surto de construções e aberturas de salas se processou na cidade, agora sob o signo dos palácios cinematográficos, já que o mercado tinha passado para as mãos dos grandes empreendedores.

    A terceira intervenção conhecida do engenheiro dirigia-se à renovação dos controles construtivos que, no seu preâmbulo, declarava vir para substituir o padrão municipal vigente que, “[...] além de antigo e de conter disposições absurdas e incompatíveis com o desenvolvimento da cidade, é reconhecidamente insuficiente”201. O projeto era da mesma época do anterior, setembro de 1913, visando sanar as situações e ocorrências impensáveis em 1886, mas que pela vigência legal obrigava engenheiros a
      [...] fazer tolerâncias ou exigências, conforme os casos, em benefício das próprias construções entregues, na sua grande maioria, a construtores e proprietários pouco escrupulosos. A administração vê-se, infelizmente, na contingência de não poder intervir eficazmente por falta de normas ou regras impressas com força de lei para cortar tais abusos.
    Victor Freire tinha encarregado Sá Rocha “já há muito” de coligir todas as informações para a organização de um “código de construções digno da importância da cidade e compatível com as modernas exigências”. O projeto procurava ser o mais simples possível de modo a atender dos itens mais vulgares às situações mais complexas. Com isso se “[...] facilita o serviço quer dos engenheiros, quer da fiscalização com vantagem para o público, pois todo o interessado fica sabendo ao certo das regras a que tem de submeter-se”. O projeto era acompanhado de uma regulamentação para a apresentação das plantas arquitetônicas, “[...] o que até hoje ninguém se lembrou de fazer, e que é igualmente necessário, pois o atual sistema é o que há de mais irregular e incoerente, além de por em embaraços a administração que nunca sabe quem seja o responsável pelas construções”. Na intenção de “bem servir à Prefeitura”, Sá Rocha ouviu Ramos de Azevedo, que lhe fez “alguns reparos”, contudo considerando “um belo trabalho e que muito me honrava”202. As “Normas para apresentação de plantas” estavam datadas de agosto, distribuídas por 10 artigos, assim como e as “Regras gerais para construções”, com 34 artigos.

    Adelmar de Mello Franco e Osvaldo Prisciliano de Carvalho, secretário da DOV, assinaram uma segunda versão do projeto em 1/12/1913. Somente no ano seguinte a Diretoria apresentou uma “Consolidação das leis em vigor desde o Código de Posturas de 1886 até a Lei nº. 1.801 de 11 de junho de 1914 inclusive”, sem assinatura. Ela era dividida em Títulos, sendo o segundo sobre a própria estrutura da Diretoria de Obras, um terceiro sobre construções públicas e particulares, outro sobre a “Distribuição de força e luz pela eletricidade” e, por fim, as disposições gerais (o primeiro Título está em branco). O conjunto de normas redundou no Ato nº. 849, de 27/1/1916, sendo escoimados do projeto final os Títulos relativos à DOV e à distribuição de luz, esse certamente porque mexia com a poderosa empresa canadense ao estabelecer regras sobre linhas, zoneamentos, transformadores, motorneiros, construções, canalizações subterrâneas, etc, tornando-se um documento precioso sobre as preocupações da Prefeitura com respeito à Light and Power.

    Dois anos depois, por iniciativa do engenheiro e vereador Heribaldo Siciliano, apresentou-se um novo projeto de lei para organização de um novo padrão municipal, ultrapassando a consolidação legal anteriormente aprovada pelo Ato nº. 849 203. O Instituto de Engenharia colaborou com um “Regulamento para construções particulares”, aprovado na sessão do Conselho Técnico da entidade de 7/12/1918. Entre os construtores não diplomados e os mestres de obras houve grande celeuma, motivo de vários abaixo-assinados dirigidos à Câmara, já que somente os diplomados por escolas oficiais podiam assinar plantas e projetos. Os engenheiros, mais uma vez, fechavam o cerco para a consolidação da profissão, deixando os “práticos” com pouco espaço de manobra204.

    Final de carreira

    Observa-se, embora de maneira fragmentada em decorrência da amostragem restrita que, depois de 1913-1916, Sá Rocha se transformou numa espécie de especialista em assuntos delicados na área sob a sua jurisdição, a zona leste. Não o vemos, ou o vemos pouco no trabalho cotidiano, e quando nos deparamos com alguma informação do seu punho, ela está aposta em processos controversos ou que demandavam uma expertise maior. Por exemplo, quando F. Matarazzo e Cia. Ltda. requereu uma cópia de uma planta do alto da Mooca, em terrenos do ribeirão Cassandóca, considerados como localizados em terras devolutas do Estado, o processo iniciado em 4/6/1920 passou por várias instâncias, sendo que uma delas foi Sá Rocha205. Em 11 de setembro ele escreveu que as ruas citadas não tinham nome (os lotes indicados situavam-se entre a Siqueira Bueno, Itaqueri e uma rua sem nome) porque o arruamento ainda não se completara,
      [...] se é que o foi regularmente algum dia, anotou acidamente. Creio ser este o caso pois já há muito tempo se tem suscitado dúvidas relativas a tais ruas, como ainda o que de fato existe no terreno, difere em vários pontos e sensivelmente da planta junto, que foi organizada há mais de trinta anos. Em todo o caso, para o caso especial do interessado há certa concordância da planta com o que existe no terreno, e é isto que eu indico na mesma.
    Três dias depois, a Matarazzo recebia a planta pedida.

    Outro caso aparecido no ano seguinte dizia respeito a pedido da Light and Power para cercamento de linhas de transmissão, passando pela Chácara da Mooca, que muito espantou o engenheiro, posto que a empresa nunca tinha solicitado, depois da instalação na cidade de quilômetros e quilômetros de linhas, de requerimento desta espécie206. Ou então um pedido controverso de um terreno da rua da Mooca com a avenida do Estado, assunto que envolvia dois poderes (o Município e o Estado) e vários organismos ligados aos melhoramentos ao longo do Tamanduateí207.

    Quanto ao trabalho cotidiano, dos poucos processos analisados no início dos anos 1920, consta uma informação sobre o eterno problema dos nomes das ruas da cidade208. No requerimento de Vasco Corte Real para uma casa na rua Gabriel dos Santos, o auxiliar J. Silveira afirmou que a via “equivocadamente” tinha esse nome na planta da cidade. Sá Rocha acrescentou que por despacho do “prefeito de então” ela era a “dr. Almeida Nogueira”, aberta pela Societé de Crédit Foncier, que não tinha regularizado o loteamento de Higienópolis.

    Seguindo pela busca do nome de José de Sá Rocha em documentos de 1922 e 1923, encontramos a sua assinatura como responsável pelas chefias da 2ª. Seção ou da 3ª. Seção Técnica, provavelmente nas férias dos titulares.

    Segundo o Ato de sua aposentadoria, assinado pelo prefeito Luciano Gualberto, em 1925, ele teria se retirado do serviço público por incapacidade física, atestada por uma junta médica, depois de 22 anos de trabalhos209. Na mesma época se aposentaram outros engenheiros e funcionários contemporâneos: em 1922, Adelmar de Mello Franco, que tinha sido cedido em 1919 para a Estrada de Ferro Oeste de Minas, e Luiz Bianchi Betoldi; em 1925 deixaram o serviço público Victor Freire, Lúcio Martins Rodrigues, Osvaldo Prisciliano e Horácio Kiehl.

    Seu falecimento ocorreu em 19/10/1940. O féretro saiu da casa na praça Osvaldo Cruz para o cemitério da Consolação. Deixou viúva e os seguintes filhos: Hilda de Sá Rocha, casada com Frank de Barros Monteiro (2/12/1914); Paulo de Sá Rocha, dentista formado em dezembro de 1920, casado com Ana Rangel de Sá Rocha; Gontran de Sá Rocha, funcionário da Prefeitura, casado com Olívia Patto de Sá Rocha em 31/1/1922; Olga (viúva de Mário Telles Rudge procurador jurídico da Brasil Cia. de Seguros) e Emma de Sá Rocha.

    Continua > Epílogo



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    Para citação adote:

    SOUZA, José Inácio de Melo. José de Sá Rocha: engenheiro municipal -
    uma trajetória pessoal e a formação de um corpo técnico para gestão da cidade.
    INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 9 (35): fev.2014.
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